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Fe, Esperança, e ação

José Comblin pronunciou as seguintes palavras este ano na Itália, na Associação Macondo.

Como todos sabemos, o Cristianismo não é uma religião. Mas, historicamente gerou uma religião. Muitas vezes se acentuou tanto essa religião que se fez esquecer o que realmente é a mensagem de Jesus. Essa religião é válida na medida em que ajuda a entrar no projeto de Jesus. Se assim não fosse, a religião cristã seria o obstáculo maior para o Evangelho de Jesus. Nos dias de hoje, a coisa tornou-se mais clara do que no passado, quando o Cristianismo foi submetido aos poderes temporais, e por isso devia encobrir, esconder o Evangelho de Jesus, e apresentar-se como a religião do Estado.

O Cristianismo é uma esperança, mas é uma esperança diferente de todas as outras, uma esperança única, sem imitação. Todos os povos vivem de esperança. Por exemplo, os Índios da América do Sul esperam na vinda da “terra sem males”. Pensam: “Um outro mundo é possível.” Mas, possível como?

No tempo de Jesus, muitos judeus ficaram impressionados com a persistência dos males neste mundo. Eram os autores e seguidores dos apocalipses. Chegaram a pensar que um outro mundo não seria possível nesta terra, com essa humanidade, mas virá um outro mundo após a destruição deste, e só então teremos a realização da esperança. Em diferentes épocas da cristiandade, essa mesma idéia reapareceu exatamente quando os males eram tão grandes, que pareciam insuperáveis, e toda esperança acenava para a vinda de outro mundo.

Também no Judaísmo, no mesmo contexto apocalíptico, apareceu a idéia da ressurreição. Tal idéia quer dizer que também nós e os irmãos defuntos entraremos nesse mundo novo, no futuro, porque vamos ressuscitar.

Em muitas partes do mundo, há a esperança de que a mudança do mundo virá por meio de um grande milagre, pelo poder de algumas forças sobrenaturais, pela intervenção de uma divindade. A certa altura, uma divindade vai resolver eliminar todos os pecadores e todos os males do mundo, deixando-nos um mundo livre e feliz. Só que para se conseguir tal benefício das forças superiores, é preciso pedir insistentemente e oferecer todos os dons que as religiões inventaram. Seria preciso viver virtuosamente num grupo tão perfeito, a ponto de sensibilizar a divindade. Seria preciso cumprir as leis e os preceitos que os deuses exigissem. Por meio de muitos esforços religiosos e morais, a humanidade alcançaria esse imenso dom divino que é a transformação da humanidade.

Houve momentos na história em que a esperança se encarnou num imperador, em um faraó, em um rei santo e perfeito. Quantas vezes, por ocasião do nascimento do filho do rei, pensaram: agora vem o rei salvador. Quando os reis da França eram ungidos e coroados, em Reims, o povo simples pensava que o rei havia feito um milagre, curando os doentes. Mas, depois, a esperança não durava muito. Quando Constantino publicou o edito de tolerância e logo depois multiplicou os privilégios dos bispos e dos sacerdotes, muitos, a exemplo de Eusébio de Cesaréia, pensaram que o reino de Deus anunciado por Jesus havia chegado. Aí começou a ilusão da cristandade. A cristandade seria a manifestação terrena do reino de Deus. Nada mais se deveria esperar. Tal ilusão permaneceu viva durante todos os séculos até o presente. E ainda permanece na mente de muitos eclesiásticos. Se os governantes se deixarem guiar pela Igreja, como se supõe tanha acontecido durante o Sacro Império Romano, se realizaria de novo o reino de Deus na terra. Então, a esperança se colocará na conversão dos governantes que se tornarão novos Constatinos e novos Teodósios. O sonho dos imperadores cristãos do Oriente, o sonho dos reis bárbaros convertidos, o sonho de Carlos Magno, o sonho do império romano germânico ainda está vivo, ainda que sob formas diferentes para esconder seu caráter obsoleto.

A cristandade era o reino da Igreja, e portanto do clero, com o poder temporal a seu serviço. O papa tinha duas espadas. A primeira, ele usava diretamente, e para o exercício da segunda, delegava poder ao imperador cristão.

Quando Joaquim de Fiore anunciou que essa cristandade ainda não era o reino do Espírito Santo, mas este chegaria mais tarde, foi condenado e rejeitado, não apenas pelos poderes eclesiásticos, mas também por teólogos que estavam, todos, a serviço da cristandade. Por conseqüência, não se devia esperar, mas crer: o reino de Deus já estava aí presente. Reino que ainda tinha seus defeitos, mas só por meio dele é que se podia esperar alcançar o céu. Nada de novo na terra podíamos esperar. Certamente havia muitos que não se conformavam e continuavam a esperar um mundo melhor, já neste mundo. Mas, de acordo com a doutrina oficial, nada mais se podia esperar. A Igreja retinha todos os dons de Deus. E portanto o reino de Deus estava dentro da Igreja. A Igreja era o grande dom de Deus para a humanidade. Por Igreja se entendia a Cristandade com toda sua organização de poder.

No seio da Cristandade nasceu uma outra esperança. É possível uma outra Igreja. Esta esperança nasceu no meio dos pobres das cidades. O movimento dotado de um simbolismo muito forte e de força espiritual nasceu de Francisco de Assis. Depois dele e de outros chamados Mendicantes, houve todo um movimento que desejava uma reforma para que se realizasse aquela nova Igreja. Trezentos anos mais tarde, muitos haviam pensado que essa nova Igreja possível deveria ser independente do clero e do Papa. Romperam com estes. Mas, em muitos casos, caíram nos mesmos erros, porque não compreenderam a fonte de corrupção do clero que era a aliança com os poderes econômicos, políticos e culturais. Não haviam descoberto os pobres, salvo algumas exceções que foram espezinhadas.

Entretanto, a partir do século XVI, alguns começaram a ler a Bíblia com os próprios olhos, e não com os olhos da teologia oficial. Pouco a pouco, foram descobrindo que a chamada Cristiandade não era o projeto de Jesus. Jesus havia anunciado o reino de Deus sem poder, sem religião, sem exército. O reino de Deus não era o reino da Igreja, mas a vinda de um mundo novo, mais humano.

Iniciava-se um movimento de laicização da esperança que resiste até hoje, mesmo que com menos força. Para esses na Cristandade não havia mais esperança, mas submissão aos poderes constituídos. Mais de dois séculos de monarquia haviam paralisado a esperança. Os primeiros missionários franciscanos alcançaram a América para fundarem o reino de Deus que era então impossível ao interno da Cristiandade européia. Não durariam porque o rei da Espanha os obrigou a ficarem presos em seus conventos.

Ao fim do século XVII, já havia toda uma corrente intelectual que estava convencida de que o novo reino anunciado por Jesus só se realizaria depois da queda da Cristiandade. O Novo Mundo seria construído contra a Cristandade, e agiram em funão desta convicção. Foram trezentos anos de luta entre as forças laicas e instituições eclesiásticas que resistiram e se defenderam, mas que depois foram perdendo todas as batalhas. Ainda hoje, as forças dominantes na Igreja romana seguem a mesma orientação de reconstrução da Cristiandade.

Nessa época de formação e crescimento da modernidade, torna-se cada vez mais claro que um outro mundo é possível, mas que esse mundo nós mesmos é que haveremos de fazer.Jesus não veio anunciar um grande milagre da parte de Deus ou a transformação da humanidade por meio de uma religião que pretende ter origem em Jesus. Um outro mundo é possível, e cabe a nós fazê-lo. Sobre esse ponto, está se produzindo um desenvolvimento extraordinário e progressivo da capacidade humana de agir no mundo e na sociedade, com toda a liberdade.

O movimento começou pela Física, que permitia desenvolver um método científico que emancipava/libertava a razão do pensamento simbólico incapaz de agir sobre o mundo. Depois, chegou a ciência da Política com sua crítica das instituições fundadas sobre as tradições e não sobre a razão. Era o século XVIII. O resultado foi a queda monarquia e da Cristiandade. Já no início do século XVIII, começava a revolução industrial que iria multiplicar a capacidade de agir sobre a terra, para extrair dela uma infinidade de metais e de matérias-primas, multiplicando as formas do trabalho. Era a sociedade liberal pondo os pés no século XIX. A revolução industrial arrancou os agricultores da terra, para deles fazer um proletariado industrial.

Mas, diante da miséria do proletariado nasceu a idéia de que a sociedade não podia ser abandonada à espontaneidade do mercado, mas tem necessidade de estar organizada nacionalmente para que todos pudessem participar. Por volta da metade do século XIX, despontou o Socialismo.que, de algum modo, levou a uma grande humanização da vida social. Assim, o mundo mudou de maneira sensível.

Todas essas mudanças se fizeram contra a resistência da Igreja. Foi com muito atraso que os católicos se libertaram da hierarquia, mas o suficiente para entrarem nos movimentos sociais, ainda que muito tardiamente. O Cristianismo permaneceu com a fama de seu um obstáculo ao progresso humano. Ainda hoje, a coisa não está superada na mentalidade das massas instruídas.

Foram as revoluções, todas inspiradas pela mensagem cristã contra a organização eclesiástica. Todas essas revoluções foram demonstrações grandiosas da esperança aberta pela mensagem de Jesus. A história real dessas revoluções preparadas e vividas depois por milhões de seres humanos é uma coisa inimaginável! Que dose forte de esperança! Que esperança sem limite experimentada por tantas gerações desde o século XVI! A Igreja orientava a esperança para a vida eterna, junto com todo o seu aparato religioso. Defendia a Cristandade sem saber o que estava ocorrendo. Os cristãos que entendiam a mudança eram rapidamente reprimidos. Por certo, os cristãos não ficaram inertes.Até à metade do século XIX, a grande maioria dos habitantes ainda vivia no campo. A Cristiandade aí sobrevivia, e no entanto, aí nasceram muitas obras que produziram muitos frutos, nesse resto de Cristiandade.

A descoberta da realidade histórica só aconteceu quando quase a totalidade dos habitantes vem morar na cidade, trabalhando na indústria e nos serviços. Só então ficou claro que a Cristiandade havia desaparecido, dela só restando fragmentos da população.ainda fiel às tradições do passado. Só então ficou claro que toda a máquina eclesiástica feita para uma Cristiandade se revelava inútil, ineficiente. Todos os apelos missionários se mostraram ineficazes porque o mundo havia mudado, enquanto a estrutura eclesiástica não havia mudado. E agora que esperança permanece para nós?

Entretanto, no início do século XXI, parece que a esperança está morta em todas as regiões atingidas pela civilização ocidental, e portanto para quase toda a humanidade. A ciência se desenvolveu mais do que nunca, e multiplica os efeitos, mas acabou a esperança numa ciência capaz de produzir uma sociedade nova. Ao contrário, se tomou consciência de que a ciência pode cair nas mãos da guerra ou da paz.

A sociedade industrial e financeira que devia garantir a abundância e a felicidade para todos, gerou uma enorme população de miseráveis. A crise desses anos, mostra a grande desilusão. As promessas de uma sociedade democrática mostram-se mais distantes do que nunca de sua realização. A democracia é objeto de ridicularização, de sarcasmo e desprezo, porque deixa os pobres sem a possibilidade de influírem nas decisões. A retórica política serve para enganar os povos e fazer com que a realidade apareça sem perspectiva em relação ao que deve ocorrer dentro de cinqüenta anos.

O Socialismo foi abandonado por muitos dos seus movimentos e partidos, todos convertidos ao Capitalismo, porque não sabem qual o conteúdo do Socialismo e preferem participar das vantagens do poder. O que aconteceu? O que não funcionou? Por que tantas esperanças suscitadas durante quatrocentos anos acabaram num sentimento de frustração?

A resposta não é difícil, embora pareça surpreendente para muitos. Todas as tentativas para fundar um novo mundo, que aqui evocamos, tinham origem na classe superior. Queriam um mundo novo para uma mudança feita de cima para baixo. Parecia que tinha que ser assim.Os que estão de cima sabem mais e têm o poder. Todos eles têm os elementos para formar uma nova sociedade. Na verdade, esses têm ciência e poder. Mas o caminho por eles escolhido não era o caminho de Jesus.

Jesus havia anunciado o reino de Deus, um mundo novo. Mas Ele convidou os pobres. Os modernos tiveram seus atenuantes. A própria Igreja não anunciava essa mensagem de Jesus. Quem pensava que dos pobres pode vir algo de bom? Mesmo no tempo de Jesus se dizia: “O que de Nazaré pode vir de bom?”

Jesus não tinha poder. Não possuía a ciência deste mundo. Escolhera o caminho da pobreza, do não-poder para dirigir sua palavra aos pobres da Galiléia. Não era só um episódio edificante. Era, antes, um caminho proposto a todos os seus seguidores.

Os pobres não têm armas, não têm poder, não têm conhecimento. Mas, são os únicos que aspiram a um mundo novo. As elites, por mais que sejam revolucionárias, ficam satisfeitas quando descobrem um lugar importante nas mudanças que provocaram. Para muitos a revolução foi o caminho de ascensão social e econômica. O discurso era bonito, mas faltava a vontade de levantar as energias dos pobres.

Os que se acham em posição superior temem perder as vantagens que têm, e por isso controlam e limitam com cuidado as mudanças e impedem que os pobres definam as regras da vida social. Os pobres são os únicos que não têm nada a perder.

É verdade que também os pobres podem corromper-se, podem entrar na mesma dinâmica dos poderosos, quando ocorre alguma oportunidade. Também Jesus sabia disso, e por isso multiplica os ensinamentos, as instruções. O conteúdo da mensagem é sempre o mesmo para os pobres: “que não se deixem corromper.”

Jesus não disse quanto tempo era para esperar a criação de mundo novo. Mas fez um desafio aos seus pobres para que entrassem no movimento a partir do lugar onde haviam nascido, sem prestígio e sem poder. É claro que os pobres devem ser despertados, estimulados e apoiados em sua fé. Para isto é que Jesus enviou os apóstolos. Sua missão é a mesma: suscitar e apoiar a fé dos pobres em sua missão. Os pobres têm um profundo sentimento de impotência e de incapacidade. Muitas vezes, esse sentimento vem associado a um sentimento de culpa: Eles podem sentir-se culpados porque são os vencidos da sociedade. Por isso precisam do apoio de pessoas proféticas para recordar o verdadeiro Evangelho de Jesus.

Os profetas deverão dizer aos pobres que a força de Deus, a força do Espírito Santo permence com eles, e que essa força será mais forte do que as forças dos poderosos. Alguns creram em nós? Tiveram fé? Muitos tiveram fé e na vida deles buscaram todas as formas de ação coletiva para mudar este mundo. E o fizeram com uma coragem heróica. Conseguiram resultados? Certamente. Não mudaram tudo. Reapareceram sempre novas formas de poder e novas classes de poderosos, e sempre tiveram que retomar a luta. No entanto, não perderam o ânimo. Não perderam a esperança. Ao contrário, mantiveram-se portadores de esperança.

Não podemos pensar que se alguém faça um milagre como se pensava que Deus o teria feito.

Não haverá uma mudança repentina e total no mundo. Mas é uma ação paciente, lenta, progressiva para conquistar patamares de mais justiça e de uma paz mais sólida nas relações humanas. Os únicos capazes de fazê-lo são os pobres com a sua perseverança, com a sua audácia, com a sua coragem de desafiar os poderosos. O saber dos sábios deve ser orientado pelos pobres. A organização política deve ser controlada pelos pobres.

Os discípulos de Jesus são portadores desta esperança, se forem verdadeiros discípulos de Jesus, e não se restringem às palavras. Jesus não veio para ensinar um culto, uma religião, mas para infundir uma esperança, enviando o Espírito que é a força desta esperança.

Festa Macondo, 2009