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A Batalha de Riachuelo. Uma vitória sem imediato seguimento

Cópia do original de Vitor Meirelles: a Batalha Naval do Riachuelo. Dim. 2,00m x 1,15m. Autor: Oscar Pereira da Silva (1867-1939).

Em 11 de junho de 1865, a parte substancial da improvisada marinha de guerra paraguaia atacou poderosa divisão naval do Império do Brasil, estabelecendo importante batalha fluvial diante do Riachuelo, pequeno afluente da margem esquerda do rio Paraná.

Com a arriscada operação, o comando paraguaio pretendia abordar e apoderar-se de barcos imperiais, impondo o seu domínio ao braço superior daquele rio, imprescindível à continuação da ofensiva terrestre no Rio Grande do Sul e em Corrientes.

A operação resultou em fragorosa derrota paraguaia. Porém, nos meses seguintes, a marinha imperial cedeu o controle do alto-Paraná às forças paraguaias, que tivera sua marinha desmantelada.

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Há 150 anos: A invasão paraguaia do Rio Grande do Sul – um passeio que terminou mal

Nove horas da manhã de 10 de junho de 1865. Uma após outra, as vinte pirogas são lançadas ao rio Uruguai, cada uma com vinte soldados armados, em pé. Uma hora mais tarde, eles desembarcam pouco acima do passo de São Borja. As canoas retornam à outra margem, para novas viagens. Os paraguaios são recebidos por fraco tiroteio, de algumas centenas de soldados imperiais, que logo se retiram. São Borja está quase desguarnecida, apesar dos muitos avisos sobre a mais do que provável invasão pela antiga estrada ligando o Rio Grande ao Paraguai.

A primeira tropa a acorrer em defesa da vila é o 1° Batalhão de Voluntários da Pátria da Corte, que não havia muito desembarcara em Rio Grande. Já sem as mochilas e barracas, os soldados imperiais avançam a passo cerrado para a margem do rio Uruguai, onde os paraguaios desembarcados protegiam novos chegados, em “linha de batalha”. Em seu diário, Francisco Pereira da Silva Barbosa anotou que foram recebidos com “tiros de carabinas e a foguetes” incendiários que passavam “rabeando por cima” de suas cabeças.

O jovem voluntário fluminense registrou que, após aguentarem o fogo por meia-hora, superados em número, retiraram-se para o centro da vila, sob as ordens do tenente-coronel João Manoel Mena Barreto, em coluna de marcha, com a banda de música à frente. Em carta à esposa, Francisco Marques Xavier, estancieiro passo-fundense e tenente da Guarda Nacional, propôs que os voluntários da Corte teriam ido ao “combate onde não resistiram nada. A primeira divisão deu fogo uma vez e trataram de correr” sem conseguirem parar!

Enquanto seis mil paraguaios cruzavam tranquilamente o rio Uruguai, sem partirem para o ataque, a população de São Borja, importante centro comercial missioneiro, era tomada pelo pânico. O padre João Pedro Gay, francês nacionalizado brasileiro, noticiou, quase em direta, a debandada dos moradores, das tropas imperiais e dele mesmo. Em poucas horas, os moradores escafediam-se pela estrada para Porto Alegre, em carretas, a cavalos, em geral a pé, levando pouco mais do que a roupa do corpo.

Em 12 de junho, os paraguaios entraram em uma São Borja semi-deserta, sem disparar um tiro. Então, o tenente-coronel Antonia de la Cruz Estigarribia, comandante da coluna expedicionária, determinou o saque de estabelecimentos públicos, casas de negócios, depósito do exército, alfaiatarias, sapatarias, ferrarias, etc. e de sessenta moradias, poupando-se apenas as de proprietários não-brasileiros. O enorme saque partiu em carretas para Asunción, levando também soldados feridos e doentes.

Diante dos escassos recursos do Paraguai, o alto comando pretendia seguir a máxima napoleônica de que a guerra deve alimentar a guerra. Esperava-se também que o saque aumentasse o discutível apoio dos soldados, sobretudo camponeses, a uma expedição ao exterior que pouco compreendiam. Em São Borja e Itaqui, moradores que não abandonaram as vilas participaram do saque, junto aos paraguaios ou após eles.

O pânico se espalhou pela região. Soldados paraguaios percorreram os campos próximos, arrebanhando gado. Desertores, delinqüentes e oportunistas nacionais saquearam estância em um raio de até duzentos quilômetros, regiões onde os invasores jamais chegaram. As tropas imperiais carneavam com gosto o gado gordo e arrebanhavam cavalhadas sem dó nas estâncias que cruzavam.

Sem detença, Estigarribia marchou de São Borja para Itaqui, ocupada em 7 de julho, por oito dias, sem disparar tiro. O saque rendeu menos, já que era povoação pobre e a população retirante carregara boa parte dos seus bens. Entretanto, entre outros bens, foram encontrados na vila “espingardas, lanças, espadas e muitos cartuchos de calibres 18”. Junto com feridos e doentes, o saque subiu o rio Uruguai, para Asunción, já que a frota imperial seguia primando pela inatividade e ausência que a consagrariam durante toda a guerra.

O plano de guerra paraguaio, sobre o qual não há documentação direta, jamais previra avanço em direção ao Uruguai, já invadido e ocupado pelas tropas imperiais. Acredita-se que Solano López pretendesse por-se à frente dos exércitos de Corrientes e do Rio Grande e se dirigir para as cercanias de Porto Alegre, onde travaria batalha que esperava que decidisse a guerra e abrisse as negociações.

Desobedecendo as ordens recebidas, Estigarribia marchou para o sul, ao longo do rio Uruguai, seguido na outra margem por coluna menor, dirigido pelo coronel paraguaio Pedro Duarte. Sem conhecer oposição, atravessou, entre outros, o rio Ibicuí e ocupou Uruguaiana, em 5 de agosto. Ele também fora proibido de acampar dentro de povoação, para não ser cercado. O brigadeiro David Canabarro [1796-1867], responsável pela defesa da fronteira Quaraí-Missões, recuara diante dos paraguaios e abandonara Uruguaiana sem defesa.

Ao igual que a campanha do Mato Grosso, o périplo paraguaio de São Borja a Uruguaiana fora uma espécie de passeio, devida sobretudo à baixíssima capacidade bélica das tropas de primeira linha, da guarda nacional e dos voluntários da pátria do Império do Brasil, uma nação escravista, pré-nacional, sem qualquer consenso pátrio, onde o oficial era um quase nobre e a praça de pret um quase serviçal.

A conquista de Uruguaiana foi vitória de Pirro. Quando da rendição, em 18 de setembro de 1865, após o esmagamento da coluna do major Pedro Duarte, no outro lado do rio, diante de Uruguaiana, a vontade de luta paraguaia dissolvera-se como sorvete ao sol. Encerrados em Uruguaiana, sem verem chegar reforços, após uma longa marcha, sob um inverno tenebroso, sem tendas, sapatos, barracas e agasalhos, os soldados paraguaios optaram por não morrer em guerra cujo sentido certamente não compreendiam.

A rendição paraguaia em Uruguaiana reforçou a visão aliancista da pouca capacidade e disposição bélica do soldado paraguaio. Agora, os aliancistas tinham certeza que em alguns meses acampariam em Asunción, como prometera Bartolomé Mitre, presidente argentino. Entretanto, os paraguaios, quase cordeiros quando da rendição em Uruguaiana, transformaram-se em leões, na defesa do solo e da sociedade paraguaia.

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(*) Escrito para Caderno de Sábado do Correio do Povo, RS, 6 de junho de 2015.

História e Historiografia da Guerra no Paraguai (1864-1870)

Apesar de ter sido livrada sobretudo por tropas das mais diversas províncias do Brasil, com forte destaque para o Rio Grande do Sul, e constituir o mais importante confronto militar lutado pelas forças armadas do Berasil, a chamada guerra do Paraguai sempre ocupou espaço menor na historiografia brasileira. A historiografia daqueles sucessos foi sempre uma espécie de reserva de caça dos militares-historiadores do exército de terra do Brasil, fortemente influenciados pelos interesses imperialistas do Estado brasileiro.

Mesmo em sua expressão mais refinada, alcançada pelo general Tasso Fragoso, fundador da História Militar Crítica entre nós, aquela historiografia encontrava-se e encontra-se epistemologicamente impedida de superar as visões nacional-patrióticas sobre os fatos que analisa, devido a seus pressupostos e objetivos nacionais implícitos. O militar-historiador serve-se das artes de Clio para fins exclusivos como o capelão militar prometia as benções de deus apenas para suas tropas. Em um sentido mais lato e essencial, os fatos históricos relativos à guerra do Paraguai foram sempre fenômenos desconhecidos entre nós.

Fora raras exceções, jamais tivemos a rica produção revisionista sobre aqueles sucessos que, no Uruguai, na Argentina e no próprio Paraguai, construíram-se a partir sobretudo da leitura que intelectuais federalistas contemporâneos aos fatos realizaram da verdadeira guerra civil e estatal que ensangüentou o sul da América.

No Brasil, a única crítica consistente à narrativa nacional-patriótica da guerra e de seus objetivos foi a esboçada, em forma sumária e restrita, pelos positivistas ortodoxos, mais de uma década após o fim do conflito. Nos anos seguintes, sequer foram traduzidas ao português as grandes obras uruguaias, argentinas e paraguaias críticas à visão promovida pelos Estados vitoriosos. Foi singular o autismo da historiografia brasileira sobre aqueles fatos.

Apenas em 1979, mais de um século após o fim do conflito magno, o ensaio de divulgação histórica Genocídio americano: história da guerra do Paraguai apresentou no Brasil leitura crítica daquele confronto influenciada pela historiografia revisionista. Em seu trabalho, J. J. Chiavenato abraçou a tese de guerra realizada por encomenda quase direta da Inglaterra, já impugnada largamente em importantes estudos revisionistas platinos.

O enorme sucesso de público de Genocídio americano deveu-se parcialmente ao fato de ter sido lançado nos momentos iniciais da abertura lenta, gradual e segura promovida pela ditadura militar brasileira. Sua denúncia do massacre da população paraguaia e dos crimes do exército imperial foi recebida e recolhida como parte da luta pela desconstrução da retórica ditatorial nacionalista anti-popular.

No Brasil, nos anos seguintes àquela publicação, sob os ventos da maré conservadora mundial, a negação dos tropeços, hiatos e insuficiências da reportagem jornalística de J.J. Chiavenato resultou essencialmente na modernização-recuperação-restauração das envelhecidas e superadas teses da historiografia nacional-patriótica.

Comumente, esses trabalhos restauracionistas conheceram amplo movimento de legitimação científica promovido pela grande mídia, pelas principais editoras, pela própria academia, enquanto os raros estudos nacionais acadêmicos de cunho científico e viés revisionista foram mantidos literalmente no desconhecimento.

Devido a essa operação ideológico-cultural, as fraturas nas representações brasileiras nacional-patrióticas sobre o grande conflito de 1864-70 do Prata, produzidas inesperadamente, em 1979, por trabalho de divulgação histórica surgido à margem da produção historiográfica acadêmica, encontram-se hoje soldadas.

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O Esquecido e o Lembrado na História da Guerra do Paraguai

Para reconstruir o passado, o historiador seleciona, hierarquiza e dá sentido a fatos históricos. Um processo que permite a historiografia aproximar-se ou afastar-se de seu objeto, ou seja, a reconstituição-explicação essencial dos fenômenos pretéritos. No primeiro caso, a historiografia constrói-se como ciência, nos limites que lhe são próprios. No segundo, apresenta-se como simples ideologia, isto é, desvio do sentido objetivo dos fatos determinado por intencionalidades conscientes, semi-conscientes ou inconscientes.

A historiografia é prática social que luta por sua construção como ciência no contexto do refinamento de suas técnicas e de seus métodos, embalada sempre pela incessante oposição entre os interesses sociais inevitavelmente antagônicos. Essas contradições explícitas entre narrativas de orientação científica e discursos de vieses ideológicos dão-se comumente em torno dos mesmos sucessos e a partir da mesma base documental, em claro paradoxo.

Toda narrativa historiográfica busca assumir posição social dominante, transformando-se em leitura hegemônica do passado, através da dominação, deslocamento e silenciamento das narrativas opostas, dissidentes e concorrentes. Vitória no campo das representações historiográficas que resulta habitualmente em não desprezíveis prebendas materiais e imateriais aos narradores que alcançam impor suas interpretações.

Mais comumente, o sucesso pleno ou parcial no confronto historiográfico não se conquista no contexto da solução da oposição dialógica e dialética entre as leituras em disputa, através da consolidação e legitimação das interpretações que mais se aproximem da essencialidade dos fatos. A historiografia dominante é também habitualmente a historiografia das classes dominantes. O que não resta a importância performativa da construção da historiografia como ciência e das constituição das contradições historiográficas.

Habitualmente, apesar da força imanente da busca mesmo tendencial da essência dos fenômenos, a maior ou menor legitimação de uma narrativa historiográfica é decidida pela maior ou menor força das classes sociais nelas interessadas. Não raro, por ter força para tal, a legitimação de uma leitura do passado se impõe literalmente através do amordaçamento dos seus principais oponentes. Nessa estranha disputa, o peso da aposta, no guichê, avança o jóquei e a sua montaria, na pista.

A grande guerra que ensanguentou a bacia do Prata de 1864 a 1870 foi questão histórica referencial e objetivamente determinante do agir do Estado imperial brasileiro nas suas últimas décadas de existência. Através daquele conflito militar, o Império do Brasil impôs sua hegemonia sobre aquela importante região, com desdobramentos e sequelas, exteriores e interiores, herdados pelo Estado republicano brasileiro, muitos dos quais se mantém até os dias de hoje.

No Brasil, por mais de um século, aqueles trágicos sucessos do Prata foram campo de caça privado de uma verdadeira proto-historiografia castrense, na versão mais comedida e qualificada da “história militar crítica”, com destaque para História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai, do general Tasso Fragoso, de 1934, ou nas narrativas fantasiosas e desbragadas do nacional-patriotismo. Nos últimos anos, o tema tem sido abordado por estudos de vocação acadêmica, não raro bafejados pelas mesmas injunções que condicionaram os estudos fundacionais sobre ele.
Ontem e hoje, as narrativas plenamente dominantes no Brasil sobre a grande guerra do Prata perfilharam a tese da total inocência do Estado imperial brasileiro naqueles sucessos. O Brasil teria sido atacado vilmente, em momento de plena paz, no sul do Mato Grosso e no oeste do Rio Grande do Sul pela tropas paraguaias, então sob o tacão de ferro de Francisco Solano López, ditador inebriado por desmedidos sonhos de hegemonia e de conquista no sul da América.

Nesse processo, determinou-se comumente como o marco zero do início da guerra a captura do paquete imperial Marquês de Olinda, em 12 de novembro de 1864, tendo a bordo o destinado presidente da província do Mato Grosso, sem qualquer declaração de guerra entre os dois países. Avançou-se e avança-se igualmente que jamais o Estado imperial teria tido predisposições belicosas contra a nação mediterrânea hispano-americana, ou contra qualquer outra, com destaque para o Uruguai.

Também a leitura interessada dos sucessos platinos de 1864-70 foi e é construída através do tradicional processo de selecionar, hierarquizar e dar sentido aos fatos históricos, a partir de razões e de interesses singulares, no geral estranhos ao sentido essencial dos mesmos, interpretados desde uma ótica supra-nacional. Nesse processo, foram múltiplas as operações historiográficas empreendidas, algumas de brutalidade e obtusidade apenas compreensível devido à força dos interesses sociais que as sustentavam e as sustentam.

Obscureceram-se e justificaram-se a participação dos criadores escravistas rio-grandenses estabelecidos no norte do Uruguai na Cruzada Libertadora de Venancio Flores, e, a seguir, a intervenção militar das tropas terrestre e marítimas imperiais, para manter aquele país na situação semi-colonial imposta quando da submissão de Manuel Oribe e Juan Manuel de Rosas, em 1851-2. No mesmo sentido, transformou-se a missão literalmente imperialista do conselheiro Saraiva, para submeter o governo constitucional uruguaio, em verdadeira operação de amor, paz e fraternidade. Uma verdadeira intervenção militar humanitária!

Impunha-se – e ainda se impõe – manter e consolidar a narrativa mítica da grande nação sul-americana estruturalmente pacifista. Sustentar a retórica de Estado imperial que jamais pretendera impor ao Paraguai os interesses mesquinhos de suas classes dominantes, através da pressão diplomática e do seu desdobramento militar. Era e é necessário negar a vontade do Estado imperial de, apoiado em sua indiscutível superioridade bélica, demográfica e econômica, impor-se sobre nação paraguaia pela força, como fizera tradicionalmente sobretudo em relação ao Uruguai, mas também quanto à Argentina, no que diz respeito ao Prata.

Entretanto, havia e continuava havendo, não uma pedra, mas um enorme escolho, no meio do cominho da consolidação da narrativa ideológica sobre o pacifismo visceral do Império quanto ao Paraguai. Em fins de 1854, fortalecido pela hegemonia no Prata obtida pela vitória sobre Manuel Oribe e Juan Manuel de Rosas na batalha de Monte Caseros, em 3 de fevereiro de 1852, o Estado imperial resolveu repetir, contra o Paraguai, a dura lição que acabara de receber do governo e da marinha inglesa.

Convencido do poder indiscutível de suas armas, o Estado imperial estrearia na tradicional diplomacia da canhoneira, ao enviar contra o então militarmente quase desprotegido Paraguai a talvez mais poderosa armada do Império que jamais navegara fora das águas territoriais do Brasil. Dezenas de navios de guerra e de apoio, centenas de poderosos canhões, milhares de marinheiros e de soldados partiram do Rio de Janeiro em direção a Asunción, no coração da América do Sul.

A expedição naval não resultou em um fracasso ainda maior talvez devido apenas à sensibilidade do almirante Pedro Ferreira de Oliveira, que viu entretanto naufragar para sempre sua carreira, ao fracassar na missão de impor a verdadeira missão impossível que lhe fora delimitada. A impossibilidade de tergiversar sobre o resultado e, sobretudo, sobre o sentido daqueles sucessos levou a historiografia nacional-patriótica, de ontem e de hoje, a optar sobretudo pelo desconhecimento ou minimização do sentido daquela ação de exercício majestático do Estado imperial brasileiro sobre o Paraguai.

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Nas últimas três décadas, houve forte proliferação dos programas de pós-graduação em História, sobretudo em nível de mestrado, com um incremento indiscutivelmente substantivo da produção historiográfica acadêmica sobre a história do Brasil colonial, imperial e republicano. Esse processo garantiu importante avanço qualitativo e quantitativo da produção historiográfica e indiscutível qualificação do ensino da disciplina, no paradoxal contexto da enorme desvalorização do magistério como prática profissional, em nível não universitário.

Nos últimos anos, no contexto de indiscutível stakhanovismo intelectual, os pós-graduandos vem-se na contingência de, além de cursar e aprovar diversos seminários, pensar, programar, preparar, redigir, qualificar e aprovar suas dissertações. Idealmente, tudo em apenas quatro magros semestres, sob a chibata dos orientadores, disciplinados a sua vez pelos coordenadores dos programas, obrigados a prestarem contas sobre o tempo médio de defesa dos trabalhos. Aventura realizada comumente pelos pós-graduandos em cursos pagos e geralmente semi-ocupados em atividades profissionais, a que são obrigados pela falta de financiamento público.

Não poucos pós-graduandos vencem esses handicaps negativos e propõem-se e realizam trabalhos de qualidade, sobre temas substantivos, superando a sedução de cumprimento formal das exigências para obter o grau de mestre em História, através de abordagem de questões comumente de somenos importância e menor complexidade. Sobretudo quando se encontram sob o domínio da influência das visões relativistas, culturalistas e solipsistas de que tudo é história, de que todos os temas são válidos, de que todas as discussões e narrativas sobre os fatos se equiparam.

Sem arredar pé de suas obrigações profissionais, Fabiano Barcellos Teixeira aceitou com galhardia o difícil repto de abraçar o estudo da expedição imperialista naval brasileira de 1854-5 contra o Paraguai, quase não tocada pela historiografia brasileira, como destacado, pelas razões igualmente assinaladas.

Com segurança, iluminou com sua investigação e narrativa aspectos fundamentais dos antecedentes, dos sucessos, das decorrências, da recepção historiográfica daqueles determinantes fatos. Sem qualquer apoio financeiro, deslocou-se ao Paraguai, identificando valiosa e desconhecida documentação sobre os sucessos no Arquivo Nacional de Asunción.

Fabiano Barcellos Teixeira estreou nas artes de Clio contribuindo em forma significativa para a historiografia brasileira e platina. Completou o ciclo de sua importante aventura cultural, oferecendo aos leitores sua dissertação, que tive o privilégio de dirigir, sob forma de livro, praticamente sem retoques, publicada sob o título A primeira guerra do Paraguai: a expedição naval do Império do Brasil à Assunção, em bela edição, pela Editora Méritos, de Passo Fundo (www.meritos.com.br).

Guerra do Paraguai: Instauração e Restauração da Historiografia Nacional-Patriótica

A guerra contra o Paraguai foi acontecimento central da história do Brasil da segunda metade do século 19. Em um sentido lato, as ações militares iniciaram-se em 12 de outubro de 1864, com a invasão do Uruguai por tropas imperiais, e concluíram-se em 1º de março de 1870, com a morte de Francisco Solano López, em Cerro Corá, no interior do território paraguaio. Estima-se que, dos 140 mil soldados brasileiros convocados para o confronto, até cinqüenta mil teriam morrido nos combates ou devido a ferimentos e doenças decorrentes deles. O financiamento do enorme esforço militar comprometeu por mais de uma década as finanças imperiais.

A guerra tencionou política, social e economicamente o Brasil. Sobretudo, desvelou o profundo anacronismo do Estado escravista imperial, despreparado e inadequado para operação militar que exigia esforço nacional. As consequências políticas do conflito foram profundas. Durante a guerra, a luta pela abolição da escravatura, principal questão político-social de então, imobilizou-se sob a retórica imperial da união diante do inimigo externo. Liberais e conservadores apoiaram a intervenção rejeitada pelas classes subalternizadas, sem que qualquer força política do país se opusesse a ela.

Narrativas apologéticas

As primeiras narrativas de vocação historiográfica sobre o conflito foram construídas durante a guerra e sobretudo após sua conclusão, nos últimos anos do Império. O golpe republicano de 1889 deu-se sob a égide da alta oficialidade do Exército, principal interessada na consolidação das leituras apologéticas sobre o conflito. Esses trabalhos pioneiros foram principalmente obras de oficiais combatentes. Eles construíram-se através da seleção e da organização dos discursos apologéticos empreendidos pelo Estado, pelo governo e pelas classes dominantes durante o confronto. As apologias historiográficas imperiais foram ampliadas após 1889. As forças armadas republicanas elevaram oficiais monárquicos maiores à situação de figuras paradigmáticas republicanas – Caxias, Osório, Tamandaré, etc.

Para apoiar a idéia de que a intervenção militar constituiu uma reação ao ataque traiçoeira aos territórios do Brasil, verdadeira luta da civilização contra a barbárie, essas narrativas propuseram comumente como ponto zero do confronto o aprisionamento do vapor brasileiro Marquês de Olinda, em 12 de novembro de 1864, quando navegava em águas paraguaias, em direção à província do Mato Grosso. E não a intervenção das tropas imperiais, um mês antes, contra o governo constitucional uruguaio, definido pelo Paraguai anteriormente como casus belli. Esse país tinha em Montevidéu seu derradeiro contato livre com o exterior. A historiografia nacional-patriótica constituiu-se sobretudo de descrições patrióticas dos combates e da ação dos oficiais das forças armadas imperiais em defesa da pátria ofendida.

Apologia militar

A historiografia nacional-patriótica brasileira propôs que a guerra fosse contra a ditadura de Solano López, e não contra o povo paraguaio, retomando a argumentação justificadora do Tratado da Tríplice Aliança, acordado secretamente entre o Império e a Argentina mitrista, nos momentos iniciais do confronto. O Uruguai de Venancio Flores constituiu sempre um personagem coadjuvante desses sucessos. O Império e a Argentina mitrista anexaram enormes parcelas dos territórios do Paraguai; impuseram-lhe pesada indenização de guerra; transformaram-no em um semi-protetorado, por anos; promoveram enorme mortandade – alguns autores estimam redução de até 69% da população paraguaia.

As narrativas historiográficas áulicas defrontaram-se sempre com grave paradoxo. Como explicar o imenso esforço militar; as enormes baixas; os mais de cinco anos necessários para que o poderoso Império vergasse, em aliança com a Argentina de Bartolomé Mitre [1821-1906] e o Uruguai de Venâncio Flores [1808-1868], nação de menor importância. Comumente, explicou-se a resistência paraguaia como produto de preparação militar prévia; do fanatismo do soldado guarani ou de seu medo ao ditador. A belicosidade paraguaia foi sempre espécie de Esfinge exigindo decifração e dificultando que a guerra galvanizasse o imaginário patriótico nacional brasileiro.

O Fato e suas Explicações

Durante a própria guerra, intelectuais federalistas argentinos, como Juan Bautista Alberdi [1810-1884] e José Hernández [1834-1886], assinalaram que aquele confronto fora urdido pelo unitarismo portenho em associação com o governo imperial brasileiro, contra a população provincial argentina; contra a autonomia uruguaia; contra a nação paraguaia. Em inícios do século 20, intelectuais paraguaios como Cecílio Baez [1862-1941], Manuel Domínguez [1868-1935], Blas Garay [1873-1899], Juan E. Leary [1879-1969] promoveram esforço autonômico em relação às narrativas historiográficas das nações vencedoras, de forte viés nacional-patriótico. O elogio de Solano López como demiurgo da resistência por parte dessa literatura fundou o chamado lopismo.

Desde os anos 1950, historiadores marxistas e americanistas, sobretudo argentinos, como, entre outros, Enrique Rivera [1922-1995], Milciades Peña [1936-1965], José Maria Rosa [1906-1991], retomando e aprofundando sobretudo as lições de J. B. Alberdi, em trabalhos de significativo valor. Eles propuseram nova ótica analítica daqueles sucessos, que destacava o confronto como urdidura do unitarismo mitrista, em parceria com o governo imperial, e a resistência guarani como esforço em defesa das condições populares de existência e da nação paraguaia.

Negócio genocida

O golpe militar de 1964 certamente retardou a já tardia chegada da historiografia revisionista ao Brasil. Apenas em 1975, foi traduzido ao português o livro Solano López: O Napoleão do Prata, dos italianos Manlio Cancogni e Ivan Boris. Sua reedição teria sido proibida pelo regime militar. Em 1978, o historiador Raul de Andrada e Silva publicou, sem repercussão, o importante trabalho Ensaio sobre a ditadura do Paraguai: 1814-1840, sobre o governo de José Gaspar de Francia [1766-18401]. Em 1979, o jornalista Júlio José Chiavenato lançava, com enorme sucesso, Genocídio americano: a Guerra do Paraguai. Em 1980, o historiador argentino León Pomer teve La guerra del Paraguay: un gran negócio, de 1968, traduzido ao português, sob o título A guerra do Paraguai: a grande tragédia rioplatense.

Sobretudo os trabalhos de Chiavenato e Pomer discutiram o caráter singular da formação social paraguaia, a conjuntura do Prata, criticando duramente a intervenção e a ação da Tríplice Aliança. Eles apresentaram a guerra como ação imperialista e genocida, e suas terríveis conseqüências, promovida ou incentivada pelo capitalismo inglês. Nesse processo, ignoraram ou minimizaram as ações e os objetivos do Império do Brasil e da Argentina mitrista, apontados por J.B. Alberdi e destacados e detalhados sobretudo pela historiografia revisionista argentina.

Um Enorme Sucesso

Apesar dos seus não poucos lapsos factuais e interpretativos, Genocídio americano: a Guerra do Paraguai empreendia por primeira vez no Brasil tentativa de análise das formações sociais envolvidas na guerra e de crítica geral das teses da historiografia patriótico-imperialista, até então hegemônica. Procurava narrar os acontecimentos desde a ótica das populações envolvidas na guerra fratricida, e não mais das classes dominantes nacionais. Em seu trabalho, J.J. Chiavenato privilegiou fortemente a ação de Carlos Antonio López e Francisco Solano López, minimizando o papel das classes populares na construção do Estado paraguaio e no drama subseqüente.

Contribuíram para o sucesso de Genocídio americano o avanço das lutas sociais e políticas no Brasil da época de seu lançamento; sua modernização da narrativa histórica; o posicionamento contra a ditadura, ao desvelar a ação criminosa do Império e da alta oficialidade na guerra. O trabalho influenciou a historiografia e o imaginário histórico brasileiro por longas décadas, galvanizando a difusa memória do rosário de horrores que fora a guerra, semi-soterrado pela retórica nacional-patriótica. Foram raros os trabalhos historiográficos acadêmicos posteriores sobre o tema de viés revisionista. Em 1996, Jorge Luiz Prata de Sousa publicou o importante estudo Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai.

Maré Conservadora

Em fins dos anos 1980, a vitória da contra-revolução liberal aprofundou poderosamente a hegemonia mundial do capitalismo, ensejando correspondente recuo das representações ideológico-culturais que se apoiavam no mundo do trabalho e procuravam interpretar o passado a partir de sua ótica. No campo historiográfico, decretou-se o fim da história como ciência e da interpretação essencial do passado para compreensão e transformação do presente. A história da “vida privada”, do “imaginário”, do “singular”, do “exótico”, etc. negou e fez recuar os esforços analítico-interpretativos sistemáticos do passado. A rejeição das “narrativas totalizantes” valorizou a proposta das novas histórias política e cultural que terminaram restaurando as velhas interpretações idealistas e subjetivas do passado.

A história voltou a ser lida prioritariamente como produto da ação errática de protagonistas excelentes e os fenômenos sociais a serem apresentados como produtos de determinações ideológico-culturais, sempre relativas. Difundiram-se as visões cínicas e justificadoras que naturalizam a opressão e responsabilizam por ela os próprios oprimidos. No Brasil, no relativo à guerra contra o Paraguai, novas narrativas deslegitimaram radicalmente a historiografia revisionista dos anos 1960-70, qualificando-a de autoritária, de populista, etc. Sobretudo, empreenderam literal restauração dos grandes relatos nacional-patrióticos construídos nos últimos momentos do Império e nas primeiras décadas da República, em geral apenas modernizados e refinados.

Maldita guerra

O livro Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai, do historiador Francisco Doratioto, lançado pela Companhia das Letras, em 2002, por seu prestígio acadêmico, constitui exemplo paradigmático do assinalado restauro historiográfico, no que se refere àquele conflito. Originalmente tese de doutoramento, o extenso trabalho – quase quinhentas páginas de texto –, critica explicitamente o revisionismo paraguaio e latino-americanista, que aborda muito sumariamente, propondo-se realizar nova e mais equilibrada leitura dos fatos. A grande intimidade do autor com o tema e com a região do confronto fica registrada na importante revisão bibliográfica e documental que apresenta. O que ajudou a transformar esse estudo, na esteira da maré política, social e intelectual conservadora, em obra de referência.

Nos anos 1950, como vimos, a historiografia revisionista latino-americanista, sobretudo argentina, avançara o conhecimento historiográfico da guerra contra o Paraguai ao ressaltar a necessidade da elucidação do caráter das sociedades em luta, em geral, e do Paraguai, em especial, mesmo se não empreendera a resolução precisa da equação proposta. Uma das singularidades do conflito fora antepor quatro nações – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – organizadas a partir de formas de produção e de formações sociais diversas. Em 1990, em A Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do Exército, obra de transição, Ricardo Salles enfatizou a importância do caráter escravista colonial do Império e empreendeu tentativa de resgate da ação do exército imperial naqueles sucessos.

Escravidão e Trabalho Livre

Nos anos 1860, na Argentina e no Uruguai, imperavam formas de trabalho livre pré-capitalistas, enquanto no Brasil dominava ainda a escravidão colonial. A Argentina, o Uruguai e o Brasil eram organizados, em forma dominante, por modos de produção díspares, apesar de igualmente assentados nas trocas mercantis e na propriedade privada dos meios de produção. Ao contrário, no Paraguai, o Estado controlava boa parte da produção e do comércio internacional e era proprietário de enorme parcela da propriedade fundiária. Sobretudo durante o regime francista [1813-1840], prosperara ou fortalecera-se o pequeno e médio camponês proprietário, arrendatário e comunitário. Quando do início da guerra, o Paraguai era nação onde dominava fortemente a população e a produção camponesa independente.

Em Maldita Guerra, apesar de utilizar as locuções “país guarani” e “nação guarani” como sinônimos de Paraguai, Francisco Doratioto jamais discute as consequências para o conflito da formação sócio-econômica paraguaia assentar-se em população de fortes raízes camponesas, ao contrário da Argentina e do Brasil, como apenas assinalado. População de origens guaranis que desbordava as fronteiras paraguaias. Em 1991, em breve ensaio sobre o tema, A guerra do Paraguai: 2ª visão, esse autor apresentara elucidativa discussão das origens políticas e diplomáticas do conflito, sem jamais contextualizar as quatro sociedades citadas, em arbitrária homogeneização das formações sociais envolvidas no confronto. Apesar do já claro viés nacional-patriótico da pequena e interessante obra, ela não apresenta a tradicional diabolização do chefe de Estado paraguaio e de suas tropas.

Anacronismos históricos

A falta de contextualização histórica e social das nações em confronto em Maldita Guerra, termina resultando no uso anacrônico de categorias como “povo”, “cidadão”, “opinião pública”, etc. para a formação social escravista brasileira, na qual grande parte da população encontrava-se total ou parcialmente, nos fatos ou legalmente, à margem da cidadania. A abordagem essencialmente política dos fenômenos impossibilita igualmente ao autor explicação essencial da belicosidade dos paraguaios e da letargia das tropas imperiais. Esses fenômenos não apenas explicitam o sentido profundo da guerra como foram em grande parte responsáveis pela perpetuação dos combates, muito além do esperado pelos chefes aliancistas.

O que leva Francisco Doratioto a retomar as explicações nacional-patrióticas fantasiosos dos ideólogos do Império e da Argentina mitrista, da tenacidade bélica das tropas guaranis como produto do fanatismo e do controle policial. “Apesar dessa situação, quase não havia deserções nas fileiras paraguaias, devido ao clima de terror imposto por Solano López […].” [2002: 290] Explicações que não coadunam com nação, Estado, exército e meios de comunicação rústicos e, portanto, propícios à deserção de soldados eventualmente tiranizados. E não explicam a rearticulação da resistência, nos sertões paraguaios, após Solano López ter perdido a capital e o controle do aparelho estatal. Foram os exércitos imperiais, argentinos mitristas e uruguaios floristas que conheceram deserções ininterruptas e, em alguns casos, maciças. Deserções que, no caso argentino, comumente registravam oposição política à guerra ao lado do Império.

O Responsável pela Guerra

Francisco Doratioto deduz a origem e a evolução do conflito da personalidade de Solano López, sobre quem lança a responsabilidade total da guerra, ao igual do proposto pelo assinalado Tratado da Tríplice Aliança e, a seguir, pela historiografia nacional-patriótica brasileira e argentina. Paradoxalmente, trata-se de verdadeira adesão ao lopismo, criticado pelo autor, em um viés negativo. Isso apesar do autor apresentar corretamente o confronto, sobretudo em seu estudo sintético de 1991, como tendencialmente inevitável, devido à negativa dos governos imperial e argentino mitrista de conceder o espaço de ação autonômica que o Paraguai exigia e necessitava no Prata.

Em ‘Maldita guerra’, santifica-se a ação das lideranças da Tríplice Aliança – Pedro II, Mitre, Caxias, Osório, etc. –, e demoniza-se Solano López, identificado a Hitler, ingênua personificação moderna da violência social na história. Francisco Doratioto propõe como “identidade entre os dois ditadores” o fato de usarem jovens e velhos em desesperada resistência que teria comprometido seus países. [2002: 409] Aproximação anacrônica que esquece que foram os objetivos e práticas que desqualificaram o nazismo. E não a resistência inexorável, com jovens e velhos armados, utilizada licitamente pela população soviética, naquele confronto, contra o avanço da barbárie fascista.

Negros imprestáveis

Em geral, a retórica desabonadora de Francisco Doratioto estende-se aos dirigentes, aos oficias e aos soldados paraguaios, apresentados como dedicados sistematicamente ao massacre, estupro e roubo, ainda que convenha que, em certos momentos, os soldados aliados procedessem de igual modo. Trata-se de resgate de uma outra constante da historiografia nacional-patriótica. O autor termina sugerindo ter constituído o conflito um choque entre o Brasil, nação monárquica, constitucional e liberal, e o Paraguai, Estado despótico, autocrático e atrasado. Igualmente tese apologética do governo do Império e da Argentina mitrista, antes, durante e após a guerra.

No mesmo sentido, Doratioto jamais discute a possibilidade da inesperada duração dos combates dever-se ao confronto desigual entre um Estado escravista e uma nação de homens livres. Desequilíbrio, em favor do Paraguai, superado apenas pela enorme superioridade de recursos em homens e meios das forças armadas do Império. O próprio Caxias compreendeu o handicap negativo nos combates determinado pelo caráter escravista da sociedade imperial. O velho verdugo de cativos referiu-se a essa realidade ao execrar a qualidade militar dos libertos, “homens que não” compreenderiam “o que é pátria, sociedade e família, que se consideram ainda escravos […]“. [2002: 274.]

Servidão e liberdade

Apreciação compartilhada pelo coronel José Antonio Corrêa da Câmara, que explicou o fracasso de assalto à posição paraguaia por “nossos soldados de infantaria” serem, segundo ele, “os negros mais infames deste mundo, que chegam a ter medo até do inimigo que foge”. [2002: 275] Esqueciam os oficiais negreiros que os cativos pusilânimes, no Paraguai, sob a bandeira do Império, tinham sido, décadas antes, os mais valorosos soldados de Artigas, no Uruguai, sob a bandeira da luta pela liberdade e pela terra, nas palavras do naturalista francês Auguste Saint-Hilaire.

Não enfrentando as questões estruturais subjacentes ao conflito, a narrativa assume tom e conteúdo claramente nacional-patrióticos, como quando propõe terem sido os verdadeiros heróis aliancistas “os [combatentes] que viveram” “nas duras condições de Tuiuti”, “durante dois anos, sem desertar ou pretextar doença”. [2002: 216] Inaceitável julgamento de valor dos atos dos milhares de soldados imperiais, argentinos e uruguaios, que tiveram a sabedoria de obedecer ao sábio preceito plebeu que, se “Deus é grande, o mato é maior”, escafedendo-se de guerra das classes dominantes abominada pelas populações subalternizadas.

Protagonistas ausentes

Restringindo sua descrição à narrativa política, diplomática e militar dos fatos, explicando as origens e dinâmicas da guerra a partir da ação de agentes ilustres, negativos e positivos, Maldita guerra: Nova história da Guerra do Paraguai, de Francisco Doratioto, de 2002, jamais se debruça efetivamente sobre os grandes protagonistas dos acontecimentos estudados, com destaque para a população paraguaia. Fracassa enormemente na explicação de questões centrais, como o sentido e as razões profundas da indiscutível adesão da população paraguaia a Solano López, quando da defesa dos territórios nacionais invadidos pelas tropas brasileiras e argentinas e, portanto, do sentido da desesperada resistência.

Em lugar da explicação da ação das massas na história a partir da intervenção de personagens providenciais, impõe-se o entendimento da gênese de lideranças carismáticas, por mais exóticas, contraditórias e desalinhadas que sejam, como expressão, direta ou oblíqua, permanente ou parcial, das forças e dos interesses sociais profundos. Forças e interesses enfatizados, desviados e frustrados em boa parte pela ação desses protagonistas excelentes. A análise estrutural das condições de vida, dos objetivos e das aspirações das classes populares paraguaias, brasileiras, argentinas e uruguaias, envolvidas no confronto, contribuirá para que se revelem os segredos profundos de um conflito que a historiografia nacional-patriótica, tradicional ou restaurada, esforça-se para manter soterrados há mais de um século.

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Atualização do texto “Paraguai: História e Historiografia” publicado em janeiro de 2003 na revista eletrônica http://www.consciencia.net.

(*) Mário Maestri, 61, é professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, RS. E-mail: maestri@via-rs.net

A Difícil volta do Cristão para Casa

Em 1º de março, celebrando os 140 anos do fim da Guerra Grande [1864-70], no Parque Nacional Cerro Corá, onde Francisco Solano López caiu lutando no último ato de resistência, o vice-presidente paraguaio exigiu a devolução do célebre canhão El Cristiano, trazido como botim de guerra ao Brasil, hoje no Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro.

Federico Franco, na presidência devido à viagem de Lugo ao Uruguai, afirmou que o Paraguai “nunca vai cicatrizar a ferida da epopéia de 1865 a 1870 se o Brasil não devolver o arquivo militar que injustificadamente retém hoje, como também o canhão Cristão […].” Disse esperar que a “mensagem” chegasse a Lula da Silva, para que as devoluções fossem feitas logo, pois considerava “incrível” que o Brasil mantivesse “troféus da guerra”, quando a Argentina e o Uruguai devolveram as últimas recordações daquele excídio. O pedido já fora feito no ano passado.

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Desde 1810, a pressão expansionista de Buenos Aires forçara o Paraguai, para defender sua independência, a esforço autárquico que manteve e expandiu sua produção artesanal e pequeno-manufatureira, enquanto esses setores eram aniquilados na Argentina, Brasil e Uruguai, pela importação de manufaturados ingleses, de melhor qualidade e preço.

Conscientes da insularidade paraguaia, as autoridades guaranis esforçaram-se em apoiar na medida do possível a defesa do país na produção local de armamentos. Após a morte, em 1840, do dr. José Gaspar Rodriguez de Francia, fundador da nação, o presidente Antônio Carlos López enviara, em 1853-54, o filho à Europa, com, entre outras tarefas, a de contratar técnicos para a modernização do país. Desta modernização fez parte a fundação de siderurgia de El Rozado, em Ybycuí, em 1854, destinada à produção de implementos agrícolas e armamentos. A pequena siderúrgica teria sido levada em 1869 para o Brasil, também como presa de guerra.

Desde o início do confronto, o Paraguai enfrentou a Tríplice Aliança com enorme inferioridade de armamentos. O controle do Plata pela Argentina e pelo Império determinou que os exércitos guaranis lutassem durante quase cinco anos sem receber qualquer armamento do exterior, enquanto sobretudo o Brasil comprava o que havia de melhor na Europa.

Durante a guerra, o Paraguai resistiu galvanizando a produção autóctone. Realizou enorme esforço quanto à fundição de canhões de ferro e bronze que, em parte, funcionavam com granadas lançadas em profusão pela artilharia imperial, já que em boa parte não explodiam.

Como parte deste esforço de guerra, foi fundido em Ybycuí e finalizado no arsenal de Assunção, canhão de doze toneladas, fundido com o cobre de parte dos sinos das igrejas do país, lançando balas esféricas de dez polegadas. O El Cristiano estreou na batalha de Curupaity, em 22 de setembro de 1866, a mais estrondosa derrota da Tríplice Aliança. Mais tarde, com o resto dos sinos e com panelas de cobre, produziu-se outro canhão semelhante, o também famoso El Criollo. Dois outros célebres canhões nascidos da arte paraguaia foram o General Díaz, um fracasso, e o Acã Verá.

El Cristiano foi levado para Humaitá, onde se mostrou, com os demais canhões paraguaios, ineficaz contra os encouraçados imperiais. A fortaleza e duas centenas de canhões, entre eles El Cristiano, foram abandonadas aos inimigos pela guarnição, em inícios de 1868. El Criollo escapou por algum tempo do triste destino do irmão mais velho, sendo capturado com a rendição da defesa de Angostura, em dezembro de 1868.

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No dia 3 de março, Lula da Silva teria determinado o fim do longo seqüestro de El Cristiano. Sobre os importantes papéis mantidos em sigilo, nada foi dito ou decido.

Tramita na Câmara dos Deputados regulamentação do direito de consulta da documentação pública. Em geral, na Europa e nos USA, o governo pode manter documentos sob sigilo por cinqüenta anos. No Brasil, o Estado mantém a tradição majestática colonial de guardar sob chaves indefinidamente os papéis, quando quer. Nessa situação encontram-se documentos sobre a expansão das fronteiras do Brasil, a Guerra do Paraguai, a ditadura militar, os acordos para a construção de Itaipu.

No projeto de lei, o Estado manteria papéis sob sigilo por até setenta e cinco anos! Proposta que determinaria a publicidade imediata dos documentos sobre a Guerra do Paraguai. E empurraria com a barriga, por alguns anos, os sobre a ditadura e Itaipu. Ambos, assuntos candentes, devido aos crimes de Estado de 1964-85 e às condições impostas pela ditadura brasileira à paraguaia, quando daquele acordo, e às denúncias de mortes e torturas de operários durante as obras da usina.

Parece difícil que as feridas abertas pela guerra cicatrizem-se com a devolução do botim e revelação da documentação. Mais do que a perda territorial e a enorme indenização paga pelo Paraguai, a grande chaga na carne daquela população foi a liquidação da forte comunidade camponesa proprietária e arrendatária, que entregou literalmente a vida combatendo o avanço de invasores. Ela sabia ou intuía que eles chegavam para impor a ordem liberal-latifundiária reinante em suas nações.

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(*) Mário Maestri, 61, historiador, é professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF. Sobre o tema, ver, do autor: “A guerra do Paraguai: história e historiografia” (clique aqui). E-mail: maestri@via-rs.net