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Coisa pouca

O que falta no debate sobre o diploma de jornalista

Publicado originalmente no Knights Center for Journalism in the Americas

Os meios de comunicação, mediadores da esfera pública, são, antes de tudo, fomentadores de discursos na sociedade; são eles os que selecionam, dentre todas as vozes sociais, aquelas que merecem o status de memorável promovido por eles. Operam sob um dispositivo de visibilidade e invisibilidade, o que significa que têm o poder de definir não só aquilo que estará na pauta das discussões políticas e sociais, mas também o que não estará presente nela.

Ser jornalista é atuar submerso nesse contexto. Torna-se obrigatório, portanto, compreender o processo da notícia para além de seu resultado final nas páginas de papel imprensa – ou nos pixels das telas de computadores e celulares. Não defendo o diploma de jornalista pelo fortalecimento de sua categoria profissional; tampouco acredito que seja a formação imprescindível para ensinar ao futuro jornalista técnicas de reportagem. A necessidade do diploma reside na importância de sua função social, apenas isso.

Há muito tempo, nos corredores das escolas de comunicação, tornou-se evidente a crise do ensino da técnica. Basta pouco mais de um mês de estágio para se aprender muito mais sobre apuração e redação que em quatro anos de faculdade. Como dizem alguns respeitados figurões das antigas, o bom jornalismo se aprende na rua.

Mas existe uma lasca do jornalismo que não se aprende na prática. Essa lasca, central na práxis profissional, é justamente a que não nos permite ser usados como massa de manobra da chefia; como mão de obra especializada que repete fórmulas da mesma maneira que um operário aperta parafusos – apenas para satisfazer interesses que lhe são alheios. E trabalhar essa consciência é precisamente o papel e o diferencial das escolas.

A verdade, no entanto, é que talvez seja inútil a minha defesa, assim como toda a discussão. Explico-me: o que impede a real liberdade de expressão não é a regulamentação profissional, como alardeiam os anti-diploma. Com ou sem canudo, quando a notícia vira produto e o editorial depende do comercial, o interesse de uns poucos se sobrepõe ao de muitos, inevitavelmente. E aí a obrigatoriedade ou não do diploma vira coisa pouca, sem muita importância.

Ensino tem de ser reerguido sobre os escombros da terra arrasada

Movimento estudantil ressurge: esperança de que o retrocesso seja revertido.

A ditadura militar de 1964/85 intimidou reitores, diretores, alunos e professores, criando um ambiente irrespirável nas escolas.

Primeiro foram os expurgos, a caça às bruxas.

Depois que a poeira baixou, veio a fase da paranóia: quem estava em instituições ou cursos tidos como de esquerda, sabia ser vigiado o tempo todo, por espiões infiltrados nas salas-de-aula. Todo cuidado era pouco.

No entanto, até por falta de capacidade intelectual — imaginem só, o coronel Jarbas Passarinho chegou a ser ministro da EDUCAÇÃO!!! –, os governos militares não conseguiram implantar a filosofia educacional fascistóide que seria condizente com sua visão de mundo. Causaram mais males no varejo que no atacado.

Pior mesmo foi a mercantilização do ensino que veio em seguida, com a imersão total do Brasil no capitalismo globalizado. Deixaram de existir estudantes, no sentido real do termo. Foram substituídos por consumidores ávidos por agregar valor a seu currículo profissional.

Nem mesmo a ditadura conseguiu suprimir a tradicional missão da educação, de capacitar os cidadãos para refletirem sobre o mundo em que vivem. A sociedade de consumo logrou este feito.

Agora, as escolas formam apertadores de parafusos, com uma formação especializada que lhes permite executar mal e mal suas tarefas numa determinada profissão — e mais nada.

Quando cursei a Escola de Comunicações e Artes da USP, na década de 1970, os dois primeiros anos eram de formação geral, de forma que extraíamos ensinamentos riquíssimos da sinergia com os colegas de outras vocações (jornalismo x música x cinema, p. ex.). Esse respiradouro foi fechado, com a especialização agora sendo imposta desde o primeiro dia.

Disciplinas fundamentais para adquirirmos um conhecimento mais crítico e globalizante foram praticamente banidas dos currículos — começando pela filosofia, que nos permite estabelecer conexões entre os várias abordagens da realidade, habituando-nos a pensar o todo, as partes e as interações entre ambos.

E que dizer do latim, vital para a compreensão de como os idiomas evoluíram e se diferenciaram a partir de uma base comum?! Como é triste ver brasileiros macaquearem sofregamente o falar estrangeiro e não mostrarem o menor interesse na jornada evolutiva que está por trás dele!

VANGUARDA DIZIMADA
— A aposta da esquerda no confronto com a ditadura pela via armada acabou alijando, pela morte ou impedimentos vários, quadros que teriam um papel fundamental a desempenhar na crítica ao modelo de educação e de sociedade que se foi implantando ao longo da década de 1970, quando houve uma reconfiguração para pior, infinitamente pior.

Indivíduos que de gênios tinham muito pouco (mas possuíam ganância e oportunismo em excesso), puderam concretizar sem maior resistência seu objetivo de substituir qualificação por memorização mesmerizada, franqueando as universidades a uma legião de zumbis do sistema.

Instituições de ensino superior brotaram como cogumelos, promovendo farta distribuição de diplomas inúteis, já que o número de formados ultrapassa dezenas de vezes a capacidade de absorção do mercado.

Uma das vítimas desse mecanismo perverso deu um nome pitoresco ao estabelecimento comercial que teve de abrir por não haver conquistado um lugar ao sol na sua profissão: O Engenheiro Que Virou Suco.

Ademais, desvalorizou-se a graduação pura e simples. Pós, mestrado, doutorado, MBA’s, extensão, especialização, seminários disto ou daquilo, uma gama enorme de produtos é oferecida aos consumidores que querem acrescentar diferenciais ao currículo, para se colocarem em vantagem sobre a concorrência no mercado de trabalho.

Resultado: selecionando profissionais para empresas de comunicação, eu frequentemente me deparava com candidatos que ostentavam vários desses penduricalhos mas eram incapazes de redigir algumas linhas sem cometer erros primários de ortografia, gramática e conhecimentos gerais.

Nunca se estudou tanto. Nunca se soube tão pouco sobre o que realmente importa.

Hoje há uma crítica generalizada ao aviltamento da representação política, mas poucos põem o dedo na ferida: os quadros executivos e legislativos são medíocres, predatórios e amorais em função da própria inexistência de uma verdadeira elite na sociedade brasileira.

Cada vez menos dirigentes conseguem ver a floresta atrás das árvores. Miram o interesse imediato e não se dão conta das consequências em médio e longo prazos, nem do quadro global. São conduzidos pelos acontecimentos, ao invés de tentar dar-lhes um direcionamento.

O cenário é o de terra arrasada, literalmente: além dos danos presentes, estamos transformando o futuro em incógnita, com o insensível desperdício/esgotamento de recursos essenciais para a sobrevivência humana.

Carecemos, mais do que nunca, de uma nova vanguarda política e intelectual, que ofereça alternativa ao pesadelo engendrado pelo capitalismo globalizado.

Uma esperança são os sinais de vida que, desde 2007, o movimento estudantil vem emitindo. Ainda é pouco para que seja revertido o imenso retrocesso, mas começou-se, pelo menos, a caminhar de novo na direção correta, a da colocação da universidade como a consciência crítica da sociedade, o que implica questionarmos esse ensino superior que se prostituiu e descaracterizou, perdendo a própria razão de ser.

Quando um terremoto destruiu a infra-estrutura com que o Chile contava para sediar o Mundial de Futebol de 1962, um grande dirigente esportivo andino liderou o esforço para reerguer-se tudo em tempo recorde, tendo proferido uma frase célebre: “porque nada tenemos, lo haremos todo”.

Em matéria de educação, é mais ou menos essa a situação. Nada mais temos, então precisamos construir tudo de novo.