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Libertemo-nos!

Debret

A visita ao que passou nos ajuda a compreender o tempo presente. Por isso vale recuperar o acontecido há 130 anos no Brasil: a Abolição da Escravatura.

O 13 de maio de 1888, com a promulgação da Lei Áurea, não foi um gesto redentor da princesa-regente Isabel, que deu liberdade a 700 mil cativos. A festa da Abolição, naquele dia, com marchas e chuva de flores, foi a culminância de um processo social. Conquista e não dádiva. A luta fez a lei, mesmo tardiamente. Muitas vezes é assim.

Desde a metade do século XIX, ampliaram-se as revoltas de escravos, a formação de quilombos, os “fundos” para a compra da alforria. Até alguns juízes desafiaram a Constituição, contestando os “contratos entre senhores e escravos”. Discursos abolicionistas no Parlamento geraram leis gradualistas, para acabar com o tráfico de africanos – 4,5 milhões foram trazidos à força para o Brasil, em 350 anos – e limitar a idade da exploração das “peças de ébano”.

Não são os “grandes personagens” que giram a História, mas os movimentos coletivos, os embates entre forças. Como, à época, os dos escravocratas contra os emancipacionistas. Potência maior, nesse conflito, teriam os próprios escravizados. As revoltas dos malês e outros marcaram a sociedade imperial, assustando a elite aristocrática branca. Por isso é tênue o seu registro nos anais da História. A percepção desse protagonismo popular, muitas vezes cruento, é recente em nossa historiografia. Durante séculos, os “almirantes negros” só tiveram por monumento “as pedras pisadas do cais”…

Até hoje é visível o “legado” da condição dos ex-escravos. Em 1988, a Estação Primeira de Mangueira cantou o centenário da Abolição. Um refrão se destacou em seu vitorioso samba: “livres do açoite da senzala, presos na miséria da favela”. Desde aquele 13 de maio foi assim: os “beneficiários” da revogação da servidão não tinham para onde ir. O assalariado considerado era o europeu imigrado: um Brasil “branco” seria a porta de entrada do progresso.

Sem Reforma Agrária (exigência dos “barões”), aos ex-cativos restavam trabalhos temporários nas fazendas, sub-remunerados, e plantios a meia. Ou a migração para as cidades, para prestar pequenos serviços e morar em casebres, nas encostas dos morros íngremes, nas periferias. Sempre emoldurados pelo estigma do preconceito: “raça inferior”, “primitivos”, “medonhos”.

Assim chegamos ao Brasil de 2018. Cerca de 600 comunidades quilombolas resistem, acossadas pelos interesses de grileiros e de grandes empresas agrícolas (com elas, o agro não é pop). A “lista suja” do trabalho escravo, neste ano, denuncia 160 empresas rurais e urbanas como exploradoras da força de trabalho em condições análogas à da escravidão. Persiste um racismo velado e, aqui e ali, explícito.

A cada ponto, um contraponto: cresce a afirmação da consciência da nossa negritude, da nossa raiz africana, da nossa beleza e força ancestral, tão atual.

Como era gostoso ser escravo no Brasil: a apologia da servidão voluntária de Kátia de Queirós Mattoso

Traduzido ao português, em 1982, Ser escravo no Brasil, de Kátia de Queirós Mattoso, apresentou síntese da escravidão no Brasil, do aprisionamento do cativo na África até sua eventual libertação, no Brasil, pela alforria e pela Abolição.

Seguindo as grandes teses de Gilberto Freyre, de 1933-36, o livro restringiu a resistência ao cativo incapaz de adaptar-se à sociedade brasileira paternalista, que lhe prometia mesa farta, pouco trabalho e raramente castigo.

O trabalho deslocava a resistência-oposição pela integração consensual entre exploradores e explorados que teria garantido a paz social no país.

O presente artigo ensaia crítica geral sumária a esse trabalho clássico, de ampla influência em nossa historiografia especializada. Acesse aqui.

Haiti, país ocupado

Por Eduardo Galeano*

Consulte qualquer enciclopédia. Pergunte qual foi o primeiro país livre da América. Você receberá sempre a mesma resposta: os Estados Unidos. Mas os Estados Unidos declararam sua independência quando eram uma nação com 650 mil escravos, que continuaram escravos durante um século, e estabeleceram em sua primeira Constituição que um negro equivalia a três quintas partes de uma pessoa.

E se a qualquer enciclopédia você perguntar qual foi o primeiro país a abolir a escravidão, receberá sempre a mesma resposta: a Inglaterra. Mas o primeiro país que aboliu a escravidão não foi a Inglaterra, e sim o Haiti – que segue expiando o pecado de sua dignidade.

Os negros escravos do Haiti haviam derrotado o glorioso exército de Napoleão Bonaparte e a Europa nunca perdoou essa humilhação. O Haiti pagou à França, durante um século e meio, uma indenização gigantesca por ser culpado por sua liberdade, mas nem isso alcançou. Aquela insolência negra continua doendo aos amos brancos do mundo.

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De tudo isso, sabemos pouco ou nada.

O Haiti é um país invisível.

Só ganhou fama quando o terremoto do ano 2010 matou mais de 200 mil haitianos.

A tragédia fez que o país ocupasse, brevemente, o primeiro plano dos meios de comunicação.

O Haiti não é conhecido pelo talento de seus artistas, magos da chatarra capazes de transformar a sujeira em beleza, nem por suas façanhas históricas na guerra contra a escravidão e a opressão colonial.

Vale a pena repetir mais uma vez, para que os surdos escutem: o Haiti foi o país fundador da independência da América e o primeiro a derrotar a escravidão no mundo.

Merece muito mais que a notoriedade nascida de suas desgraças.

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Atualmente, os exércitos de vários países, incluindo o meu, continuam ocupando o Haiti. Como se justifica essa invasão militar? Bom, alegando que o Haiti põe em perigo a segurança internacional.

Nada de novo.

Durante todo o século XIX, o exemplo do Haiti constituiu uma ameaça à segurança dos países que continuavam praticando a escravidão. Já havia dito Thomas Jefferson: do Haiti vinha a peste da rebelião. Na Carolina do Sul, por exemplo, a lei permitia prender qualquer marinheiro negro enquanto seu barco estivesse no porto, pelo risco de que pudesse contagiar a peste antiescravista. E, no Brasil, essa peste se chamava haitianismo.

Já no século XX, o Haiti foi invadido pelos “marines”, por ser inseguro para seus credores estrangeiros. Os invasores começaram por se apoderar das aduanas e entregaram o Banco Nacional ao Citybank de Nova York. Já que lá estavam, permaneceram por dezenove anos.

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A fronteira entre a República Dominicana e o Haiti se chama El mal paso.

Talvez o nome seja um sinal de alerta: você está entrando no mundo negro, a magia negra, a bruxaria…

O vodu, a religião que os escravos trouxeram da África e se nacionalizou no Haiti, não merece chamar-se religião. Do ponto de vista dos proprietários da Civilização, o vodu é coisa de negros, ignorância, atraso, pura superstição. A Igreja Católica, onde não faltam fiéis capazes de vender unhas dos santos e plumas do arcanjo Gabriel, conseguiu que esta superstição fosse oficialmente proibida em 1846, 1860, 1896, 1915 e 1942, sem que o povo fosse ao menos comunicado.

Mas, desde já alguns anos, as seitas evangélicas se encarregam da guerra contra a superstição no Haiti. Essas seitas vêm dos Estados Unidos, um país que não tem 13º andar em seus edifícios, nem fila 13 em seus aviões, habitado por civilizados cristãos que creem que Deus fez o mundo em uma semana.

Nesse país, o pregador evangélico Pat Robertson explicou na televisão o terremoto do ano 2010. Esse pastor de almas revelou que os negros haitianos haviam conquistado a independência da França a partir de uma cerimônia vodu, evocando a ajuda do Diabo do fundo da selva haitiana. O Diabo, que lhes deu a liberdade, enviou o terremoto para cobrar-lhes a conta.

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Até quando os soldados estrangeiros seguirão no Haiti? Eles chegaram para estabilizar e ajudar, mas há sete anos estão desajudando e desestabilizando este país que não os deseja.

A ocupação militar do Haiti está custando às Nações Unidas mais de US$ 800 milhões por ano.

Se as Nações Unidas destinaram esses fundos à cooperação técnica e à solidariedade social, o Haiti poderia receber um bom impulso ao desenvolvimento de sua energia criadora. E assim se salvaria de seus salvadores armados, que tem certa tendência a violar, matar e presentear doenças fatais.

O Haiti não necessita que ninguém venha para multiplicar suas calamidades. Também não necessita da caridade de ninguém. Como bem disse um antigo provérbio africano, a mão que dá está sempre acima da mão que recebe.

Mas o Haiti precisa de solidariedade, médicos, escolas, hospitais e uma de colaboração verdadeira que faça possível o renascimento de sua soberania alimentar, assassinada pelo Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e outras sociedades filantrópicas.

Para nós, latino-americanos, essa solidariedade é um dever de gratidão: será a melhor maneira de dizer obrigado a esta pequena grande nação que em 1804 nos abriu, com seu contagioso exemplo, as portas da liberdade.

 

Este artigo é dedicado a Guillermo Chifflet, que foi obrigado a renunciar à Câmara dos Deputados do Uruguai quando votou contra o envio de soldados ao Haiti.

Original em espanhol publicado em Página12.

*Tradução: Ricardo Senra

 

A “porta sem retorno”

A porta sem retorno da Ilha de Gorée, no Senegal, onde os escravos eram enviados para um local sem retorno. Foto: juaumaguiar

Por Enih Gil’ead, disponível no Recanto das Letras.

Uma vez em Dakar, Senegal, eu não podia deixar de visitar a Ilha de Goré e a sua famosa ‘Porta sem Retorno’.

– “Por esta porta,” explicava o guia senegalês, “passavam os escravos que eram vendidos especialmente para as américas. Ela ficou com esse nome porque, uma vez transposta, o escravo não veria jamais a sua terra natal, seu povo, sua cultura e nem os seus valores como ser humano! Os negros africanos, além de serem saqueados e maltratados, ainda eram vendidos como escravos…”

– “É, inclusive o Papa já esteve aqui, há alguns anos”, disse alguém no meio da comitiva de turistas, “pedindo perdão pelas atrocidades perpetradas contra os africanos; não foi?”

– “Sim…”, disse o senegalês. “Mas, e quanto aos prejuízos? Alguém falou em reparação?”