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A decisão de Lula e o “jus esperneandi” de Peluso

Dignamente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu a palavra final do Brasil a respeito da pretensão do Governo Berlusconi, de obter a cabeça do escritor e perseguido político Cesare Battisti para exibi-la como um troféu do suposto triunfo da mais retrógrada e intolerante direita européia sobre os ideais de 1968: o pedido de extradição está definitivamente negado.

Battisti morará e vai escrever seus livros no território brasileiro, a salvo da  vendetta neofascista.

O que resta, doravante, é um exercício de  jus esperneandi por parte do presidente do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso, que precisa de mais algumas semanas para digerir a devastadora derrota pessoal que acaba de sofrer. E é apenas isto que terá.

No fundo, o Caso Battisti só está prestes a completar quatro anos porque, desde o primeiro momento, o STF tem agido como um Poder alinhado com um governo estrangeiro, a golpear instituições e tradições brasileiras.

Por que ordenou a prisão de Battisti em fevereiro de 2007, se era um homem que levava existência pacata, honesta e produtiva há quase três décadas? Não seria suficiente a liberdade vigiada?

A detenção já não se constituiu num prejulgamento, além de uma tentativa de influenciar o julgamento propriamente dito com a produção e farta difusão de imagens negativas?

Por que a exibição de algemas choca tanto o ministro Gilmar Mendes quando o algemado é suspeito de estar praticando crimes financeiros aqui e agora, mas nem um pouco quando se trata de um acusado de haver cometido crimes políticos em outro país, no longínquo final da década de 1970?

A GUERRILHA JUDICIAL DA DUPLA DIREITISTA

Se dúvidas havia quanto à necessidade de manter Battisti preso, deixaram totalmente de existir em janeiro de 2009, no exato momento em que o ministro da Justiça, Tarso Genro, concedeu-lhe refúgio humanitário.

Pela Lei do Refúgio e pela jurisprudência consolidada em vários casos, só restava ao STF arquivar o pedido berlusconiano, como arquivara outros, idênticos, no passado.

Mas, na condição de homens de direita que são e sempre evidenciaram ser, o então presidente do Supremo Gilmar Mendes e o relator Cezar Peluso resolveram subverter o Direito, lançando uma espécie de guerrilha judicial contra o Estado brasileiro:

  • não encerrando o processo nem libertando Battisti, como deveriam ter feito;
  • permanecendo surdos aos muitos e fundados pedidos de libertação do escritor, nem que fosse para aguardar sob vigilância a pantomima que os dois preparavam com lentidão exasperante;
  • tudo fazendo para que o Supremo, numa das decisões mais infelizes e grosseiras de sua História, revogasse, na prática, a Lei do Refúgio, o que (legislar) não é, nunca foi nem jamais será  atribuição do STF; e
  • linchando Battisti, ao julgar seu caso com base não num relatório, mas num panfleto, uma peça da mais gritante e escancarada tendenciosidade.

Jamais eu vira, numa vida inteira de participação em lutas sociais e exercício do jornalismo, o relator de um caso polêmico encampar TODOS os argumentos de uma parte e NENHUM da outra. Mais unilateral, impossível.

Mesmo assim, a escalada de arbitrariedades foi detida quando um dos ministros que até então sustentatva a frágil maioria de 5×4 recuou, horrorizado, ante a tentativa de usurpar-se do presidente da República a prerrogativa de dar a palavra final no caso.

O que não impediu Mendes e Peluso de, após o fim do julgamento, ainda darem um jeito de reabri-lo para alterar o já decidido, numa manobra sem precedentes nos anais do STF, como notou o ministro Marco Aurélio de Mello: a pretexto de esclarecer um voto, enxertaram um condicionamento.

ITALIANOS TRAMARAM ASSASSINATO DE BATTISTI

Mas, obrigando Lula a ater-se aos termos do tratado de extradição entre Brasil e Itália, não lhe criaram real embaraço.

Pois, se o fundado temor de que o extraditado venha a sofrer “atos de perseguição e discriminação” é motivo suficiente para deixar de entregá-lo ao solicitante, não há mais o que discutirmos:

  • é público e notório que o Serviço Secreto Italiano tramou com mercenários o assassinato de Battisti na América do Sul, só não levando o plano adiante por divergência quanto ao preço do  serviço;
  • autoridades e entidades italianas estão, desde fevereiro/2009, dando as mais despropositadas e furibundas declarações a respeito de Battisti, incluindo ameaças de retaliação ao Brasil, promessa de vingança de uma associação de carcereiros e a bizarra confissão do então ministro da Justiça Clemente Mastella, ao reconhecer que a promessa de reduzir a pena de Battisti, de prisão perpétua para o máximo que a legislação brasileira permite (30 anos) estava sendo feita de má fé, só para nos iludir.

Tal incontinência verbal, aliás, veio ao encontro do que o principal jurista brasileiro vivo, Dalmo de Abreu Dallari, já alertara: a Itália não dispõe de nenhum instrumento jurídico que lhe permita adequar sua sentença à exigência brasileira. Recorre a subterfúgios espúrios, simplesmente.

Só não sei como qualificar a  de juristas brasileiros que supostamente ignoram aquilo que tinham a obrigação de saber, pois foi noticiado pela própria imprensa italiana.

É simplesmente inegável e insofismável, salta aos olhos e clama aos céus, que Battisti não só vai ser perseguido e discriminado, como correrá enorme perigo de vida caso seja despachado para a Itália.

AUTORIDADE PRESIDENCIAL EM XEQUE


Se Cezar Peluso quiser apenas dividir a responsabilidade pelo arquivamento do pedido italiano com o restante dos ministros, isto já deporá contra ele, pois a característica mais marcante de sua gestão está sendo exatamente a paralisia do Supremo.

Pior: caso, como faz supor a indicação de Gilmar Mendes para relator, o que ele pretenda é questionar a decisão do presidente da República, aí entraremos num terreno perigosíssimo.

O Supremo já decidiu que cabe ao presidente da República o papel de última instância, respeitando os termos do tratado de extradição Brasil-Itália.

Foi o que Lula fez, utilizando argumentação cabível e consistente, como condutor que é da política externa brasileira e contando com as informações privilegiadas (muitas das quais sigilosas) de que dispõe exatamente por exercer tal função.

Se o STF se dispuser a esmiuçar os elementos de convicção de um presidente, este será obrigado a revelar aquilo que tem por obrigação guardar para si, o que poderá gerar graves transtornos e prejuízos para o Brasil, conflitos internacionais e até guerras.

Então, há um limite para a invasão das prerrogativas presidenciais por parte do STF. E este limite será ultrapassado se o Supremo se meter a destrinchar esta decisão do Executivo, respaldada num parecer tecnicamente inatacável da Advocacia Geral da União e que, ao próprio senso comum, evidencia-se como o chamado  óbvio ululante.

Até o  sujeito da esquina — aquele personagem ao qual o ministro Gilmar Mendes se referiu como se fosse o cocô do cavalo do bandido — percebe que Cesare Battisti não terá seus direitos respeitados na Itália.

É um país:

  • que fechou os olhos a torturas e maus tratos durante os  anos de chumbo;
  • que fez, então, leis retroagirem para abarcar fatos ocorridos antes de sua promulgação.
  • que admitiu estender prisões preventivas (ou seja, de meros suspeitos que ainda não haviam recebido sentença nenhuma) por mais de dez anos;
  • que julgou réus ausentes, aceitando que fossem representados por advogados munidos de procurações forjadas e não voltando atrás quando a falsificação ficou indiscutivelmente provada;
  • que tramou atentado pessoal contra Battisti e moveu-lhe uma campanha de difamação tão falaciosa quanto enormemente vultosa.

NOVA FORMA DE GOLPISMO EM EMBRIÃO?

Aliás, pateticamente, o governo italiano acaba de afirmar em nota oficial que “o presidente Lula deveria explicar tal escolha não apenas ao governo, mas a todos os italianos e, em particular, às famílias das vítimas e a um homem reduzido a viver em uma cadeira de rodas”.

Trata-se de uma óbvia alusão a Alberto Torregiani, que, autor de um livro que o projetou como vítima profissional,  é pertencente a um agrupamento assumidamente neofascista, tem ambições políticas e já admitiu que Battisti não estava entre os assassinos do seu pai Pierluigi Torregiani, conforme declarou em 30/01/2009 à Agência Ansa (vide aqui ):

“Torregiani revelou que Battisti não participou da ação que culminou no assassinato de seu pai porque havia ido à localidade de Mestre, onde teria matado o açougueiro Lino Sabbadin. ‘Está tudo nos autos do processo’, explicou”.

Mas, demagogias, mentiras, ameaças, bravatas e  buffonatas italianas à parte, permanece o fato de que a dupla reacionária do STF parece querer colocar o Supremo no papel de uma corte internacional  que estivesse julgando uma pendência entre o Brasil e a Itália, e não como um Poder brasileiro obrigado a respeitar as decisões tecnicamente consistentes de outro Poder.

Francamente, acredito que ficará falando sozinha, com os demais ministros não a acompanhando nessa aventura insensata e potencialmente catastrófica para nossa democracia.

Mesmo assim, cabe a todos os cidadãos brasileiros avessos ao totalitarismo, imbuídos de espírito da justiça e ciosos da soberania nacional manterem-se alerta contra o linchamento de Battisti e vigilantes contra essa nova forma de golpismo que habita os sonhos da direita inconformada com a hegemonia petista: a ditadura judicial.

Extradição: Chile joga limpo, a Itália trapaceia

Você compraria um carro usado deste homem?

O nosso maior jurista vivo, Dalmo Dallari, já apontou como “obstáculo intransponível” à extradição do escritor Cesare Battisti o fato de que a promessa italiana de reduzir a pena de prisão perpétua a que ele está condenado para detenção de 30 anos, adequando-a à exigência brasileira, é impossível de ser cumprida:

“…a Constituição brasileira (…) dispõe que ‘não haverá pena de caráter perpétuo’. Ora, o tribunal italiano que julgou Battisti condenou-o à pena de prisão perpétua. Essa decisão transitou em julgado, e o governo italiano não tem competência jurídica para alterá-la, para impor uma pena mais branda, como vem sendo sugerido por membros daquele governo. A Constituição da Itália consagra a separação dos Poderes e assim como o presidente da República do Brasil está obrigado a obedecer a Constituição brasileira o mesmo se aplica ao governo da Itália, em relação à Constituição italiana”.

Trocando em miúdos, simplesmente não existe dispositivo legal que permita à Itália alterar uma sentença que já se tornou definitiva. Ponto final.

Mas, o relator do caso no Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso, aceitou a promessa vazia italiana. E nem sequer levou em conta o fato de que o próprio ministro da Justiça daquele país, Clemente Mastella, admitiu o logro ao conversar com integrantes da Aiviter, organização que reúne parentes de reais ou supostas vítimas de ações armadas da esquerda nos anos de chumbo.

Encostado na parede por esses inimigos figadais dos ultras, Mastella confessou ter prometido às nossas autoridades que a pena máxima seria de 30 anos “apenas para acalmar os brasileiros, para que deixem de criar problemas e o extraditem de uma vez”.

E foi além o boquirroto Mastella:

“O palhaço vai ficar na cadeia a vida toda. Eu falei isso apenas para f… os brasileiros”.

Peluso não leu nada disso? Ignora, candidamente, que a Itália tenta tornar o Brasil cúmplice do SEQUESTRO de Cesare Battisti, impondo-nos terrível humilhação? Que cada um tire suas conclusões.

O certo é que, enquanto os italianos tentam nos fazer de tolos, os chilenos agem com correção e transparência.

Pediram a extradição de Mauricio Hernández Norambuena, que está preso no Brasil por haver liderado o sequestro do publicitário Washington Olivetto em 2001.

Foram informados de que só obteriam a extradição caso a pena de Norambuena no Chile não ultrapassasse 30 anos.

Confirmaram nesta 4ª feira (19) sua condenação à prisão perpétua.

Ou seja, o Chile mantém a decisão de sua Justiça, mesmo que isto implique a impossibilidade de Norambuena cumprir a pena.

Mas, claro, a dignidade chilena é simplesmente inalcançável para os Berlusconis da vida.

Dallari acusa Gilmar Mendes de castigar Battisti com prisão ilegal

O jurista Dalmo de Abreu Dallari acusou o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, de ser “pessoal e diretamente responsável por um caso escandaloso de prisão mantida ilegalmente”: o do escritor italiano Cesare Battisti.
Em artigo publicado nesta sexta-feira, 21, no Jornal do Brasil (Prisão ilegal, suprema violência – acessar aqui), o professor emérito da Faculdade de Direito da USP avaliou como uma retaliação de Gilmar Mendes sua decisão de não libertar Battisti depois que o refúgio humanitário lhe foi concedido pelo ministro da Justiça Gilmar Mendes:

“Defendendo abertamente a extradição, e contrariado por não poder concedê-la, o presidente do Supremo Tribunal vem retardando o julgamento do pedido de extradição, criando-se um surrealismo jurídico: mantém-se o refugiado preso, como castigo pela impossibilidade legal de extraditá-lo.”

Dallari explica que, do ponto de vista legal, só caberia ao STF arquivar o pedido de extradição, como sempre acontece quando o refúgio é deferido:

“Preso preventivamente por determinação do ministro Gilmar Mendes, à espera de uma decisão do pedido de extradição formulado pelo governo italiano, em janeiro de 2009 Cesare Batistti obteve, por via absolutamente legal e por decisão da autoridade competente, o status de refugiado, o que, segundo as leis brasileiras, impede que ele seja extraditado”.

Então, resume o professor catedrático da Unesco, o ministro Gilmar Mendes está certo em sua exortação “para que as autoridades responsáveis cumpram o seu dever legal e concedam a liberdade aos que se acham ilegalmente presos”, embora tenha exagerado ao usar “de linguagem agressiva e desrespeitosa, fazendo duras acusações a juízes e membros do Ministério Público”; e, no caso de Cesare Battisti, deveria ele próprio acolher “essa mesma exortação (…), em respeito à Constituição e à dignidade da pessoa humana”.

Mesmo porque, enfatiza Dallari, manter uma pessoa presa ilegalmente é “ato de extrema violência”. Suas palavras são candentes:

“Além da ofensa ao direito de locomoção, reconhecido e proclamado como um dos direitos fundamentais da pessoa humana, praticamente todos os demais direitos fundamentais são agredidos em decorrência da prisão ilegal. Basta lembrar, entre outros, o direito à intimidade, o direito à liberdade de expressão e os direitos inerentes à vida social e familiar, todos consagrados e garantidos pela Constituição brasileira e cujo respeito é absolutamente necessário para preservação da dignidade humana”.

A OPINIÃO DOS “COZINHEIROS”
È alentador constatarmos que a avaliação do maior jurista brasileiro vivo veio ao encontro da que haviam manifestado três jornalistas — aqueles cujas aptidões, no entender de Gilmar Mendes, são equivalentes às dos cozinheiros.

Parece que os membros da profissão extinta por Mendes têm mais acurácia para enveredar pelos assuntos legais do que ele para teorizar sobre o trabalho da imprensa.

Diretamente de Berna, um mês atrás, Rui Martins expressou sua indignação com o comportamento descabido das autoridades brasileiras, tão chocante para quem está acostumado à Justiça do 1º mundo (acessar aqui):

“…enquanto o STF contesta a decisão de um ministro, no limite de uma crise institucional, um homem continua preso. Entretanto, essa privação de liberdade de um homem por decisão do presidente do STF, quando seu alvará de soltura deveria ter sido concedido no dia seguinte à decisão do ministro Genro, já ultrapassou as medidas do tolerável por um Estado de direito.

“A prisão de Cesare Battisti ao arrepio dos direitos humanos é hoje uma vergonha internacional. É toda estrutura de nossa justiça que é posta em cheque e vivemos, neste momento, uma situação digna de uma ditadura, de um país sem respeito às suas próprias leis, e que ignora as garantias individuais baseadas em preceitos internacionais.”

O veterano Antônio Aggio Jr. não foi menos incisivo, em seu artigo lançado logo em seguida e apropriadamente intitulado Estado de Direito ou insanidade ditatorial? (acessar aqui):

“Quando se intenta interpretar um texto de maneira contrária ao que nele está expresso, ocorrem aberrações. E, no caso de Battisti, o julgador parece colocar-se acima da letra da Constituição e da lei. A coisa toda está malcheirosa! Ou Battisti é um asilado político ou um reles homicida estrangeiro. Quanto a sua primeira situação, não resta dúvida, como também com relação ao fato de que, em tal condição, ninguém jamais deveria permanecer encarcerado nem por um dia, enquanto um grupinho de iluminados pelos holofotes da mídia fatura a torto e a direito sobre a sua desgraça. A quem interessa isso? À Nação? Ao povo brasileiro?”

E eu escrevi, também há um mês (acessar aqui):

“Só há um termo aplicável à situação de Battisti: kafkiana.

“Está preso há dois anos e meio sem condenação no Brasil.

“Já conquistou a liberdade e o direito de aqui residir, mas, incompreensivelmente, inaceitavelmente, absurdamente, o STF insiste em invadir a esfera de competência de outro Poder, parecendo disposto a tudo para fazer prevalecer a vontade estrangeira sobre uma decisão soberana do governo brasileiro.

“E tão ciente está da vulnerabilidade jurídica de sua posição que prefere ganhar tempo, nem soltando Battisti, nem o julgando.

“Sabe muito bem que, uma vez tomada sua decisão, o caso seguirá adiante e a defesa vai poder adotar novas medidas, que garantam a Cesare o que ele, repito, já conquistou e não poderá ser-lhe indefinidamente escamoteado.

“Enfim, Battisti cumpre pena de prisão no Brasil sem ter sido condenado, apenas e tão-somente porque a mais alta corte do País se arroga o direito de desrespeitar a Lei [do Refúgio], a lógica e o senso comum.”