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Arte

Manter uma revista no ar é uma arte

Em parte exercida espontânea e livremente

Parte também deliberadamente e com propósito

Abrir espaço para a vida é uma das intenções primordiais

Quem sabe seja a única e principal

O que mais vale a não ser o viver?

Que seja justo e prazeroso

Belo e amoroso

Dizer muito com poucas palavras

Habilitar o exercício cotidiano da confiança e o convívio

Aprender sempre!

 

Humanidade a gente vê por aqui

Desde o começo, temos nos focalizado e mantido este centramento, esta prioridade, no humano. O que é o humano?

Este direcionamento da nossa parte, têm demandado esforços no sentido da redemocratização do país.

No breve lapso destes meses de respiro, a partir da posse de Lula-Alckmin em janeiro deste ano, muita coisa aconteceu.

A necessidade de mantermos as condições de vida em um modo aceitável, obriga a uma atenção ao que é mais valioso.

A preservação da vida. O amor como sustentação do existir. O cuidado com as pessoas, especialmente as mais vulneráveis.

A perspectiva do tempo nos situa naquilo que não morre. Aquilo que permanece e dá sentido ao dia a dia.

Um olhar retrospectivo repõe a unidade do viver. A costura da sequência da existência desde a nascença até hoje, apontando para um amanhã que agora nos parece de novo venturoso.

A restauração da esperança, a força do trabalho como única fonte legítima da riqueza, a comunidade como espaço da felicidade.

Estas simples anotações pretendem apenas restabelecer o eixo do fundamental, constantemente desafiado pelas forças que se opõem ao amor.

 

 

Venho à poesia e à literatura

Uma e outra vez

Como as ondas do mar

Recorrentemente como o sol e as estrelas

Venho à poesia e à literatura

Volto à beleza e à cor

Me alimento do que é eterno

Recarrego as minhas baterias

Nesse manancial contíguo e interno

Ali me nutro, me aquieto, me fortaleço.

Não apenas percorro novamente

Incessantemente

O lugar a que pertenço

Sumo nessas paragens

Me interno nessas paisagens

Tenho o meu ser profundo de volta

Inteiro e integrado

Invencível e imóvel

No meio às flutuações do tempo.

Aquilo que não me pertence, desaparece

Se desvanece o que não é meu.

E fica apenas o meu ser inteiro

Contínuo e fugaz

Eterno e invencível

Na terra sem tempo

A que pertenço.

Aqui resplandeço

Apareço

Me enraízo e me tranquilizo.

Não preciso carregar o mundo nas costas

Descanso

Me trato melhor.

Meu lado maior está aqui

Ou tende a vir para cá.

Lá e cá. Isto e aquilo.

“Os místicos da pessoa a interiorizam, os políticos da pessoa a exteriorizam, mas a pessoa é um ir e vir” (Emmanuel Mounier, O personalismo)

Desde o tempo em que publiquei por primeira vez em Consciência, bem lá nos comecinhos desta revista, Gustavo Barreto* começou a se perfilar como um amigo. Um aliado. Alguém com quem algo de muito bom estava acontecendo.

Ver os meus textos apreciados e publicados, foi se tornando uma alavanca que ia me tirando do poço. Eu ia saindo da depressão. Leitoras e leitores liam meus textos e comentavam, geralmente positivamente. Tanto que uma leitora tomou a liberdade de encadernar vários dos meus escritos e me enviar por correio, com capa dura. Belo gesto.

Assim nasceu meu livro Resurrección. Digo estas coisas para frisar a escrita como um lugar de fazer juntos, juntas. Construção. Eu sou o que escrevo. Sou o que leio e li. Me leio em mim e na escrita do mundo. A partir do momento em que comecei a ter uma consciência clara deste fato, fiquei mais tranquilo e em paz.

Não é apenas algo que faço, mas sim algo no qual me faço. Me construo, me refaço, me conecto com as pessoas e comigo mesmo. Enquanto professor, estimulava minhas alunas e alunos para que escrevessem. Escrevam, não deixem de escrever. As palavras são espelhos, me vejo e outras pessoas nelas se veem também.

São pontes, estradas, caminhos, janelas. O tempo passou, muito tempo, na verdade. Estou perto de entrar na sétima edição. Muita cousa mudou nestes anos. Muita mesmo. A vida se integrou mais, tecnologicamente. O mundo se costurou mais, nos aproximamos mais umas das outras, uns dos outros. Esta proximidade continua a ser um desafio.

Como é habitar esta cidade unificada, programada talvez demais? Tenho que lhes deixar, já que o dia está indo e eu também preciso ir. Mais tarde ou numa hora, tá? É isto. Fui alguém feito em boa medida em revistas. América Latina, Cristianismo y Revolución, PinUp, JV, Estrella Roja. A vida passava por aí.

Não sei muito bem por onde passa a vida agora, e sei, sim. Compreendo com clareza o quanto apendi nessas revistas que lia. Até hoje está viva na minha memória, a sensação, o sentimento de andar com elas por aí. Era como ter o mundo em mim, comigo, sei lá. Não sei se é bem isso, mas se parece muito com isso.

E vocês poderão estar a se perguntar, como também eu me pergunto agora, aonde é que tudo isto vai levar? A vida tem muitos canais, muitos caminhos, muitas veredas. Acabo de voltar de Jacumã, onde moro. Parece a Mendoza daqueles anos. Pessoas num ritmo em que eu volto a andar. Ainda se conversa, ainda se escuta, ainda se olha nos olhos. É isso aí.

A vida anda, corre, parece que correu tanto que já não se sabe mais o que é o que. Mas sabemos, sim. Sabemos que habitamos uma brevidade grandiosa. Os dias de hoje não são (e são, sim!) muito diferentes dos dias de ontem e de antes de ontem e de antes de antes de ontem.

A vida passa como um rio, como bem nos lembra Jorge Luis Borges. E nesse passar desse rio que passa, passamos nós também. Passar bem.

*Criador, fundador desta revista.

Uma das coisas boas desta idade

É que já não há muita coisa a nos preocupar

Deixo você entrar

O medo já não me assusta mais

O mundo é novamente amigável

Um lugar por onde se pode transitar

Ir daqui pra lá

Não importa onde

E tudo sempre está bem

Sempre esteve bem

Ainda quando tudo parecia estar ou estava

Patas pa´rriba

Nunca a desordem é total

Há um âmbito em que tudo sempre está como deve ser

O âmbito íntimo e próximo

Por isso lhes digo e me digo

Digo e escuto

Para mim mesmo e de mi mesmo

Desfrutar da vida

Primeiro mandamento

Amar a sí

Primeiríssimo mandamento, em todo tempo

Gozar das coisas boas da vida

Um mar cintilante

A beleza em volta

O mero respirar

O canto das aves

O sol andando pelo céu

O céu interno

Onde reina o amor

O que mais?

Deixe que falem

Não é contra mim

Falam de si mesmos ou si mesmas

Não é comigo

Pressa é o que não têm mais

Pressa pra que?

Rir bem muito e com vontade

Menos mandamentos

Mais sentimentos

Colheita é agora

Mais prazer

Menos dever.

Rumo

É um privilégio para mim poder vir até este espaço. Um lugar onde se cultiva a consciência. Consciência, como a vida, é só de ida. Amor também é só de ida. Vida, amor, consciência. Só de ida.

Só quando vislumbramos a realidade desta situação, é que começamos de fato a dar valor ao que realmente vale. Até lá, nos enganamos, ou brincamos, com jogos de espelhos.

Uma hora a luz entra por uma fresta. É o que Jesus nos lembra: “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita.” Uma visão fugaz, um choque de repente, algo nos acorda.

Então a vida adquire o seu verdadeiro significado. Algo que não cabe nos estreitos limites de dogmas, instituições, ideologias, crenças. Um dom singular.

Estarmos vivos, vivas. Ganha um sentido intenso. Somente posso ver o mundo desde a minha própria história de vida. Não há outro lugar desde onde possa enxergar.

É uma trajetória que hoje se reúne e me reúne poeticamente. Os anos passados e este presente em que converge todo o tempo vivido, se condensam em poucas palavras que tentam guardar em si todo o conteúdo do aprendido.

Consciência, vida, amor, são só de ida. Em algum momento esta verdade é real para nós. Há um mundo mínimo, um espaço reduzidíssimo no qual transcorre a nossa vida.

A menos que façamos um esforço consistente e persistente, perseverante, esse tesouro de valor sem igual pode se perder. A atenção ao instante, ao irrepetível, é a porta.

Pode ser a fenda por onde possamos atravessar. Isto me foi dado perceber a través da leitura do tempo vivido. Passam as ditaduras, passam os regimes ilegais e ilegítimos, inconstitucionais.

Permanece o amor. Só o amor é que sobrevive. E o amor não têm ideologia. Não é propriedade de ninguém. É a força que sustenta a vida. Guarda e mantém tudo que existe.

Podemos fazer essa escolha. Então tudo virá ao nosso favor. Ainda em meio às circunstâncias mais ameaçadoras, mesmo diante da possibilidade da morte, aquela luz permanece.

Pude perceber ao longo da minha vida que havia e continua a haver pessoas de um valor sem igual. Essas pessoas fazem a diferença.

São essas pessoas que com a sua presença imprimem um rumo positivo à circunstância mais desesperadora. São as pessoas que não se perderam.

Permanecem fiéis à sua consciência. Não fazem parte de algum partido ou instituição. Estão por toda a parte.

Presentemente

La vida es un mínimo

Casi una inexistencia

Su brevedad eterniza momentos

Esto ha sido así desde siempre

No cambia porque la tecnología digital

La inmediatez, la prisa, la presión,

Puedan estar empujándonos continuamente

A una especie de pérdida de lo presente.

Esto que está aquí

Este lento transcurrir de la tarde hacia la noche

Las respiraciones que se suceden ininterruptas

Toda esta inmensidad inalcanzable

Nos abriga y guarda

No busco expresar cosas nuevas

Sino más bien no olvidar las más antiguas

Aniversário

Por Fernando Pessoa

(Álvaro de Campos)

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

 

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,

O que fui de coração e parentesco,

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino.

O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…

A que distância!…

(Nem o acho…)

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

 

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes…

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa.

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim…

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

 

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,

O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

 

Pára, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!…

 

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!…

15-10-1929

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

– 284.

1ª publ. in Presença, nº 27. Coimbra: Jun.-Jul. 1930.

Fonte: Arquivo Pessoa