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Sábado, na Bienal: o tributo de uma filha cujo pai foi submetido a tribunal revolucionário.

Quando Adriana Tanese Nogueira começou a escrever um livro sobre a corajosa ajuda que seu pai prestou à Vanguarda Popular Revolucionária no pior momento da ditadura militar, o preço que ele pagou por sua disposição sincera de contribuir para a resistência e como sua desdita afetou os entes queridos, era natural que me contatasse, pois os sites ultradireitistas me citavam como um dos três membros do tribunal revolucionário que julgou Antônio Silva Nogueira Filho, juntamente com Ladislas Dowbor e Carlos Alberto Soares de Freitas.
Era falso. Eu não chegara sequer a ser informado do episódio, que certamente foi encaminhado em nível de Comando Nacional, já que nunca veio à baila nas reuniões do Comando Estadual de São Paulo, do qual eu fazia parte.
Foi só em 2004 ou 2005 que, dando uma olhada no que aparecia quando teclava meu nome na busca do Google, fiquei sabendo que me imputavam tal papel.  E não estranhei, porque os Ternumas da vida também me davam como autor de um comunicado da VPR que jamais redigi –para minha irritação, pois não só era mentiroso, como pessimamente escrito, com erros que nem no ginásio eu cometia.
Expliquei à Adriana que a rede virtual fascista era abastecida com informações dos órgãos de repressão –os tais arquivos secretos que o governo nunca foi capaz de localizar. Evidentemente, os torturadores conservaram consigo boa parte dos registros emporcalhados de sangue de interrogatórios dos DOI-Codi’s, Dops, etc., utilizando-os depois para produzirem a interpretação inquisitorial da História.
E, como era mais cômodo para os torturados confirmarem as suposições dos torturadores quando se tratava de assunto de menor importância, alguém deve ter relacionado meu nome ao tal julgamento, ou por não saber quem realmente dele participou, ou porque não quisesse identificar os reais participantes.

Abri portas e indiquei caminhos para que a Adriana pudesse levar a bom termo sua empreitada, superando a dificuldade natural de tentar apurar, desde os EUA, algo que aconteceu aqui. E acompanhei, durante certo tempo, seu labor de ir escrevendo e tornando pública sua obra, capítulo por capítulo, num blogue que criou.especialmente para tal finalidade.
Depois, o Caso Battisti me absorveu tanto que perdi o hábito de visitar o blogue dela. Daí a minha agradável surpresa com o livro resultante, de 740 páginas, dividido em dois volumes: Acorda, amor (Editora Biblioteca 24 horas, 2014), que será lançado na Bienal Internacional do Livro amanhã (sábado, 30), entre 12 e 14 horas, no estande F698.
Como passei a vida inteira tentando melhorar minha carpintaria de textos, é sempre gratificante para mim ler obras com narrativa fluente e empolgante como a da Adriana, cuja formação psicanalítica ajuda muito a desenvolver o lado humano dos personagens. Infelizmente, muitos livros sobre os anos de chumbo são áridos e de difícil compreensão para os leigos, afugentando leitores.
Conheço bem demais as agruras e sofrimento das famílias dos que lutamos contra a ditadura, então este lado de Acorda, amor não me surpreendeu. Mas, a dramaticidade e o horror de certas situações deverá calar fundo em quem veio depois de nós e não está familiarizado com tais vias crucis.
Eremias: retalhado com 35 tiros.
Para mim, são lembranças dolorosas. Não gosto nem de pensar que meus saudosos pais foram despertados de madrugada por uma avalanche de bárbaros que, depois de virarem a casa do avesso, ainda tiveram a petulância de pedir que me aconselhassem a rendição, pois só com a ajuda deles eu escaparia com vida. Meu pai, homem que nunca gostou de correr riscos desnecessários, daquela vez não se conteve: “E é para ajudar meu filho que vocês estão aqui com toda essa artilharia pesada?”. Quase o levaram preso.
Assim como foi intimidado o pai do meu amigo e companheiro Eremias Delizoicov, retalhado com 35 balaços pelos gorilas da PE da Vila Militar, aos 18 anos de idade (vide aqui). Como a imprensa noticiara inicialmente a morte de outro militante –a repressão só conseguiu identificá-lo pelas digitais, a tal ponto o havia desfigurado!–, o pobre homem ansiava desesperadamente por ver o corpo e tirar dúvidas.
Até isto lhe foi negado; ameaçaram-no de prisão, se insistisse, Como consequência, o velho casal continuou alimentando por muito tempo a esperança de que o falecido fosse mesmo José Araujo Nobrega, e não seu amado filho. Duas vezes passei horas ouvindo pacientemente suas hipóteses fantasiosas, sem saber se seria melhor desmenti-las ou deixá-los sonhando que o Eremias estaria são e salvo no exterior.

UM EPISÓDIO CONSTRANGEDOR, MAS QUE DEVE SER CONHECIDO, POIS DEIXOU LIÇÕES VALIOSAS.

Então, o que mais me interessou no livro foi mesmo a parte referente ao tribunal revolucionário. Para não estragar o prazer dos possíveis leitores, evitarei antecipar o desfecho (podem continuar lendo sem receios…).
A lição de Rosa: “A verdade é revolucionária”.

Apenas informarei que Adriana, como eu, não vilifica quem cometeu erros em circunstâncias tão extremas. Como eu, ela ressalta a justeza da luta e tenta compreender quem foi zeloso demais ou traído pelos nervos.

Esforçávamo-nos  para manter a chama acesa apesar da extrema desigualdade de forças. Não havia semana em que não ficássemos sabendo da morte ou prisão (leia-se torturas bestiais) de companheiros próximos ou, mesmo distantes, igualmente estimados. As confissões arrancadas a ferro e fogo, bem como a faina incansável de espiões, faziam nossos melhores projetos ruírem como castelos de cartas. Por mais que tentássemos nos iludir, lá no fundo percebíamos que nos encaminhávamos para a derrota e, provavelmente, para a morte.
Neste contexto, aliado que manifestasse o desejo de sair da Organização era logo visto como um traidor em potencial. Se já não acreditava na causa, como conseguiria resistir às torturas? Se estaria descontatado, quanto tempo levaria para sua eventual prisão chegar ao conhecimento da O.? Quantos prejuízos ele poderia causar nesse intervalo, antes de as medidas defensivas começarem a ser tomadas?
Recuso-me a acreditar que qualquer um dos meus companheiros –aqueles seres humanos capazes de assumir riscos tão extremos em nome de ideais generosos e solidários!– raciocinasse, cinicamente, que “o Nogueira nada fez de errado, mas só ficaremos tranquilos quando ele se tornar um arquivo morto”.
Contudo, em meio à compreensível paranoia que grassava entre nós (espiões existiam sim, começando pelo cabo Anselmo), alguém deixou a imaginação correr solta e acabou tomando vagas suspeitas como provas irrefutáveis de que o Nogueira  estaria trocando de lado. E um tribunal revolucionário acabou sendo constituído.

Por último: o episódio encerra muitas lições valiosas para todos os que travam o bom combate, no sentido de que tais erros jamais sejam cometidos novamente. Então, mesmo sendo constrangedor para nós, deve ser encarado e discutido, sem medo do uso demagógico que os detratores da luta armada possam dele fazer.

Temos de ser melhores do que essa gente, guiando-nos pela afirmação lapidar de Rosa Luxemburgo: “A verdade é revolucionária”. O outro lado tudo faz para esconder seus esqueletos nos armários –e eles eram tantos, e foi tão terrível o martírio infligido a nossos companheiros! Cabe-nos mostrar que também nisto somos infinitamente superiores a eles, em termos morais.
Não há equivalência ou igualação possível entre a regra e a exceção. Nem motivo para escondermos debaixo do tapete o que ocorreu, mas gostaríamos que não tivesse ocorrido. Nenhuma luta de resistência à tirania é isenta de enganos e excessos, mas estes devem ser avaliados com pesos diferentes: os idealistas têm direito à compreensão, enquanto os déspotas e seus esbirros só merecem o opróbrio.
…nós, que queríamos preparar o terreno para a amizade, não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos. Mas vocês, quando chegar o tempo em que o homem seja amigo do homem, pensem em nós com um pouco de compreensão. (Brecht)

DEPOIMENTO DA AUTORA

“VOU ABRIR A MINHA VOZ E CONTAR MINHA VERDADE. NÃO QUERO MANTER ESCONDIDA UMA PARTE DE MIM” 
Um dia saiu um artigo sobre mim num jornal local [ela mora e trabalha nos EUA]. No final de minha apresentação, após citar as minhas diversas atividades, o jornalista deu algumas referências biográficas. Quando li o artigo meu coração descompassou. Foi citada uma frase que eu mesma escrevi: ‘Filha de mãe italiana imigrante e de pai brasileiro revolucionário’, acrescentada pela informação que meu pai pertencia ao grupo de Carlos Lamarca.
Adriana: nada do que se envergonhar.

Gelei. Sim, eu tinha dito isso, mas uma coisa é você comentar uma coisa dessas com alguém, outra é você ler suas palavras numa folha de jornal. Senti-me exposta. Fiquei com medo. Mas dissimulei comigo mesma. Estava acostumada a deixar passar, disfarçar, conviver com a história colocando-a de lado.

Ao longo daquele dia, pensamentos soltos atravessaram minha mente. Aquela era uma referência histórica, algo conhecido que explicitamente revelava a atividade política de meu pai no passado. No passado.
Mas será que era passado? Não na minha alma. O medo, que por tanto tempo dominou nossas vidas e que estava aparentemente esquecido e sonolento num canto, acordou. Apesar de ter tentado ‘não pensar’ o dia todo e ‘racionalizar’, passei a noite assustadíssima. Não consegui dormir e tive um pesadelo.
Eu vou contar essa história porque não quero viver sob o constrangimento da vergonha. Uma história que me provoca pesadelos quarenta anos depois é uma história que precisa ser contada. Quero regurgitar o que vivemos, devolver ao mundo o que ao mundo pertence. Não vou deixar essa experiência trancada dentro do peito, no cárcere da dúvida e do ridículo. Não vou ser cúmplice do sistema que demonizou os que contra ele resistiram, apesar do absurdo desequilíbrio de forças.
Vou contar essa história para levantar uma bandeira contra a avalanche massificadora da crença que sustenta que bom é quem sabe ‘se dar bem’. Bom é o individualista, o puxassaquista, o que encontrou um nicho em meio ao lixo cultural e moral no qual vivemos e venceu a vida por entorpecimento do cérebro e do coração. Não quero e não vou apoiar a crença que bom é o marqueteiro, o espertalhão, o flibusteiro. A isso se reduziu boa parte do ideal social do país. Não o meu. Nem hoje nem amanhã.

O Brasil está ainda tomado pela mentalidade promovida e fortalecida pela ditadura. Nela, os valores estão todos invertidos. Os que assumiram a resistência a um regime opressor são ‘terroristas’, os que massacraram corpos, amputaram braços e torturaram jovens e adultos, mulheres e homens são anistiados. E a impunidade reina soberana.
Vou abrir minha voz e cantar minha verdade. Não quero manter escondida uma parte de mim, minhas raízes, aquele meu começo que produziu tantas consequências importantes. Tantas coisas das quais tenho orgulho. Não vou respirar da núvem tóxica do esquecimento coletivo, tão infantil quanto míope. Não há nada do que se envergonhar, a não ser da crueldade cometida.

Para mim, que trabalho com humanização, não tem como deixar de trazer à luz as origens do meu interesse vital em humanizar o mundo. Não quero mais esconder quem sou, quem somos e por que somos o que somos. Porque é assim que tivemos que viver por todo esse tempo.
SERVIÇO
O QUE: lançamento do livro Acorda, amor (Desaventuras de uma família e de seu país)
QUANDO: sábado, 30 de agosto de 2014
HORÁRIO: das 12 às 14 horas
ONDE: estande F698 da Bienal Internacional do Livro de São Paulo 
QUEM: Adriana Tanese Nogueira, autora (estará presente Celso Lungaretti, veterano da luta armada)
LANÇAMENTO COMPLEMENTAR: livro infantil O flamingo e os pombos
MARCAÇÃO DE ENTREVISTAS / MAIS INFORMAÇÕES: adrianatns@hotmail.com / naufrago-da-utopia@uol.com.br

Militares garantem: DOI-Codi's eram colônias de férias para jovens idealistas.

…e também segundo as FFAA.
O jornal eletrônico Congresso em Foco publica um longo e meticuloso artigo do jornalista Luiz Cláudio Cunha (vide aqui), pulverizando o infame relatório de 455 páginas com que as Forças Armadas, respondendo à Comissão Nacional da Verdade, sustentaram não terem sido responsáveis por torturas, assassinatos, estupros, ocultação de cadáveres e outras abominações durante os anos de chumbo.
Puxa vida, e eu que pensei estar quase surdo de um ouvido! Acreditei piamente na palavra dos três otorrinos que me operaram e de outros mais que consultei nas últimas quatro décadas, nas dezenas de audiometrias que fiz, na minha lembrança (ilusória?) de haver levado um tapão na lateral do rosto, aplicado pelo descomunal cabo Marco Antônio Povorelli, da PE da Vila Militar (RJ), com seus 140 quilos de banha e maldade.
E era tudo falso! Meu tímpano nunca foi rompido, não existiam torturas, os fardados, na verdade, mantinham colônias de férias para jovens idealistas como eu.
O chato é que tais fantasias persistem mesmo depois de os guardiães da Pátria mostrarem a luz à CNV e a todos nós. Por mais que me esforce, continuo não entendendo quase nada do que ouço pelo lado direito. Nem encontro meus estimados amigos Eremias Delizoicov, Gerson Theodoro de Oliveira, Heleny Guariba, Roberto Macarini e José Raimundo da Costa, que, como as atrocidades não ocorreram, devem estar belos e fagueiros por aí.
Revista sobre… discos-voadores?
Se não estiverem nem belos, nem fagueiros, nem vivos, e se eu tiver mesmo perdido quase que metade da audição, então o tal relatório não passa de 455 páginas de mentiras sórdidas e toscas, como sustenta o Luiz Cláudio Cunha.
A pergunta que não quer calar é: como reagirá a comandante suprema das Forças Armadas, nossa presidenta Dilma Rousseff (que, vale lembrar, foi também uma resistente torturada e teve companheiros de organização assassinados nos porões)?
Que resposta dará ao relatório-escárnio, ao indisfarçado deboche e pouco caso dos fardados com relação à CNV que ela tanto quis criar?
Eles estão blefando. Ela tem as cartas vencedoras. Na hora de decidir se vai ou não utilizá-las, deveria inspirar-se (por incrível que pareça…) no ditador Ernesto Geisel.
Até por ser militar, ele sabia que o superior jamais deve contemporizar com insubordinação de subalterno. Destituiu o comandante do 2º Exército, destituiu o ministro do Exército e ninguém mais contestou sua autoridade.
Por último, eis um trecho interessante do artigo corajosamente publicado pelo Congresso em Foco:

Na manhã de 25 de abril, exatamente um mês após ter chocado o País ao revelar na CNV como se torturava, matava, retalhava e ocultava cadáveres de presos políticos na ditadura, [o antigo torturador Paulo] Malhães foi encontrado morto em seu sítio em Marapicu, no interior de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense. Sucumbiu por infarto, segundo a polícia, às fortes emoções da invasão de sua casa por três ladrões que buscavam as armas antigas que colecionava.

Apesar da forte convicção policial em simples latrocínio, o comportamento dos assaltantes mostrava coisas esquisitas. Ficaram mais de seis horas na casa, com o coronel morto e a mulher amarrada, revistando tudo, especialmente o escritório, deixando filmes e documentos de Malhães espalhados pelo chão.

Um deles falava com frequência ao celular, talvez recebendo instruções. Ao sair, levaram três pastas de documentos e o disco rígido de um dos dois computadores do coronel, itens estranhos para uma simples rapina.

‘É um fato grave, porque entra em confronto com a tese de latrocínio’, anotou o advogado Wadih Damous, então presidente da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro.

O que está sugerido nas entrelinhas foi o que eu escrevi no momento dos acontecimentos (vide aqui) e reafirmei quando a polícia chegou à conclusão na qual Deus e o mundo apostavam (vide aqui).

Só para constar.

STF LIBERTA BICHEIRO QUE FOI TORTURADOR DA DITADURA

Momento da detenção, em
2007; acaba sempre saindo.

Ele foi toi um dos principais torturadores da PE da Vila Militar (RJ), unidade na qual morreu assassinado, no final de 1969, o militante Chael Charles Schreier, 23 anos, companheiro de Dilma Rousseff na VAR-Palmares.

Ele é citado nos testemunhos de outros presos como autor de alguns dos chute e pontapés que causaram a morte de Schreier por “contusão abdominal com rupturas do mesocólon transverso e mesentério, com hemorragia interna”.

Foi  surpreendido, com outros integrantes da sua equipe de torturadores, tentando roubar a carga de contrabandistas aos quais eles achacavam habitualmente.

Estigmatizado no próprio Exército, iniciou nova carreira como bicheiro em Niterói.

Foi  várias vezes preso como chefão do jogo do bicho e dos bingos.

É acusado de pertencer a grupos de extermínio do Espírito Santo.

Acaba de ser libertado pelo Supremo Tribunal Federal, que conseguiu enxergar motivos para conceder a um cidadão com tal prontuário o direito de aguardar em liberdade o julgamento do seu  recurso contra a condenação a 48 anos de detenção que lhe foi imposta pela juíza Ana Paula Vieira de Carvalho, da 6ª Vara Federal Criminal do RJ, como consequência da  Operação Furação, deflagrada pela Polícia Federal em 2007.

Seu nome, claro, é Ailton Guimarães Jorge, vulgo  Capitão Guimarães.

A decisão de emporcalhar as ruas do Rio, infelizmente, partiu do ministro Marco Aurélio Mello, de atuação muito digna em casos como o de Cesare Battisti e do garoto Sean, que Gilmar Mendes trocou por um subsídio a exportadores. Depois de muitas no cravo, Mello acaba de acertar uma na ferradura –e das piores!

Para ele, como a sentença é de primeiro grau, cabe recurso. Então, o réu ainda disporia do benefício da dúvida, já que o processo não transitou em julgado.  Mas, até este réu?!

Capitão Guimarães  foi um dos 25 contraventores  que a PF acusou há cinco anos de explorarem jogos de azar no País, inclusive subornando membros do Executivo, Legislativo e Judiciário.

Schreier é da fase em que o Capitão
Guimarães assassinava resistentes

Presidente da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, ele já havia sido condenado em 1993 por envolvimento com o jogo-do-bicho, ao lado de outros 13  banqueiros, pela juíza Denise Frossard. Sabia-se que eles todos eram responsáveis por, pelo menos, 53 mortes.

Pegaram seis anos de prisão cada, a pena máxima por formação de quadrilha. Mas, em dezembro de 1996 estavam todos de volta às ruas, beneficiados por liberdade condicional ou indultos.

Afora os crimes atuais, que fazem do  Capitão Guimarães  um personagem emblemático do que há de pior neste país, ele continua sendo o mais notório exemplo vivo do banditismo inerente aos órgãos de repressão da ditadura militar.

A outra celebridade capaz de rivalizar com ele nesse quesito já morreu, como um  arquivo queimado  pelos próprios cúmplices: o delegado Sérgio Paranhos Fleury, em cujo benefício os militares chegaram até a criar uma lei, com o único propósito de mantê-lo fora das grades.

O Capitão Guimarães atuava na II seção (Inteligência) da PE da Vila Militar (RJ), que, como todas as equipes de torturadores da ditadura, auferia ganhos substanciais ao capturar ou matar militantes revolucionários.

Tudo que era apreendido com os resistentes e tivesse algum valor, virava butim a ser rateado entre aqueles rapinantes. Jamais cogitavam, p. ex., devolver o dinheiro aos bancos que haviam sido  expropriados  pelos guerrilheiros urbanos. Numerário, veículos, armas e até objetos de uso pessoal iam sempre para a  caixinha  do bando. De mim, até os óculos roubaram.

Havia também as vultosas recompensas oferecidas pelos empresários fascistas. Estes acertaram inclusive uma tabela com os órgãos de repressão: dirigente revolucionário preso valia tanto; integrante de  grupo de fogo, um pouco menos, e assim por diante.

RAPINANTES À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS

Ocorre que, em novembro de 1969, como conseqüência das torturas aplicadas por Ailton Guimarães Jorge e seus comparsas, morreu o estudante Schreier. O episódio repercutiu pessimamente no mundo inteiro e no próprio Brasil, onde a revista Veja fez uma matéria-de-capa histórica sobre as torturas.

 

Depois desta edição da Veja, a
censura no Brasil passou a ser total

As Forças Armadas decidiram, então, proibir que a unidade de Inteligência de cada Arma fosse à caça por sua própria conta.

 Unificaram o combate à luta armada no quartel da PE da rua Barão de Mesquita (Tijuca), que passou a ser a sede do DOI-Codi/RJ, integrado por oficiais da II Seção do Exército, do Serviço de Informações da Aeronáutica (Sisa) e do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), mais investigadores da polícia civil.

 A equipe do Ailton Guimarães Jorge, até como punição pela morte do Schreier, foi alijada desse vantajoso esquema. Então, quando cheguei preso lá, em junho de 1970, aqueles rapinantes estavam desesperados com a falta de grana.

 Tinham se habituado a um padrão de vida mais elevado e já não conseguiam subsistir apenas com o soldo. Tentavam por todas as maneiras convencer seus superiores de que mereciam ser readmitidos no combate à luta armada, em vão.

 Foi por isso que, em 1974, a equipe de torturadores da PE da Vila Militar envolveu-se com contrabandistas: como forma de obter a renda adicional que tanto lhe fazia falta.

 Mas, tornaram-se ambiciosos demais. Tentaram roubar dos outros bandidos uma carga particularmente valiosa, houve troca de tiros e a matéria fecal foi para o ventilador…

 O Exército instaurou um Inquérito Policial-Militar contra soldados, cabos, sargentos e quatro oficiais, inclusive o tenente Ailton Joaquim (um dos 10 piores torturadores do período, segundo o Tortura Nunca Mais) e o capitão Aílton Guimarães Jorge.

 JUSTIÇA POÉTICA: QUEM COM FERRO FERE…

 As investigações foram conduzidas com o método que o Exército invariavelmente utilizava. Então, aqueles notórios torturadores acabaram conhecendo na própria pele a tortura. Houve até caso de assédio sexual à esposa de um dos acusados, por parte dos seus colegas de farda!

 Como o Élio Gaspari relata em A ditadura escancarada, o caso acabou, entretanto, em pizza:

Todos os indiciados disseram em juízo que o coronel do 1PM lhes extorquira as confissões. A maioria deles sustentou que, surrados, assinaram os papéis sem lê-los. Num procedimento inédito, os oficiais do Conselho de Justiça decidiram que o processo tramitaria em segredo. Durante o julgamento a promotoria jogou a toalha, e, em maio de 1979, os 21 acusados foram absolvidos.

O caso voltou ao STM, cinco ministros recusaram-se a relatá-lo, e, por unanimidade, confirmou-se a absolvição.

O Superior Tribunal Militar, hoje.
Nos anos 70, inocentou a gangue da PE.

A sentença baseou-se num só argumento: ‘Tudo o que se apurou nestes autos, o foi, exclusivamente, através de confissões, declarações e depoimentos extrajudiciais, retratados e desmentidos posteriormente em juízo, sob a alegação de violências e ameaças praticadas durante o IPM’.

Ora, todos os IPMs instaurados contra os resistentes poderiam ser anulados pelos mesmíssimos motivos. Dois pesos, duas medidas.

 A carreira militar do Capitão Guimarães, ficou, entretanto, comprometida. Nos quartéis, ele seria sempre visto como ovelha negra e apenas tolerado. Então, pediu baixa e foi capitanear o jogo-do-bicho, conforme narra o Gaspari:

Coube ao bicheiro Tio Patinhas consertar a vida de Ailton Guimarães Jorge. (…) O processo do contrabando ainda tramitava (…) quando ele se transferiu formalmente para a contravenção, levando a patente por apelido e diversos colegas como colaboradores.

Começou como gerente do banqueiro Guto, sob cujo controle estavam quatro municípios fluminenses. Um dia três visitantes misteriosos tiraram Guto de casa e sumiram com ele. (…) Tio Patinhas passou-lhe a banca.

Em três anos o Capitão Guimarães foi de tenente a general, sentando-se no conselho dos sete grandes do bicho, redigindo as atas das reuniões, delimitando as zonas dos pequenos banqueiros. Seu território estendeu-se de Niterói ao Espírito Santo.

Seguindo a etiqueta de legitimação social de seus pares, apadrinhou a escola de samba Unidos de Vila Isabel e virou a maior autoridade do Carnaval, presidindo a liga das escolas do Rio de Janeiro.

Rico e famoso, adquiriu uma aparência de árvore de Natal pelas cores de suas roupas e pelo ouro de seus cordões. Tornou-se um dos mais conhecidos comandantes da contravenção carioca.

Tão desfigurado o Eremias ficou que
a repressão anunciou o morto errado

Do seu tempo da PE ficou-lhe o guarda-costas, um imenso ex-cabo que, como ele, começara no crime organizado da repressão política.

Esse cabo, Marco Antônio Povorelli, pesava 140 quilos e lutava judô. No final de 1969, ao tentar prender meu companheiro Eremias Delizoicov, que tinha apenas 18 anos, foi por ele atingido com um disparo no braço.

 Povorelli e os outros torturadores/meliantes retalharam então o Eremias com 35 tiros, tornando impossível até sua identificação (só souberam quem era pelas impressões digitais).

 Depois, em junho de 1970, unicamente por ter sabido que eu era amigo do Eremias desde a infância, ele fez questão de vingar-se em mim pelo final prematuro de sua carreira de judoca: estourou meu tímpano com um fortíssimo tapa de mão aberta. Nunca mais tive audição normal, apesar das três cirurgias por que passei.

 Eram esses os ratos de esgoto dos quais a ditadura servia-se para combater os heróis e mártires da resistência.

“Barbaridade! O Supremo aprovou a impunidade!”

“EREMIAS
Era mau aluno,
treinava judô.
Sorriso maroto,
morreu em pedaços,
35 balaços”
(“Formatura”, CL)
Participei nesta 3ª feira (18) do ato público convocado pelo Tortura Nunca Mais e outras entidades, contra a decisão do Supremo Tribunal Federal de considerar os torturadores da ditadura militar abrangidos pela anistia de 1979.

Alguns companheiros manifestaram esperança de que uma decisão da Organização dos Estados Americanos force o Estado brasileiro a modificar seu entendimento. Tudo é possível.

Mas, o veredicto acerca da queixa formulada há 15 anos, relativa ao massacre de 70 combatentes do Araguaia e à ocultação dos restos mortais da maioria, só sairá em janeiro próximo.

Muita água vai passar sob a ponte nos próximos oito meses; inclusive, teremos trocado de presidente.

Gato escaldado, não tenho as mesmas ilusões quanto às vias institucionais; essa OEA é a que falhou miseravelmente no golpe de Honduras.

O certo é que a 5ª Feira Negra do STF legou aos pósteros um absurdo jurídico que até o sujeito da esquina (aquele personagem tão menosprezado pelo ministro Gilmar Mendes…) percebe: o de que uma ditadura possa fazer aprovar uma Lei de Anistia que cumpra o espúrio papel de habeas corpus preventivo, para que seus criminosos não sejam punidos adiante, quando o país voltar à democracia.

Pior ainda do que a impunidade dos carniceiros do passado, na minha opinião, foi ter sido deixada em aberto essa possibilidade, permitindo que, no futuro, o mesmo subterfúgio infame seja utilizado de novo.

Trata-se de um nó que os empolados ministros do STF deram e teremos de desatar, em benefício dos que virão depois de nós. Pois, bem vistas as coisas, é eles e a luta deles que devemos agora priorizar.

Falei sobre isso no meu discurso.

Também juntei a minha voz aos que reverenciaram os heróis mortos.

A exibição de pequenos pôsteres com foto dos companheiros que tombaram na luta contra a ditadura de 1964/85 tem tudo a ver numa manifestação como essa, mas é deprimente ao extremo para quem os conheceu vivos.

Então, logo na minha chegada ao Pátio do Colégio, enquanto se montava o cenário, já vi os cartazetes de meu colega de infância e companheiro de armas Eremias Delizoicov, retalhado por 35 disparos aos 18 anos; da Heleny Guariba, que começou a atuar na VPR como aliada do meu setor de Inteligência e pela qual eu tinha grande estima; do Eduardo Leite, o Bacuri, homem duro na ação mas que muitas vezes parecia um meninão no trato pessoal; do Devanir de Carvalho, que solidariamente me abrigou num aparelho do MRT quando fiquei descontactado da VPR em meio à confusão do pós-racha de outubro de 1969.

Quantas lembranças. E como dói pensar em tudo que perderam, abatidos no auge de suas existências pelas bestas-feras da repressão!

Para me deixar mais melancólico ainda, aquelas peças foram distribuídas aos manifestantes, para que as mantivéssemos orgulhosamente erguidas durante o ato. E a mim, por coincidência, coube logo o pôster de Juarez Guimarães de Brito, o melhor dentre todos os dirigentes revolucionários que conheci na vida, porque o mais humano e o menos apegado ao poder.

Professor universitário, vários de seus alunos o acompanhariam na militância. E foi ao ver um de seus pupilos preso e servindo como isca num ponto que ele tomou a decisão generosa e temerária de arriscar a vida num plano de resgate que improvisou no momento.

Deu errado e ele arcou integralmente com as consequências de seu erro: cercado, sem chance de fuga, suicidou-se para não cair nas garras do DOI-Codi.

Caso da agressão a estudantes da Mooca tem desfecho autoritário

Celso Lungaretti

O Conselho de Pais e Professores da Escola Estadual Professor Antônio Firmino de Proença, na Mooca (zona leste de São Paulo), depredada na última quinta-feira por um grupo de alunos revoltados com as cenas de brutalidade e abuso de poder por eles presenciadas, decidiu pedir à Secretaria da Educação a imediata remoção do cargo do diretor que, por incompetência e pusilaminidade, chamou a polícia para resolver um problema que um educador de verdade jamais delegaria a outrém (nem mesmo ao Juizado de Menores, que é quem deve ser acionado em tais ocorrências), daí decorrendo agressões chocantes a um estudante de 14 anos e outro de 16, que provocaram a justa indignação dos colegas, dando origem a distúrbios cuja inteira responsabilidade foi do referido diretor poltrão e da polícia truculenta, cuja punição exemplar acaba também de ser anunciada pelo governador José Serra. ESTA SERIA A NOTÍCIA PUBLICADA, CASO ESTIVÉSSEMOS NUMA VERDADEIRA DEMOCRACIA.

O conselho de pais e professores da Escola Estadual Professor Antônio Firmino de Proença, na Mooca (zona leste de São Paulo), depredada na última quinta-feira por um grupo de alunos, decidiu expulsar oito deles. Seis por terem iniciado o quebra-quebra e dois por terem sido o pivô de toda a confusão. ESTA FOI A NOTÍCIA QUE SAIU NO JORNAL, IGUALZINHA ÀS DO TEMPO DA DITADURA, QUE JÁ NÃO ESTÁ MAIS NO PODER MAS CONTINUA ENTRANHADA NA SOCIEDADE.

Em junho de 1968, quatro secundaristas fomos também transferidos compulsoriamente do colégio no qual estudávamos, o MMDC, na mesma Mooca. Havíamos parado a escola numa noite de sexta-feira, em protesto contra atitudes autoritárias da diretora e outras arbitrariedades.

A transferência compulsória, na verdade, é um subterfúgio para evitar a contestação de decisões frágeis. A expulsão impede a matrícula em outra instituição da rede estadual e só deixa ao punido o caminho de lutar por sua revogação, o que acabará conseguindo, comprovada a injustiça; no entanto, até lá terá perdido o ano letivo.

A transferência compulsória, se aceita, permite a matrícula imediata em outra escola estadual, mas impede o recurso à Secretaria da Educação. É pegar ou largar; os pais acabam sempre pegando.

Eremias Delizoicov e eu chegamos a defender nossa posição diante da Associação de Pais e Mestres: mesmo sendo um adolescente de 16 anos e outro de 17, mantivemos a calma e apresentamos argumentos sensatos, enquanto pais reacionários se alteravam por não conseguirem nos responder à altura. Um deles teve de ser contido para não nos agredir.

O professor que apoiou explicitamente nosso movimento, Mário Hato, não só foi desaconselhado a participar dessa reunião, como obrigado a deixar o MMDC logo depois. Iniciou carreira política pelo MDB, vindo a ser vereador, deputado estadual e federal (foi um dos constituintes de 1988).

Dos punidos, Maria Palácios é hoje uma das principais sociólogas baianas.

Diego Perez Hellin leciona português na rede pública, depois de haver pegado em armas contra a ditadura e passado mais de dois anos preso.

Como também participou da resistência e foi preso político este que vos escreve.

O Eremias foi assassinado com 35 tiros pela repressão, aos 18 anos de idade. Há um Centro de Documentação e uma rua com seu nome. É pouco.

Da diretora que todos os alunos repudiavam, ninguém mais ouviu falar.