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A escolha é entre seguirmos vivendo, ainda que de forma insatisfatória, ou matarmos uns aos outros pelas ruas

“O anseio meu nunca mais vai ser só / Procura ser da forma mais precisa / o que preciso for/ pra convencer a toda gente / que no amor e só no amor / há de nascer o homem de amanhã” (Geraldo Vandré, “Bonita”)

decisão que estaremos tomando neste domingo (28) transcende ideologias. É uma opção entre seguirmos vivendo, ainda que de modo insatisfatório, ou nos matarmos uns aos outros pelas ruas.

Temos, de um lado, o representante de um partido de esquerda que deixou de verdadeiramente lutar contra os poderosos desta sociedade, limitando-se a tentar ser por eles aceito como sócio minoritário. Não é, nem de longe, o governo que eu quero.

Só que, do outro lado, está um amontoado de ferrabrases alucinados por imporem ao restante da sociedade, a ferro e fogo, seus valores e modo de ser, numa esquisita associação com os oportunistas de sempre e os piores fisiológicos do esgoto da política brasileira.

Com o Fernando Haddad corremos o risco de voltar ao pacto dos explorados com os exploradores que perdurou enquanto Lula era presidente da República, no qual o primeiro contingente cedia muito e recebia em troca algumas migalhas, enquanto o segundo contingente cedia um tiquinho e recebia em troca privilégios injustificados e uma relativa paz social.

Com o Bolsonaro a promessa é de turbulências de todo tipo, com hordas caçando quem pensa, age, transa ou tem cor diferente, além de previsíveis confrontos com o Legislativo e o Judiciário quando suas propostas inconsequentes esbarrarem na dura realidade dos fatos e a opção for abandoná-las ou enfiá-las pela goela da sociedade adentro à base da porrada nas instituições e nos cidadãos.

Teríamos, reunidos num governo só: 

— a índole irascível de um Jânio Quadros, que não suportava o questionamento de seus planos mirabolantes e acabou tentando obter poderes ditatoriais mediante um autogolpe desastrado;
— a falta de um verdadeiro partido de sustentação, que obrigou Fernando Collor a montar um amplo esquema de corrupção para agraciar seus companheiros de primeira hora e saciar o apetite pantagruélico dos parlamentares de aluguel, até que os partidos poderosos uniram-se para dar um fim ao seu mandato; e
— a crassa incompetência econômica de Dilma Rousseff, principal responsável pela pior recessão brasileira de todos os tempos. 

Não é preciso ser nenhum Nostradamus para vaticinar que seria mais um governo sem prazo de validade de um quadriênio (só por milagre completaria um único ano!). 

Tão logo os iludidos pela pregação fantasiosa/rancorosa de Bolsonaro caíssem em si, constatando que os problemas antigos não estariam sendo resolvidos e muitos novos sendo criados, as cobranças começariam, depois as manifestações de rua, depois a repressão, depois mais revolta, depois mais repressão, até chegarmos ao caos, talvez a um autogolpe, talvez a um golpe militar. 

Este último é antiquado? Já parecia ser página virada em 1964, pelo menos em termos de grandes nações, mas reabrimos o ciclo e muitos outros vieram na esteira!

Enfim, votar contra Bolsonaro é o primeiro passo para o apaziguamento da sociedade brasileira, quando ela completa quatro anos perdidos por causa de um radicalismo que detona tudo e nada constrói, criando um ambiente tão desfavorável aos investimentos que a economia permanece indefinidamente patinando sem sair do lugar, enquanto o povo sofre e se desespera com uma penúria sem fim.

Sei que a decadência irreversível do capitalismo atingiu um novo patamar e não conseguiremos sequer reeditar a pequena melhora da década passada, mas ainda há como o sistema ao menos oferecer um respiro para os mais pobres recuperarem o fôlego. E nem isto teremos com o país em chamas, a consequência lógica da sociopatia extremada de Bolsonaro e o furor homicida de suas hordas de seguidores, caso o louco venha a assumir a administração do hospício.

Já deixamos pelo caminho muitos valores fundamentais da vida civilizada ao longo desta década maldita. Agora, a porta que se abre é para sairmos definitivamente da civilização, trocando o amai-vos uns aos outros pelo odiai-vos uns aos outros e por matai-vos uns aos outros.

Amanhã poderemos ter nossa última chance de impedir que o Brasil vire um péssimo lugar para se viver nos próximos anos e até sabe-se lá quando.

Temos nas mãos o nosso destino, o daqueles a quem amamos e o dos que virão depois de nós. Se cedermos à tentação de um desabafo inconsequente, não só estaremos brincando com fogo, mas condenando todos os brasileiros a se queimarem também! (Celso Lungaretti)

Leia a análise, veja o filme: “Jonas, que terá 25 anos no ano 2000” profetizou um novo 1968.

A fênix revolucionária renascerá das cinzas?

“O anseio meu nunca mais vai ser só
Procura ser da forma mais precisa
O que preciso for
Pra convencer a toda gente
Que no amor e só no amor
Há de nascer o homem de amanhã”
(
Geraldo Vandré, Bonita
)

O ideário político dos contestadores de 1968 é pouco lembrado e menos ainda reverenciado, já que não convém aos que hoje confrontam, a partir de posições ortodoxas, o capitalismo e suas inúmeras mazelas (desigualdade social, ganância e competição exacerbadas, parasitismo, mau aproveitamento do potencial produtivo que hoje seria suficiente para proporcionar-se uma existência digna a cada habitante do planeta, danos ecológicos, etc.).

Nas barricadas parisienses, gritando slogans como a imaginação no poder e é proibido proibir, muitos estudantes erguiam as bandeiras negras do anarquismo, que marcara forte presença nos movimentos revolucionários do século 19, mas havia perdido terreno desde a vitória do bolchevismo em 1917.

A tentativa de construção do socialismo em países isolados e economicamente atrasados já se evidenciava desastrosa, por degenerar em totalitarismo. A URSS e seus satélites, bem como a China e Cuba, sacrificavam uma das principais bandeiras históricas das esquerdas, a liberdade, para priorizarem a outra, a igualdade.

 Revolução traída: o poder usurpado pela nomenklatura.

E nem a esta última conseguiam ser totalmente fiéis. Propiciavam, sim, melhoras materiais significativas para os trabalhadores, mas nem de longe extinguiram os privilégios, tornando-os até mais afrontosos ao substituírem as antigas classes dominantes por odiosas nomenklaturas (as camadas dirigentes do partido único e as burocracias governamentais, que se interpenetravam e coincidiam na justificativa/imposição de seu status de mais iguais).

O desencanto dos jovens europeus com o socialismo real  se somou à constatação de que o proletariado industrial das nações prósperas se tornara baluarte, e não inimigo, do capitalismo. Seduzido pelos avanços econômicos que vinha obtendo, preferia tentar ampliá-los do que apostar suas fichas numa transformação radical da sociedade. Ou seja, face à célebre alternativa de Rosa Luxemburgo –reforma ou revolução?– os aristocratizados operários do 1º mundo optaram pela primeira, como Edouard Bernstein previra.

Em termos teóricos, o filósofo Herbert Marcuse já dissecara tanto o desvirtuamento do marxismo soviético quanto a transformação do capitalismo avançado num sistema impermeável à mudança, a partir da sedução do consumo, da eficiência tecnológica e da influência atordoante da indústria cultural, que estava engendrando um homem unidimensional (incapaz de exercer o pensamento crítico).

68 francês: ensaio de uma revolução de novo tipo.

Foi ele a grande inspiração dos jovens contestadores de 1968, mesmo porque praticamente augurara sua entrada em cena, assumindo o papel de vanguarda que o proletariado deixara vago.

Para Marcuse, somente os descontentes com a sociedade (pós) industrial –intelectuais, estudantes, boêmios, poetas, beatniks e demais outsiders– perceberiam seu totalitarismo intrínseco e seriam capazes de revoltar-se contra ela. Os demais, partícipes do sistema como produtores e consumidores, seguiriam mesmerizados por sua racionalidade perversa.

O diagnóstico de Marcuse acabaria sendo melancolicamente confirmado quando esses descontentes colocaram a revolução nas ruas de Paris e o proletariado lhes voltou as costas, preferindo arrancar pequenas concessões de De Gaulle do que apeá-lo do poder. O Partido Comunista Francês, comprando uma passagem de ida sem volta para a irrelevância, desempenhou papel decisivo na manutenção do status quo e consequente salvação do capitalismo na França.

Mas, o esmagamento das primaveras de Paris e de Praga não conteve o impulso dessa nova maré revolucionária, que continuou pipocando nos vários continentes, com especial destaque para a contracultura e o repúdio à Guerra do Vietnã por parte da juventude estadunidense.

Guerra do Vietnã: as flores venceram o canhão.

Foi, principalmente, nos EUA que os novos anarquistas se lançaram à criação de comunidades urbanas e rurais para praticarem um novo estilo de vida, solidário e livre. Substituíam os antigos laços familiares pela comunhão grupal – ou, como diziam, tribal – e dividiam fraternalmente as tarefas relativas à sua sobrevivência, tal como sucedia nas colônias cecílias de outrora.

A ideia era a de irem expandindo a rede de territórios livres até que engolfassem toda a sociedade. Então, em vez de colocarem a tomada do poder como ponto-de-partida para as transformações sociais, deflagradas de cima para baixo, eles pretendiam expandir horizontalmente seu modelo, pelo exemplo e adesão voluntária (nunca pela coerção!), até que se tornasse dominante.

Acreditavam que, descaracterizando seus ideais para conquistarem os podres poderes, os revolucionários acabavam sendo mudados pelo mundo antes de conseguirem mudar o mundo. Então, era preciso que ambos os processos ocorressem simultaneamente: deveriam construir-se como homens novos à medida que fossem construindo a sociedade nova.

Veremos concretizada a profecia do filme Jonas?

Esse anarquismo renascido das cinzas e atualizado foi o último grande referencial revolucionário do nosso tempo, daí despertar até hoje a simpatia dos jovens que buscam a saída do inferno pamonha do capitalismo (uma definição antológica do Paulo Francis!) e a ojeriza daquela esquerda que ainda se restringe aos projetos de conquista do poder político.

A questão é se, como em outras circunstâncias históricas, a maré revolucionária será novamente retomada a partir do último ápice atingido (mesmo que com intervalo de décadas entre os dois ascensos).

Os artistas, antenas da raça, creem que sim. Desde o genial cineasta suíço Alain Tanner (Jonas, Que Terá 25 Anos no Ano 2000), para quem as vertentes e tendências de 1968 voltarão a confluir, reatando-se os fios da História; até nosso saudoso Raul Seixas, que nos aconselhava a tentarmos outra vez e tantas vezes quantas fossem necessárias, não dando ouvidos às pregações tendenciosas da mídia contra a geração das flores e das barricadas..

NOS DEPRESSIVOS ANOS 70, ESTE FILME MANTEVE A ESPERANÇA DE QUE O SONHO NÃO HAVIA ACABADO.

(clique aqui para assistir ao filme, na íntegra e com legendas em português)

Um dos filmes com intenções políticas mais poéticos da história do cinema, Jonas que terá 25 anos no ano 2000 (lançado em 1976) mostra uma Suíça que, em meados da década de 1970, está em plena normalidade capitalista, nada restando dos ventos de mudança que sopraram em 1968 afora indivíduos isolados que representam facetas das utopias cultuadas pela geração anterior. 

Já não existe um projeto coletivo a imantar tais vertentes, mas os pequenos profetas (como o ótimo diretor Alain Tanner  os qualificou em entrevistas) continuam tentando levar adiante, isoladamente, aquilo no que creem. São oito, todos com os nomes iniciados por M (de maio, o mês das barricadas francesas).

Uma teia de circunstâncias inesperadas os vai colocando em contato, até que os oito se reúnem numa única ocasião, congraçando-se na fazenda do personagem que se dedica ao cultivo de vegetais sem contaminação química. É quando almoçam exultantes, numa sequência, belíssima, que simboliza a Santa Ceia. 

O personagem Mathieu, seguindo as pegadas de Rousseau.

Bem naquela fase e sob tais auspícios, o casal de fazendeiros gera um filho, que será Jonas, evocando o profeta que foi engolido pela baleia mas sobreviveu, assim como o filme acena com a esperança de que a criança sobreviverá à gordura capitalista para, no ano 2000, corporificar uma nova e definitiva síntese dos ideais dos pequenos profetas.

Embora o filme não esclareça como isto se dará, parece destacar sobretudo a via representada pelo personagem Mathieu (São Mateus?), que Rufus interpreta. Ele quer educar as crianças de forma que não percam sua bondade natural, escapando ilesas aos condicionamentos ideológicos que uma sociedade corrupta lhes tenta impor, mais ou menos como Jean-Jacques Rousseau preconizou em Emílio, ou Da Educação

Quando nos aproximamos da comemoração do cinquentenário das jornadas de 1968, Jonas… é um filme simplesmente obrigatório. Até por colocar em discussão o que realmente vale a pena discutirmos: se 1968 foi uma primavera que passou em nossas vidas ou o ensaio geral de uma revolução que ainda chegará?

*  *  *

Esta digressão, que começou citando uma pungente canção de Vandré, merece ser encerrada com um desabafo, que talvez venha a se revelar profético, do bravo guerreiro Raulzito: “Todo jornal que eu leio/ Me diz que a gente já era/ Que já não é mais primavera/ Oh baby, oh baby,/ A gente ainda nem começou”..

Nem Vitor Nuzzi decifrou o ‘enigma Vandré’, nem a esfinge o devorou.

Desde 1985 Vitor Nuzzi se interessava pela trajetória do cantor e compositor Geraldo  Vandré, o principal expoente da resistência musical à ditadura militar durante os anos 60 (na década seguinte, tal papel seria desempenhado por Chico Buarque). Segundanista de Jornalismo, descobriu em 1985 o telefone do artista e disse estar querendo conversar com ele sobre um trabalho para a faculdade. 

Foi recebido no apartamento que Vandré ainda possui na rua Martins Fontes, próximo ao prédio que durante muitas décadas sediou o jornal O Estado de S. Paulo, na capital paulista. A conversa foi cordial, mas breve.

Quando Vandré se tornou septuagenário, em setembro de 2005, Nuzzi  temeu que ele mergulhasse cada vez mais no esquecimento; decidiu, então, assumir como sua a tarefa de apresentá-lo às novas gerações.

Foi um trabalho longo e abrangente como bem poucas biografias brasileiras. Entrevistou mais de 100 pessoas (inclusive esta que vos escreve), garimpou informações em 51 livros e 29 jornais/revistas. Com isto, pôde reconstituir nos mais ínfimos detalhes a história do artista.

Cheguei, em tempos idos, a indagar-lhe o que faria com tudo isto, já que Vandré dificilmente daria aval para a publicação e as biografias não-autorizadas eram um risco que as editoras não queriam assumir depois de Roberto Carlos impugnar judicialmente uma que contou verdades indigestas a seu respeito. Nuzzi disse que iria tocando seu trabalho, deixando para o final a escolha de uma linha de ação. Tinha esperança de que a liberdade de opinião e de expressão acabassem prevalecendo.

Nuzzi: algumas dúvidas subsistiram.

Acabou pagando 100 exemplares do seu bolso e distribuindo-o aos amigos, em maio de 2015. Um mês depois, contudo, o Supremo Tribunal Federal  fulminou por 9×0 a censura que figuras públicas queriam impor a quem fizesse abordagens independentes sobre elas, ao invés dos textos expurgados e bajulatórios que os Roberto Carlos da vida preferem ler.

E a odisseia de Nuzzi, depois dos mesmos 10 anos que durou a descrita por Homero, teve final feliz, com o lançamento, no final do ano, de Geraldo Vandré: uma canção interrompida (Karup, 2015, 352 p.)

É um trabalho de fôlego e muito bem escrito; tem qualidade superior, na minha opinião, à das obras congêneres de biógrafos famosos como Fernando Moraes e Rui Castro. Quem não acompanhou a trajetória de Vandré, certamente se deslumbrará. 

E mesmo os contemporâneos de sua trajetória ficarão conhecendo muita coisa nova. Recomendo enfaticamente, ainda que o autor tenha feito a ressalva de que “vão continuar misteriosos” muitos pontos obscuros acerca do exílio e comportamento posterior de Vandré.

“Ele foi um rei, e brincou com a sorte“…

Acredito, contudo, que seria impossível, mesmo com o extremo profissionalismo e detalhismo de Nuzzi (a ponto de distribuir, junto com A canção interrompida, um relato mimeografado sobre as crônicas que Vandré escreveu durante alguns meses para um jornal de Campinas, certamente porque não deu tempo para acrescentar este capítulo ao livro), decifrar todos os enigmas da vida de quem insiste até hoje em permanecer enigmático. 

Até porque Nuzzi, nascido em 1964, escreveu sobre muitas coisas de que só tomou conhecimento a posteriori. Talvez não haja, p. ex., conseguido consultar os números antigos mais cruciais do jornal Folha da Tarde, que foi um veículo simpático à esquerda até que, como um porta-voz dos patrões admitiu há cinco anos, sua linha foi diametralmente alterada em 1969, tendo a direção sido entregue “a jornalistas entusiasmados com a linha dura militar” (vários deles eram policiais)”, como “uma reação da empresa à atuação clandestina, na Redação, de militantes da ALN”. 

Mas, foi nesse jornal que já não existe com tal nome (teve como sucessor o Agora São Paulo) e cuja memória é geralmente identificada com o impopular papel desempenhado a partir de 1969, que acompanhei, em 1967 e 1968, episódios como o da vitória da banal Sabiá no III Festival Internacional da Canção da Rede Globo, quando a ridícula decisão de júri provocou a maior vaia da história dos festivais de MPB. 

…”Hoje ele é nada, e retrata a morte”.

E foi na Folha da Tarde que tomei então conhecimento, num artigo de autoria do grande radialista Walter Silva (o Pica-Pau, falecido em 1999) desta informação abaixo, que eu aproveitaria numa longa reportagem escrita para a revista Especial em 1980:

Walter Silva ainda foi responsável por ter deixado um gravador ligado na sala do júri do III Festival Internacional da Canção, em 1968, no Maracanãzinho, no Rio, e depois denunciar a impostura na edição de 2ª feira do jornal paulista Folha da Tarde, provando que o presidente do júri, Donatelo Grieco, pressionara seus colegas para que não premiassem músicas que fazem propaganda da guerrilha. Este alegava que, caso contrário, haveria retaliações da ditadura. Era uma referência à música Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores (ou, simplesmente Caminhando, de Geraldo Vandré.

Nuzzi obteve a confirmação de que houve mesmo pressão dos militares sobre os organizadores do festival, mas publica também declarações dos membros do júri negando terem sido pressionados. Cabe uma pergunta: pessoas famosas admitiriam que lhes faltou coragem para premiar a canção política mais importante da História brasileira, ignorando o clamor do público, como se fossem estetas numa torre de marfim? 

Walter Silva denunciou: foi mesmo marmelada!

Por toda a convivência pessoal e profissional que já tive com essa gente, eu diria que afinaram e hoje tentam salvar suas imagens. Se há algo que o jornalismo me ensinou, foi a nunca dar 100% de crédito a entrevistado nenhum.

Também é inverossímil ao extremo que os responsáveis pelo FIC, com a espinha flexível que era marca registrada dos profissionais da Globo nos anos de chumbo, tivessem ousado guardarem para si as ameaças dos fardados, torcendo para que, espontaneamente, o júri não premiasse nem a Caminhando, nem a América, América, de César Roldão Vieira (outra que a caserna impugnara). Fala sério…

Lamentavelmente, tive em mãos esse recorte da Folha da Tarde há 35 anos, mas não o possuo mais. Se armazenasse tudo que citei nos meus textos, precisaria de um quarto só para isso.

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SEQUESTRADO NO AEROPORTO  E INTERNADO 

POR 58 DIAS NUMA CLÍNICA CARIOCA. PARA QUÊ?

Quanto ao comportamento esquisito e errático de Vandré desde que voltou do exílio em 1973, todas as informações que Nuzzi levantou são conclusivas quanto ao fato de que Vandré não foi torturado antes de deixar o Brasil e dificilmente o terá sido na volta negociada para o País.

Tão aguardada, tão frustrante.

Estava em más condições psicológicas e com a saúde debilitada nos últimos tempos de exílio. Foi sequestrado discretamente pela ditadura no aeroporto e, um mês depois, a Globo o exibiu no Jornal Nacional como se estivesse desembarcando naquele instante.

Parece ter ficado 58 dias (antes e depois da entrevista ao JN) recebendo tratamento psiquiátrico. E, ao revê-lo em 1980 (estivera com ele em junho de 1968, quando ainda fazia correções na letra da Caminhando), papeamos durante horas no apê da rua Martin Fontes. Eis a impressão que me causou:

Reparei que ele continuava lúcido, ao contrário das versões de que teria ficado xarope por causa das torturas. Mas, perdera a concisão e clareza. Seus raciocínios faziam sentido, mas davam voltas e voltas até chegarem ao ponto. Para entender a lógica do que ele dizia, eu precisava ficar prestando enorme atenção. Era exaustivo.

O mais importante que ele disse: estaria na mira de organizações de extrema-direita, inconformadas com o gradual abrandamento do regime.

A censura finalmente liberara Caminhando, que fazia sucesso na voz de Simone. Vandré explicou que tinha de passar-se por louco pois, se ele tentasse voltar à tona junto com a música, seria assassinado.

Entrevista ao Globo News deixou os admiradores perplexos

Ou seja, ainda não estava tão aniquilado como o veríamos, com imenso pesar, naquela entrevista concedida em 2010 ao canal Globo News.

A menos que algum militar, algum médico ou algum enfermeiro abra o bico, jamais saberemos o que aconteceu com Vandré enquanto esteve internado (rigorosamente isolado dos demais pacientes) numa clínica do bairro de Botafogo, RJ. 

Reafirmo a convicção que formei após assistir àquele melancólico programa, de que ele foi submetido a uma lavagem cerebral, A terapeuta brasileira Adriana Tanese Nogueira, radicada nos EUA, considerou plausível:

É como se, de alguma forma, tivessem conseguido reprogramar o cantor de modo a manter sua aparente sanidade mas atuando em modo diferente

Celso Lungaretti sustenta a tese da lavagem cerebral, não em sentido amplo, mas estrito. Ela acontece quando se submete uma pessoa a uma condição de total dependência de seus carcereiros.

Adriana Tanese: mente reprogramada.

Estes controlam tudo o que a pessoa faz, desde o que e quando ela come e vai ao banheiro, até o sono e todos seus movimentos. Dá para imaginar o que isso significa? Estar totalmente à mercê do inimigo cruel?

Após um tempo assim, por instinto de sobrevivência e busca de sentido (para não ficar louca), a vítima passa do sentimento de pânico e abandono total àquele de buscar conivência com seus algozes. Se, além dos cuidados materiais pelos quais a vítima passa, são-lhe ministrados também cuidados psicológicos, tipo ensinar-lhe o que ela deve pensar e acreditar, temos um prato cheio para compreender a esquisita entrevista de Geraldo Vandré à Globo.

Já o perfil de Vandré que se depreende da enxurrada de depoimentos de pessoas que o conheceram melhor do que eu me fez perceber que era totalmente infundada a hipótese que levantei, de que ele haveria entrado (ou fingido estar) em parafuso por não estar suportando o fato de que seu comportamento diante do inimigo ficara bem abaixo da imagem que tinha de si mesmo.

Levei a sério demais a constatação de que, dos compositores engajados daquela época, ele era o único a se colocar, na 1ª pessoa, como personagem de suas letras. Todos os demais contavam histórias genéricas, tendo como heróis o morro, povo, os camponeses, os operários, Che Guevara, Zumbi, Tiradentes, etc.

Caetano também sofreu muito com o exílio

Em Aroeira, o narrador (Vandré) declara estar “escrevendo numa conta/ pra juntos a gente cobrar/ no dia que já vem vindo/ que este mundo vai mudar”. E alerta os marinheiros (os colonizadores portugueses) que está próxima “a volta do cipó de aroeira/ no lombo de quem mandou dar”.

Bonita é uma guarânia na qual um presumível guerrilheiro tenta explicar à sua amada que não a pode tomar naquele instante e (como poderá morrer seguindo o destino que escolheu) talvez ela só venha novamente a saber dele “se um dia encontrares alguém/ que te cante meus versos”.

Há outras. A mais explícita de todas, Terra plana, traz este desafio que o combatente lança a um militar: “Se um dia eu lhe enfrentar/ Não se assuste, capitão/ Só atiro pra matar/ E nunca maltrato não/ Na frente da minha mira/ Não há dor nem solidão/// E não faço por castigo/ Que a Deus cabe castigar/ E se não castiga ele/ Não quero eu o seu lugar/ Apenas atiro certo/ Na vida que é dirigida/ Pra minha vida atirar”.

A canção interrompida me fez cair a ficha: Vandré havia dado um duro danado para se tornar artista vitorioso e era exatamente isto que ele queria ser. Acreditava nos ideais da esquerda e era favorável à luta armada, mas nunca como causas às quais se pretendesse engajar como militante. Cansava de repetir que sua atuação não era partidária.

A sensibilidade de artista o levava a incluir tais fantasias em suas músicas, mas ele apenas se colocava imaginariamente no lugar dos revolucionários e dos guerrilheiros. Não queria ser uma coisa nem outra. 

Daí ter-lhe pesado tanto o fardo que passou a carregar em suas andanças de judeu errante pelo mundo: se formiga aguentaria, mas, cigarra, não estava preparado para tais rigores,  O exílio o desconstruiu antes mesmo de os militares o terem à sua mercê; e isto, certamente, lhes facilitou a tarefa de reprogramá-lo, como disse a Adriana. 

E lá se foi outra das fantasias que nos ajudavam a manter a sanidade durante aqueles anos terríveis! Ainda assim continuo lamentando —e muito!— que esse extraordinário artista tenha caído numa armadilha da História, acabando por ser destruído. 

Nunca haverá desculpa para os que fizeram desabar tamanha tempestade em cima de um músico, apenas por ele ter composto uma canção que expressou o sentimento de todo um povo. 

Como bem lembrou o Benito de Paula, “esse trapo, esse homem um dia foi um rei”.

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OS MELHORES POSTS DO “NÁUFRAGO” SOBRE O VANDRÉ (clique p/ abrir):

  1. DE COMO UM HOMEM PERDEU O SEU CAVALO E CONTINUOU ANDANDO
  2. VANDRÉ: DILACERANTE
  3. VANDRÉ: DE REI A TRAPO EM 58 DIAS
  4. AINDA SOBRE O ARTISTA MÍTICO QUE HABITA A MEMÓRIA DE SUA CANÇÃO
  5. ADRIANA TANESE NOGUEIRA: “UMA ANÁLISE DE VANDRÉ”
  6. A ÉPOCA DE OURO DA MPB 12, 34 e 5
  7. QUEM DEU SUMIÇO NO VÍDEO DO VANDRÉ, A DITADURA OU A TV RECORD?
  8. “TANTA VIDA PRA VIVER/ TANTA VIDA A SE ACABAR/ COM TANTO PRA SE FAZER/ COM TANTO PRA SE SALVAR”
  9. RARIDADE: VANDRÉ INTERPRETANDO A CANÇÃO QUE COMPÔS PARA GUEVARA.
  10. VEJA AQUI UM VÍDEO RARÍSSIMO DE VANDRÉ NO EXÍLIO

Textos, vídeos e fotos regatam o período mais marcante de nossa música em todos os tempos.

 

Trabalhando numa editora de publicações musicais entre 1979 e 1984, fiz aprofundadas pesquisas sobre os grandes festivais de MPB e o programa “O Fino da Bossa”, para redigir os textos de edições dedicadas a cada um desses temas. Depois, em 1983, reuni o que havia de mais significativo nesse material todo no nº 54 da revista “Especial”.

Exatamente por dar uma visão ao mesmo tempo sintética e abrangente do período mais fértil e criativo de toda a história da música brasileira, foi a versão de 1983 que decidi digitar e editar para o blogue.

Nas últimas cinco semanas, repostei a série inteira, com um acréscimo importante: os vídeos que hoje estão disponibilizados no Youtube, permitindo que uma nova geração de leitores tome contato de forma bem mais direta com o passado relatado nos textos e registrado nas fotos. Eis os posts:

O PRIMEIRO GRANDE FESTIVAL COMPLETA 50 ANOS

Brasil, 1965. A repressão que se abatera sobre sindicatos, partidos políticos e entidades estudantis não foi estendida às artes, cuja importância como fator  subversivo  até então vinha sendo quase nenhuma.

O teatro de denúncia, os Centros Populares de Cultura da UNE, o cinema novo, tudo isso repercutira tão pouco que os militares se permitiram adotar, com relação à cultura, uma postura de  déspotas esclarecidos

Como consequência, os palcos e telas começaram a ser catalizadores do repúdio ao regime e das esperanças de uma reviravolta popular, no lugar dos canais de comunicação que permaneciam bloqueados… CONTINUA AQUI.

‘BANDIDOS’ CONTRA ‘DISPARATADOS’

Vandré se destaca também, à época, pela extraordinária trilha musical do filme A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, na qual pontificam “Réquiem para Matraga”, “Modinha” (“Rosa, Hortência e Margarida”) e a vigorosa “Cantiga Brava”.

E confirma a boa fase com “Disparada”, dele e Théo de Barros, uma das vencedoras do 2º Festival da Música Popular Brasileira que a TV Record promoveu em setembro/outubro de 1966.

Épico sertanejo, “Disparada” coroa as pesquisas de Vandré no sentido de definir um idioma musical comum ao Centro-Nordeste e às pessoas egressas dessas regiões que se estabeleceram no chamado  Sul Maravilha, mas ainda traziam as marcas do êxodo rural… CONTINUA AQUI.

MATANDO A GALINHA DOS OVOS DE OURO

sucesso de O Fino fez brotarem os concorrentes, paradoxalmente quase todos também da TV Record;  a exceção ficou por conta de Ensaio Geral, da TV Excelsior, com Gil, Bethânia, Marília Medalha e outros, que durou uns quatro meses, no início de 1967.

A emissora do Aeroporto, mais ambiciosa, diversificou sua linha de produtos a ponto de, praticamente, apresentar um show a cada dia da semana:

  • Bossaudade, que reunia a  velha guarda, sob o comando de Elizeth Cardoso;
  • Elza Soares e Germano Mathias (samba do morro e do asfalto);
  • Pra ver a banda passar, com Chico Buarque e Nara Leão;
  • Show em Si-monal (com os expoentes da chamada  pilantragem; e
  • Disparada, com Geraldo Vandré.

O resultado foi o enfraquecimento de O Fino, privado de várias atrações, sem que os outros programas decolassem… CONTINUA AQUI.

FESTIVAL DE FESTIVAIS QUE ASSOLOU O PAÍS

Caminhando” foi o ápice da carreira de Vandré e também causa maior de seus infortúnios

O ano de 1968 registraria uma verdadeira  overdose  de festivais.

Erro de cálculo: eles já haviam cumprido sua função, de renovação estética e revelação de uma geração de artistas que dominaria a cena brasileira, pelo menos, durante a década seguinte inteira.

E a política, que até então se expressara por meio da música e ajudara a alimentar o interesse por esses eventos, agora se jogava definitivamente nas fábricas, escolas e ruas.

Inventaram festivais de todo tipo: de Música Carnavalescados Presidiáriosdo Violão.

O mais duradouro dessa safra tardia foi o Universitário da Canção, promovido pela TV Tupi, que se aguentou até 1971… CONTINUA AQUI.

A INÚTIL E AGÔNICA BUSCA DO APOGEU PERDIDO

No 7º FIC (1972), o amargo fim: muitos artistas e pouco talento no palco.

N4º Festival da Música Popular Brasileira, que a Record realizou em outubro/novembro de 1968, a censura já dava as cartas, toda poderosa. Tom Zé, p. ex., teve de trocar “o empregador que condena/ um atentado por quinzena” (referência às ações armadas) por “o pregador que condena/ um festival por quinzena”!!!

Como novidade, houve duas relações de premiados.

júri especial (críticos e artistas ilustres) escolheu “São, São Paulo, meu amor”, de Tom Zé, seguida de “Memórias de Marta Saré” (Edu Lobo/Gianfrancesco Guarnieri), “Divino Maravilhoso” (os autores Caetano e Gil, até em razão da má experiência com o FIC, cederam a música e o palco para a tímida Maria das Graças se metamorfosear na agressiva Gal, sob óbvia influência de Janis Joplin), “2001” (Tom Zé/Rita Lee) e “Dia da Graça” (Sérgio Ricardo)… CONTINUA AQUI.

OUTROS TEXTOS RECENTES DO BLOGUE NÁUFRAGO DA UTOPIA (clique p/ abrir):

Companheiro Mané? Presente! Agora e sempre!

 

Presos políticos visitados por d. Eugênio Sales, no RJ; o Mané é o de camisa xadrez.

Fiquei arrasado ao tomar conhecimento da morte do estimado companheiro e amigo Manoel Henrique Ferreira, o Mané. Deveria estar com 62 ou 63 anos e sofria de uma doença degenerativa, a ataxia cerebelar, que certamente foi causada ou agravada pelas bestiais torturas a que o submeteram.
Eu o conheci quando organizava a Frente Estudantil Secundarista na zona Leste paulistana, em 1968. Estudava, se bem me lembro, num colégio da Vila Zelina. Logo se tornou um dos líderes do nosso movimento.
Suas convicções revolucionárias se expressavam também na música: tocava violão e cantava muito bem, principalmente as canções do Geraldo Vandré.
Em junho daquele ano, quando passamos algumas horas papeando com o compositor num boteco da rua Maria Antônia, apareceu um violão e ele pôde mostrar ao ídolo como interpretava suas criações.
É assim que sempre me lembrarei do Mané, romântico, esperançoso, convicto. Sua sinceridade era transparente e comovente.
Quando, no final de 1968, evidenciou-se que o movimento de massas se tornara inviável sob o terrorismo de estado pleno que o AI-5 instaurou, ele optou por continuar lutando da forma que ainda era possível, na clandestinidade.
Mané e Gilney Viana no início da greve de fome pela anistia

De quase uma centena de estudantes aglutinados na nossa Frente, apenas oito nos dispusemos a correr os riscos da luta armada; Mané não hesitou nem um instante.

Ingressamos juntos na VPR e nunca mais o vi, pois nossas incumbências na organização seriam diferentes.
Soube de sua via crucis nas garras dos torturadores, coagido a renegar a militância; denunciando o arrependimento forçado em carta enviada a D. Paulo Evaristo Arns (o manuscrito pode ser baixado aqui); e sofrendo, em represália, novas torturas.

Depois que lancei meu livro Náufrago da Utopia, conversamos algumas vezes por e-mail. Continuava magoado com os companheiros que tanto e tão duramente o hostilizaram, sem levarem em conta as circunstâncias extremas que o haviam levado a cair na armadilha da repressão. Disse que meu livro tinha lançado luzes sobre o inferno pelo qual passaram jovens idealistas como ele e o Massafumi Yoshinaga (sobre quem escrevi aqui).

 Hoje eu mudaria o trecho a ele relativo da minha poesia sobre os companheiros secundaristas. Décadas atrás, era acertado dizer sobre o Mané que, “quando o épico/ resultou trágico,/ se desencontrou”; mas, depois de ter passado alguns tempos em parafuso, ele felizmente achou forças para superar os traumas e se reerguer.
 Os versos que melhor serviriam como síntese definitiva da sua trajetória, contudo, o grande Paulo Vanzolini já escrevera antes de mim: “Ali onde eu chorei,/ qualquer um chorava./ Dar a volta por cima que eu dei,/ quero ver quem dava!”.
 Foi gratificante ver a morte do Mané noticiada de forma respeitosa (eis aqui um exemplo).  Ele fez amplamente por merecer o reconhecimento dos melhores brasileiros.
 Lamento que o pobre Massafumi não tenha aguentado esperar por uma visão mais equilibrada e compassiva do seu drama. É terrível pensar que ele morreu em meio às trevas mais densas, sozinho e amargurado!

“Pai, aproxima de mim esse cálice!”

Ele já aceitou servir como exemplo de bom menino

 

Creio ter escrito alguns dos textos mais compassivos (vide aquiaqui e aqui) sobre o que Geraldo Vandré se tornou após haver pactuado com a ditadura militar para poder voltar ao Brasil “sem ter na chegada/ que morrer, amada,/ ou de amor, matar”, como antevia em sua pungente “Canção primeira”.

Não tenho dúvidas de que sofreu lavagem cerebral quando esteve internado numa clínica psiquiátrica sob a vigilância de agentes da repressão, impedido até de falar com outros pacientes, entre 14 de julho e 11 de setembro de 1973.

Mas, de alguma forma ele contribuiu para sua desgraça: foi ao não suportar a barra do exílio e assumir o risco do regresso, mesmo conhecendo muito bem o inferno no qual desembarcaria. É isto, e só isto, que lhe recrimino. Com relação a tudo que se passou depois, ele tem minha compreensão, valha o que valer.

Foi um episódio bem na linha do que Paulo Francis alertava sobre os artistas: por mais que os admirássemos por sua arte, jamais deveríamos levá-los muito a sério quando se manifestassem sobre outros assuntos ou se aventurassem em outros projetos (principalmente os revolucionários).

Eu não levava muito a sério aquele Chico Buarque que, no olho do furacão dos anos de chumbo, lançava músicas inofensivas e nada tinha a declarar quando a direita enchia sua bola, erigindo-o em bom exemplo enquanto tudo fazia para denegrir os músicos engajados.

Em 1969 caiu-lhe a ficha e ele próprio reconheceu que o Chico de 1967/68 não merecia mesmo ser levado a sério.

 

A censura deste disco era ruim. A das biografias é boa?

 

Fez, então, sua veemente autocrítica: “Agora falando sério/ Eu queria não cantar/ A cantiga bonita/ Que se acredita/ Que o mal espanta/ Dou um chute no lirismo/ Um pega no cachorro/ E um tiro no sabiá/ Dou um fora no violino/ Faço a mala e corro/ Pra não ver a banda passar/// Agora falando sério/ Eu queria não mentir/ Não queria enganar/ Driblar, iludir/ Tanto desencanto…”.

Por admirarmos demais a grande arte que ele produziu a partir de então e até o fim da ditadura, passamos uma borracha na sua vacilada anterior e seguimos em frente. A Geraldo Vandré e a Chico Buarque devemos ser imensamente gratos por terem composto as duas músicas mais emblemáticas do repúdio à ditadura: “Caminhando” e “Apesar de você”. Não dá para exigirmos que o criador esteja sempre à altura das criações.

Mas, o Chico não deveria exagerar. É simplesmente estarrecedor vermos um dos artistas outrora mais censurados tornar-se um tardio apologista da censura, defendendo a aberração antidemocrática de que a liberdade de expressão deva ser cancelada em benefício de figuras públicas que não querem ver expostos os aspectos desagradáveis de suas biografias. Só falta ele agora cantar  Pai, aproxima de mim esse cálice!

Paulo Francis certamente daria um de seus característicos sorrisos sarcásticos se lesse a declaração do Chico à Folha de S. Paulo desta 6ª feira, 18 (talvez acrescentando um previsível  como queríamos demonstrar):

Posso não estar muito bem informado sobre as leis e posso ter me precipitado, mas continuo achando que o cidadão tem o direito de não querer ser biografado, como tem o direito de não querer ser fotografado ou filmado.

 

 

Ora, o  cidadão  com o qual ele se preocupa e cujo direito quer ver priorizado não é um cidadão qualquer, mas sim uma celebridade. Quem escreve as biografias dos coitadezas anônimos?

E quanto ao direito do cidadão comum, de ser informado sobre o que realmente são e fazem aqueles que ganham rios de dinheiro por terem os holofotes da mídia voltados em sua direção, onde é que fica?

Se o Chico sempre consentiu em que as gravadoras e editoras buscassem de todas as formas maximizar os espaços a dedicados pelos veículos escritos e eletrônicos, concedendo obedientemente as entrevistas que marcavam e posando pacientemente para as fotos que recomendavam, o que nos está pedindo é isto: que só levemos em conta o  retrato em branco e preto  que ele e seu staff querem projetar. Que nos atenhamos à imagem manipulada que os profissionais de comunicação forjam, expurgando tudo que é inconveniente para os objetivos comerciais (coincidentemente, o mesmo que incomoda os egos superinflados dos artistas).

Qualquer tentativa de furar tal bloqueio deverá ser encarada como invasão da privacidade. Ou, verbalizando o que realmente sentem tais pavões mas não têm coragem de proclamar, como um  crime de lesa-majestade.

Tendo o Chico feito uma autocrítica tão contundente por suas omissões em 1967/1968, aguardo ansioso a que fará por suas falações de 2013. Isto se ainda lhe restar humildade para tanto.

Conheçam (e baixem) uma canção raríssima do Vandré: “Che”

Navegando pelo Orkut depois de muito tempo distante, encontrei uma autêntica preciosidade na comunidade Geraldo Vandré: uma canção dedicada a Che Guevara, na intepretação do Vandré e Trio Maraya. E o que é melhor: com link para baixar (clique aqui), por cortesia da dedicada Marta Meissner.


O companheiro Vitor  Nuzzi gentilmente dissipou minhas dúvidas sobre esta Che, enviando-me trechos de sua biografia ainda inédita do  Vandré:

…na verdade, eram duas músicas, conforme lembra Lúcia, mulher de Marconi [integrante do Trio Maraya]. ‘O Marconi fez ela instrumental. Quando perguntavam, ele dizia que era homenagem aos gaúchos, para não se complicar’, lembra, rindo. (…) E a música de Marconi –sem sequer ter letra– foi censurada.

Segundo Lúcia, Vandré sempre quis pôr letra, mas Marconi nunca aceitou. E assim nasceria um segundo Che, quando o grupo todo foi para a Europa. Tempos difíceis, pré-AI-5, clima de vigilância no ar.  Os cartões enviados da Bulgária chegavam abertos. ‘O Marconi acabou fazendo uma outra melodia, e o Geraldo fez a letra.’

Cheguei a cogitar que se tratasse da música de Walter Franco que Vandré defendeu num Festival Universitário da Canção Popular. Mas, esta era outra, sobre a qual encontrei o seguinte depoimento do blogueiro Waldir Mengardo:

No Festival Universitário da Tupi, em 1968, Geraldo Vandré, junto com o Trio Maraya, defendeu uma música de Walter Franco chamada Não se queima um sonho. Era uma alegoria a Che Guevara que foi classificada na sua eliminatória e depois sumiu na final do Festival sem nenhuma explicação. (…) Era mais ou menos assim: Seu sonho sem mortalha/ Cercado de solidão/ Eu trago bem guardado/ Na espera e no coração/ Vem oh! meu companheiro Che/ seu sonho quero lhe dar…

Nuzzi, por sua vez, esclareceu ter o festival da Tupi ocorrido logo depois do alvoroço de ‘Pra não dizer que não falei das flores’ no Maracanãzinho. O maestro Rogério Duprat, na época, criticou a composição de Walter Franco: “Se Guevara estivesse aqui não ia gostar nem um pouco. É preciso acabar com toda essa choradeira em torno do guerrilheiro, não é assim que se faz uma revolução”.

 

Quanto à canção que junta os versos do Vandré e a segunda melodia do Marconi, acima disponibilizada, eis a letra:

 

Perdoa minha canção

Se canta só minha boca

Se tem forma de oração

Se a minha voz fica rouca

Qual arma sem munição

Se ela é franca, mas é pouca

Enquanto fica canção


Sobe monte, desce rio

Sobe monte, desce rio

Sobe monte, desce rio

Vida e barbas por fazer

Sobe monte, desce rio

Sobe monte, desce rio

E um dia, de repente

Foi morto num amanhecer


Na frente de todo mundo

Pra todo mundo aprender

Quem afrouxa na saída

Ou se entrega na chegada

Não perde nenhuma guerra

Mas também não ganha nada


Sobe monte, desce rio

Sobe monte, desce rio

Sobe monte desce rio

Vida e barbas por fazer

Sobe monte, desce rio

Sobe monte, desce rio

E um dia, de repente

Fez da morte mais viver


Quem seguia teu caminho

Não podia te prender

E mesmo por traição

Pensando que te matava

No meu corpo americano

Fincou mais teu coração

No meu corpo americano

Fincou mais teu coração


Perdoa minha canção…

Vandré: dilacerante

“Não há por que mentir ou esconder

a dor que foi maior do que é capaz meu coração”

(“Pequeno Concerto Que Virou Canção”)

Foi um banho de água fria, um anticlímax, o Dossiê Globo News que marcou o reencontro dos telespectadores brasileiros com Geraldo Vandré, aos 75 anos de idade e 37 depois do última e deprimente aparição.

De positiva há a intenção manifestada por ele de retomar as atividades musicais, nem que seja gravando composições em espanhol, num país latino-americano qualquer.

E sua intenção de enveredar por poemas sinfônicos não é  tão despropositada como possa ter parecido para os que ignoram ser ele autor de uma missa apresentada em conventos dominicanos, Paixão Segundo Cristino.

Mas, não foi desta vez que a pergunta do repórter Geneton Moraes Neto – e de todos nós – teve verdadeira resposta: o que aconteceu, afinal, com Geraldo Vandré?

Só nos resta torcer para que o jornalista Vitor Nuzzi, na biografia que logo lançará do cantor e compositor paraibano, consiga desvendar o enigma.

Em primeiro lugar: Vandré foi torturado antes de partir para o exílio?

Há ex-preso político que garante tê-lo visto desmaiado numa sala de tortura. Mas, naquelas circunstâncias tão dramáticas, podia-se tomar uma pessoa por outra, ou confundir imaginação e realidade.

Quando eu estava preso na PE da Vila Militar, ouvi de cabos e sargentos relatos terríveis sobre as humilhações e indignidades a que submeteram Caetano Veloso e Gilberto Gil. Orgulhavam-se de haver colocado “no seu lugar” aquelas “bichas choronas”…

Mas, as torturas brutais não eram decididas por cabos da guarda e carcereiros entediados, e sim pelos oficiais, que as reservavam para os casos em que havia informações a serem arrancadas.

Então, Vandré só haverá sido massacrado se os ressentimentos contra ele, de tão exacerbados, tiverem feito com que recebesse tratamento diferente do habitual.

Pode ser, os militares nunca engoliram a estrofe famosa da “Caminhando”:

“Há soldados armados, amados ou não

Quase todos perdidos, de armas na mão

Nos quartéis lhes ensinam antigas lições

De morrer pela pátria e viver sem razões”

É estranha a seletividade de sua memória, ao reconhecer, p. ex., que se refugiou na casa da viúva do Guimarães Rosa, mas omitir que o então governador de São Paulo, Abreu Sodré, o escondeu no próprio Palácio dos Bandeirantes. Quem me revelou isto, um companheiro jornalista que então atuava na imprensa palaciana, é totalmente confiável.

O certo é que, ou fugiu do País ao receber aviso da Dedé, mulher do Caetano (conforme alega) ou foi preso e depois despachado para o exterior (a versão mais plausível), vagou pelo Chile e pela França, sentiu-se infeliz e amargurado, teve problemas com drogas.

Seu disco francês (Das Terras de Benvirá) é pungente, inventário das dores de uma geração que viu seus sonhos destruídos e pagou altíssimo preço pela derrota. Chega a chorar nitidamente no meio da interpretação.

Mas, ainda era Vandré:

“Eu canto o canto

Eu brigo a briga

Porque sou forte

E tenho razão”

(“Vem Vem”)

Acabou não agüentando a barra do exílio e, como era usual, teve de negociar com a ditadura as condições de sua volta, para “não ter na chegada/ que morrer, amada/ ou de amor, matar” (“Canção Primeira”).

Indagado sobre a entrevista que concedeu de imediato, na qual declarou a intenção de só fazer dali em diante canções de amor, ele agora diz:

“Gostaria de rever as imagens. Houve a gravação. O que foi para o ar, não sei. Queriam que fizesse uma gravação. Não lembro mais. Mas nada disse que não tenha querido dizer. Aquela declaração foi feita a pedido de alguém que se apresentou como policial federal. Fiz um depoimento aqui, no Rio. Depois disseram que tinha que ir para Brasília. Cheguei ao Brasil em 14 de julho. Em 11 de setembro de 1973, apareço como se estivesse chegando em Brasília. O depoimento foi gravado antes. Gravaram minha imagem descendo do avião em Brasília. Tudo muito manipulado. Tive que passar por um processo de readaptação ao voltar”.

A gravação era sempre parte do acordo, previamente combinada, e não “feita a pedido de alguém que se apresentou como policial federal”.

Com Gilberto Gil aconteceu o mesmo. Foi mostrado em pleno aeroporto, declarando: “Não tenho mais compromissos com a História”. Uma variante de “agora só farei canções de amor”. Os serviços de guerra psicológica das Forças Armadas não eram lá muito sutis…

Também não acredito que o depoimento tenha sido prestado a uma produtora independente. Quem costumava cumprir tais tarefas para a ditadura era a própria Globo.

E está inteiramente confirmado que o alegado “processo de readaptação” foi algo bem diferente: Vandré recebeu tratamento psiquiátrico, sob controle da ditadura, nesse período entre 14 de julho e 11 de setembro de 1973.

Pode-se, sim, levantar a hipótese de lavagem cerebral.

De que, nesses quase dois meses em que o tiveram indefeso em suas mãos, extremamente fragilizado, hajam nele incutido a bizarra devoção pela Força Aérea Brasileira, a ponto de ele compor uma canção homenageando a FAB e de dar agora entrevista em instalações da Aeronáutica, trajando abrigo da Academia da Força Aérea.

Que o tenham condicionado a gostar do  policial bom faz mais sentido do que uma  síndrome de Ícaro num homem com sua idade e história de vida.

Mas, é claro, trata-se apenas de uma hipótese.

TV leva ao ar 1ª entrevista de Vandré desde 1973

Neste sábado (25), às 21h05, o canal por assinatura Globo News apresentará uma atração imperdível:

“Depois de quatro décadas de isolamento, o cantor e compositor que se transformou em um dos maiores enigmas da MPB resolve finalmente quebrar o silêncio (…). Geraldo Vandré deu uma entrevista ao repórter Geneton Moraes Neto no dia em que completava 75 anos de idade. Desde que voltou do exílio, no segundo semestre de 1973, ele não falava para a TV”.

O Dossiê Globo News com Geraldo Vandré será reprisado no domingo (26), às 04h05 e às 12h30; e na 2ª feira (27), às 15h30.

HOMENAGEM

Para dimensionar a importância de Geraldo Vandré na música e na sociedade brasileira, recomendo dois diferentes enfoques de sua trajetória:

Quem tiver interesse, encontrará também no meu blogue o teleteatro que criei a partir de uma das composições do Vandré: Geração Maldita.