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No meio da pandemia: a urgência do Espírito de vida

Em plena pandemia com milhares de mortos cada dia, celebramos a festa de Pentecostes, do Espírito doador de vida e curador. Sua atuação junto a todos os que estão na linha de frente no combate ao Covid-19 é urgente para mantê-los vivos, protegidos e com o ânimo heroico de continuarem em sua missão de salvar vidas, pondo as suas próprias em risco. O hino litúrgico da festa de hoje fala que ele é o “consolador ótimo e o doce refrigério”.Mais do que nunca deve se mostrar com estes dons a todos os que trabalham nos hospitais.

Reflitamos um pouco sobre a natureza do Espírito Santo e sua relevância para a vida e para o dramático momento atual.

Em primeiro lugar importa dizer que o Espírito foi o primeiro a chegar a este mundo e ainda está chegando. Veio e armou sua tenda sobre Maria de Nazaré. Quer dizer, fixou nela sua morada permanente (Lc 1,35) e elevou o feminino à altura do Divino.

Desta sua presença, se originou a santa humanidade do Filho de Deus. O Verbo armou sua tenda (Jo 1,14) no homem Jesus gerado por Maria. Num momento da história, ela, a simples mulher de Nazaré, é o templo de Deus vivo: nela habitam duas divinas Pessoas: o Espírito  que a faz “bendita entre todas as mulheres” (Lc 1,42) e o Filho de Deus, crescendo dentro dela, de quem é verdadeiramente mãe.

Depois,  o Espírito desceu sobre Jesus na ocasião do batismo por João Batista e o inflamou para a sua missão libertadora. Desceu sobre a primeira comunidade reunida em Jerusalém, na festa de Pentecostes que agora celebramos, fazendo nascer a Igreja. Continuou descendo, independentemente, se as pessoas eram cristãs e batizadas ou não como ocorreu com o oficial romano Cornélio, ainda pagão (At 11,45). E em toda a história sempre veio antes dos missionários, fazendo com que no coração dos povos vigorasse o amor, se cultivasse a justiça e se vivesse a compaixão.Esses valores mostram a ação do Espírito Santo. Uma vez entrado na história, nunca mais a deixou. Toma o que é de Jesus, passa-o adiante mas também “anuncia coisas novas que hão de vir”(Jo 16,13).

É pelo Espírito que irrompem os profetas, cantam os poetas, criam os artistas, e pessoas praticam o bem, o justo e o verdadeiro. Do Espírito se moldam os santos e santas, especialmente aqueles que entregam a própria vida para a vida dos outros, como agora os que trabalham,quase à exaustão, nos hospitais do Brasil e do mundo.

É também pelo Espírito que velhas e  crepusculares instituições, de repente, se renovam e prestam o serviço necessário para as comunidades como o Papa Francisco está fazendo e também outras igrejas cristãs.

O mundo está grávido do Espírito mesmo quando o espírito da iniquidade persevera na sua obra, hostil à vida e a tudo o que é sagrado e divino. Isso está ocorrendo em nosso país com um governante mais amigo da morte do que da vida.

Quem se sente mais penalizado nesse momento, sem casa adequada para morar, sem saber o que vai comer no dia seguinte, sem trabalho e sem nenhuma segurança contra os ataques do vírus letal é o pobre. Hoje são milhões. Os pobres gritam. E Deus é o Deus do grito, quer dizer, aquele que escuta o grito do oprimido. Deixa sua transcendência e desce para escutá-los e libertá-los, como no caso do cativeiro no Egito (cf. Ex 4,3). É o Espírito que nos faz gritar Abba, Paizinho querido (Rm 8,15; Gal 4,6). Por isso o Espírito é o pai  e o padrinho dos pobres (pater pauperum) como a Igreja canta hoje nesta festa.

Seguramente não o faz miraculosamente, mas lhe confere ânimo e resistência, vontade de luta e de conquista. Não deixa que seus braços se abaixem. Ele enviou a luz aos corações dos pobres para descobrirem as iniciativas certas, persistirem e de fato chegaram vivos  até hoje; se os indígenas não puderam ser totalmente exterminados e agora, por incúria das autoridades brasileiros estão sob grave risco, se os afrodescendentes não puderam sucumbir ao peso da escravidão, foi porque dentro deles havia uma energia de resistência e de libertação, aquilo que o hino chama de dons e luz dos corações: o Espírito Santo, pouco importa o nome que dermos.

Aos desesperados Ele se mostra como um consolador sem igual. Não os assiste a partir de fora. Foi morar dentro deles com hóspede para auxiliá-los e aconselhá-los, pois esta é sua missão. Nos grandes apertos e crises, Ele se anuncia como uma referência de paz, de calma: um refrigério. Pois assim diz o hino de Pentecostes que estou citando literalmente.

Ele surge como o grande consolador. Quantas vezes,nestes tempos sombrios de epidemia as agruras da vida nos fazem encher os olhos de lágrimas. Quando perdemos um ente querido, sem poder se despedir dele e fazer o luto necessário, ou vivemos profundas frustrações, afetivas ou profissionais como desempregados/as parece que caímos num abismo. É nestes momentos em que devemos suplicar: “Vem Espírito, sede nosso  conforto; enxugue nossas lágrimas e alivie nossos soluços.

O Espírito Santo  veio uma vez e continua vindo permanentemente. Mas em momentos dramáticos como os nossos, sob o Covid-19 precisamos clamar:”Vem Espírito Santo e renova a face da Terra, salve o nosso país, livre-nos dos que não cuidam da vida”.

Se o Espírito não vier, seremos condenados a ver a paisagem descrita pelo profeta Ezequiel (c.37):  a Terra coberta de cadáveres e ossos por todos os lados. Isso jamais queremos de jeito nenhum. Mas quando ele vem, os cadáveres se revestem de vida e o deserto se faz um vergel. Os pobres receberão sua justiça, os enfermos ganharão  saúde e os pecadores que somos todos nós, receberemos o perdão e a graça. Oxalá isso aconteça logo.

Essa é a nossa fé e mais ainda, a nossa imorredoura esperança, unida a um profunda solidariedade com todas as vítimas do Covid-19 de nosso país e do mundo.

(23-05-2021)

Leia a íntegra do Texto-Base da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021

Circularam nas redes sociais alguns vídeos atacando o Texto-Base da Campanha da Fraternidade Ecumênica deste ano (abaixo, disponibilizamos ele na íntegra!!!).
Entre as críticas levantadas, uma chamou especial atenção foi a de que o Texto-Base teria sido escrito por uma só pessoa – o que é uma inverdade, uma fake news que só causou alarido, mas não trouxe verdade alguma.
A redação do Texto-Base foi resultado de um processo coletivo de construção, que iniciou no final de 2019. Teve participação direta de pessoas de diferentes áreas do conhecimento, em especial, sociologia, ciência política e teologia.
A parte bíblica do Texto contou com a colaboração de biblistas de diferentes igrejas cristãs. Todas pessoas com profundo conhecimento bíblico.
Depois de escrito, o Texto-Base foi amplamente discutido por uma Comissão Ecumênica formada por 8 pessoas, sendo 6 indicadas oficialmente pelas igrejas-membro do CONIC, uma igreja convidada e um organismo ecumênico.
A validação final do Texto-Base foi da Comissão Teológica do CONIC, integrada por teólogos e teólogas indicadas pelas igrejas-membro do CONIC. Todas com conhecimento das bases confessionais de suas igrejas e dos documentos doutrinários.
Nunca esse texto foi trabalho de “uma só pessoa”, como erroneamente fizeram parecer. Mas fruto de muito diálogo e reflexão.
Sentimo-nos muito felizes em entregar às comunidades, à sociedade e a todas as pessoas este Texto-Base, que apresenta um conteúdo qualificado e que ficará na história do movimento ecumênico, considerando que aborda de forma corajosa as desigualdades que excluem e segregam pessoas e comunidades.
Como cristãos e cristãs, somos chamadas a denunciar desigualdades onde quer que elas estejam. E não podemos só defender “quem pensa como nós e comunga da nossa fé”. Se uma pessoa, independentemente de qualquer coisa, esteja sendo ameaçada, ostracizada, é nosso dever denunciar. Cristo fez isso o tempo todo! 
Como Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), reafirmamos o compromisso com os Direitos Humanos e conclamamos a todos e todas para um profundo engajamento na Campanha da Fraternidade Ecumênica.
Que unamos nossas forças para a superação da cultura de ódio, impulsionada, em certos casos, por um discurso religioso distorcido. Que a cultura do conlfito se transforme em cultura de amor, capaz de construir uma sociedade onde caibam mulheres com plenos direitos, a diversidade religiosa, a laicidade do Estado (que respeita todas as crenças), os direitos das pessoas LGBTQIA+ e de quem quer que tenha seus direitos restringidos.
Por Jesus Cristo e sua práxis de amor, diálogo e de crítica a toda a lei religiosa que se coloca acima da amorosidade de Deus, uma boa Campanha da Fraternidade Ecumênica para todos e todas.
Clique aqui e baixe o Texto-Base.
Fonte: CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
(17-05-2021)

Hans Küng e a ousadia de pensar a fé cristã

Por Tiago de França
Faleceu hoje, aos 93 anos de idade, o teólogo suíço Pe. Hans Küng. Formado em Filosofia e em Teologia, foi perito do Concílio Vaticano II e professor de teologia em renomadas universidades católicas da Europa.
Foi um teólogo ousado. Gostava de pensar a fé. Não tinha medo de pensar Deus e as realidades a Ele relacionadas. Era um pensador livre, que sonhava com uma Igreja livre e empenhada na libertação integral do ser humano.
Seus questionamentos tinham sólida fundamentação, porque oriundos de uma mente de larga capacidade. Era um homem dado aos estudos. Sabia muito bem do que falava e se expressa com autoridade. De fato, está entre os grandes da história da teologia católica.
Pe. Hans Küng era um homem de pensamento moderno. Profundo conhecedor da Tradição, combatia o tradicionalismo, o moralismo, o clericalismo e a falta de senso crítico. Era um homem da Igreja, que muito a amava, mas sem deixar de criticar as incoerências dos meios eclesiásticos.
Para o Pe. Hans Küng, a teologia precisa falar às mulheres e homens de hoje. Ele sabia da sede e dos dilemas do ser humano no século XX e início do século XXI. Conhecia a sensibilidade do homem atual. Sua palavra foi acolhida pelas mentes recicladas, e rejeitada pelas fechadas, antiquadas. Sua teologia tocava as feridas e despertava nos mais jovens o forte desejo de construir uma Igreja mais livre, aberta e solidária.
Muito antes do meu ingresso no Seminário e de estudar Teologia, conheci algumas de suas obras. Juntamente com o teólogo belga José Comblin, o considero profeta ousado e arrojado. A sua obra jamais será esquecida. É obra do Espírito Santo, que sopra onde, quando e em quem quer.
Com o Pe. Hans Küng aprendi o valor e o alcance do amor a Deus e à Igreja, povo de Deus em marcha. Aprendi também o valor de continuar estudando bastante. O conhecimento teológico é imprescindível à vida e à missão da Igreja. Em todo tempo e lugar, o Senhor faz surgir pessoas como o Pe. Hans Küng, para apontar o caminho de Jesus e fazer com que a Igreja nunca se esqueça da sua missão. É preciso nunca perder a lucidez.
Bendito seja Deus pelo fecundo testemunho do Pe. Hans Küng!
(06-04-2021)

Morrer e re-suscitar

A espiritualidade cristã, nos convida com a páscoa, a refletir sobre o sentido profundo da vida e da morte. Cristo, ao morrer na cruz, personificou tudo que precisa morrer em cada um de nós: a vitimização e morte do outro como solução para os conflitos pessoais e sociais.

A morte injusta de Jesus, visava calar, silenciar a esperança de todo um povo. Ao se deixar matar, Cristo tinha a esperança que morresse com ele, toda forma de injustiça, violência e descriminação.

Havia uma polarização de forças contrárias em ação. Por um lado, silenciar para sempre a voz da esperança, personificada em Cristo, e do outro lado os que viviam da esperança de novos tempos. Com a morte de Cristo, desejavam colocar um ponto final.

A segunda força, a dos invisíveis e esquecidos que viviam de profecias, transformaram o ponto em uma virgula e re+suscitaram toda a mensagem de amor e fraternidade.

Enquanto uns falavam do sepultamento de Cristo, o povo simples multiplicava os testemunhos de suas aparições. Uma das mais contundentes e de forte simbolismo: ser reconhecido partilhando o pão no caminho de Emaús.

O espírito cristão superou a morte terrena e tornou-se luz para toda a humanidade.

A vítima sepultada, ressuscitou em forma de partilha, de solidariedade e amor ao próximo.

A pascoa simboliza esta passagem entre o efêmero que morre e o eterno que permanece. Quando o efêmero passa, chega a hora de ressuscitar o eterno que nele habitava.

Neste momento de muitas perdas pelo Covid-19, vale lembrar que precisamos re+suscitar o que a morte não destruiu naquele que partiu. Perdemos amigos e familiares queridos. Se ficarmos apenas olhando para o sepulcro, só restam lágrimas e um sentimentos de revolta e solidão.

Mas se olharmos para o legado que cada um deixou, vamos ter muito o que celebrar. As lembranças das coisas boas precisam ser re+suscitadas por que são eternas e fazem parte da herança deixada por alguém que se foi e que continua vivo em mim e em meus descendentes. Feliz re+surreição.

 

Sabia da fraqueza

Por J. Thomaz Filho

 

Sabia da fraqueza de um por um,

mas não se rebelou contra ninguém.

Sabia da injustiça, tão comum…

Sofreu. Mas, na resposta, sempre o bem!

Foi firme. Com revide?… Não, nenhum!

 

Fiel a dois propósitos, de fato.

Primeiro: “Quem entende o que convém

é o Pai, então que eu seja o seu retrato”.

Segundo: “Para o mal nenhum porém”,

chamando à consciência em cada ato.

 

E foi levado à cruz – sem crime algum!…

À paz, ao bem, à luz só desacato?

São José, padroeiro da boa morte

Um manto de tristeza e de desamparo se estende sobre o inteiro planeta, especialmente, sobre o nosso país. Somos vítimas de um governo cujo chefe de Estado é dominado por uma inequívoca pulsão de morte que o torna insensível aos trezentos mil vitimados pelo Covid-19 e incapaz de palavras de solidariedade aos familiares e até aos auxiliares próximos falecidos. Parece que sofreu uma lobotomia, tornando-se indiferente à dor e à tragédia humana.

Hoje, dia 19 de março, se celebra no mundo cristão a festa de São José. Demorou cerca de 15 séculos para a Grande Instituição-Igreja (Papa, bispos e padres) conceder-lhe algum valor e sentido. Ela não sabia o que fazer com São José, pois ela é uma Igreja da palavra e ele não proferiu nenhuma. Guardou sempre silêncio e só teve sonhos. Como nos ensinam os psicanalistas, o sonho também é uma forma de comunicação, das dimensões do  profundo humano, dos arquétipos mais ancestrais onde se aninham os “Grandes Sonhos”(C.G.Jung), os medos, as preocupações e esperanças da humana existência.Só em 1870 foi proclamado Patrono da Igreja Universal, não pelo Papa Pio IX mas pela Congregação dos Ritos.

Na verdade, ele é mais  o patrono da Igreja-povo-de-Deus, dos humildes, dos anônimos, da “gente boa” e trabalhadora do que da Igreja-Grande-Instituição. São eles  que vivem, sem muita reflexão, os ideais de seu filho Jesus, de boa vontade,  de amor, de solidariedade e de reverência face ao mistério da vida e da morte. Eles deram o nome de José a homens e à mulheres (com por exemplo, Maria José), à cidades, à ruas, à instituições públicas e à escolas.

O Papa Francisco convocou os fiéis para, durante um ano, refletirem sobre a relevância da figura de São José, especialmente como pai numa sociedade sem pai ou do pai ausente.  Publicou uma Carta Apostólica “Patris corde” (coração de pai ou pai de coração) na qual em sete pontos delineia suas principais características:“um pai amável, pai de ternura, pai de obediência, pai de acolhida, pai de coragem criativa, pai trabalhador e pai na sombra”.

No atual contexto, cabe recordar uma devoção muito popular, a de São José, padroeiro da boa morte, já que a morte se alastra no mundo e no Brasil faz as maiores vítimas junto com os EUA.

As informações sobre a morte de São José se encontram apenas num evangelho apócrifo (não canônico) “A história de José, o carpinteiro” escrito entre o século IV e V no Egito (edição da Vozes de 1990). Trata de uma longa narração na qual Jesus conta aos apóstolos como era seu pai José e como morreu.

O apócrifo contextualiza sua vida e sua morte, testemunhando que, ao voltar exílio forçado no Egito, foi viver em Nazaré, onde “meu pai José, o ancião bendito, continuou exercendo a profissão de carpinteiro e, assim com o trabalho de suas mãos, pudemos nos manter; jamais se poderá dizer que comeu seu pão sem trabalhar” (capítulo IX). Narra ainda que “eu chamava a Maria de minha mãe e a José de meu pai; obedecia-lhes em tudo o que me ordenavam, sem me permitir replicar-lhes uma palavra; ao contrário, dedicava-lhes sempre grande carinho”(c. XI).

Mas chegou um momento, já em avançada idade, que adoeceu:”perdeu a vontade de comer e de beber; e sentiu vacilar a  habilidade no desempenho de seu ofício”(c.XV). Narra com pormenores que, deitado na cama, “ficou extremamente agitado” e começou a se lamentar proferindo  muitos ais (c.  XV e XVI). Ao ouvir tais ais Jesus “penetrou no aposento em que se encontrava e saudou-o: salve, José, meu querido pai, ancião bondoso e bendito”. Ao que José  retrucou:”Salve, mil vezes, querido filho! Ao ouvir tua voz, minha alma cobrou a sua tranquilidade (c.XVII).

Não demorou muito e ocorreu o desenlace:”meu pai exalou sua  alma com um grande suspiro”(c.XXI). E conclui: “eu então, me atirei sobre o corpo de meu pai José; fechei seus olhos, cerrei sua boca e levantei-me para contemplá-lo”(c..XXIV). No momento em que é levado ao túmulo, comenta Jesus:”Veio-me à mente a recordação do dia em que me levou ao Egito e das grandes tribulações que suportou por mim. Não me contive e lancei-me sobre seu corpo e chorei longamente”(c.XXVII).

Por fim, Jesus terminando sua narrativa, faz um pedido aos apóstolos:”Quando fordes revestidos de minha força e receberdes o Sopro de meu Pai, isto é, do Espírito Paráclito e fordes enviados a pregar o evangelho, pregai também a respeito de meu querido pai José”(c.XXX).

Com esta pequena reflexão estamos cumprindo o mandato de Jesus. Oxalá São José acompanhe com sua força e carinho paterno os milhares que estão nas UTIs lutando por suas vidas, contra este terrível ataque que a Mãe Terra desferiu contra a humanidade, mandando-nos o Covid-19 como sinal:  não prolonguem o estilo de vida consumista e devastador dos bens e serviços limitados da natureza; assumam um novo modo sustentável de vida e estabeleçam um laço de amor e de respeito para com a natureza e para com todos os seus seres, nossos irmãos e irmãs, dentro da  Casa Comum, o planeta Terra, nossa grande e bondosa Mãe.

Por uma igreja pobre, servidora e laica: a contribuição do Movimento dos Valdenses

Um dos grandes empecilhos presentes no processo de formação, vivenciado nos seminários, tem a ver com a pouca criticidade dos ensinamentos relativos à história da igreja. Com muita frequência, o que se tem é mais uma história eclesiástica, defesa incondicional da hierarquia, em tom apologético, acrítico. Em verdade, uma compreensão crítica, baseada nos fatos históricos, nos acontecimentos e situações vivenciados pela Igreja Católica Romana e também outras igrejas mui raramente é exercitada. A posição que prevalece é um olhar complacente, condescendente ou mesmo cúmplice dos graves malfeitos protagonizados pela hierarquia eclesiástica, em diversos períodos da história da igreja. Não raramente, aqueles grupos, movimentos e figuras que discordassem dos princípios impostos pela hierarquia, não eram tratados apenas como meros dissidentes, mas como heréticos, alvo, por conseguinte, de intensa perseguição e graves punições, inclusive a fogueira, da parte da hierarquia eclesiástica.

Ao longo de dois mil anos de cristandade são impactantes os graves malfeitos praticados por papas, bispos e o clero em geral contra quem não se submetesse incondicionalmente às suas ordens e normas, mesmo quando estas se chocassem visivelmente com os textos evangélicos. Toda esta estrutura punitiva não foi, contudo, suficiente para inibir ou dissuadir muitos dos membros desta igreja, que preferiram obedecer, conforme o conselho presente nos Atos dos Apóstolos, mais a Deus do que aos humanos. Isto se deu com vários grupos, movimentos e pessoas, ao longo da história da cristandade, em especial durante a chamada Baixa Idade Média. A partir do século XI e XII, observa-se uma sucessão de grupos, movimentos e pessoas que se insurgiram contra os preceitos impostos pela hierarquia, razão pela qual tiveram que pagar um preço muito alto, inclusive com a sua própria vida. No século XII, por exemplo, tem início um movimento animado pela figura de Pierre Valdès (ou Valdo), um rico comerciante que, profundamente tocado pela exortação do Evangelho, segundo a qual dificilmente um rico entrará no reino dos céus, decidiu desfazer-se de sua riqueza e dividi-la com os pobres, em uma atitude de obediência aos ensinamentos do Evangelho em torno de 1160. Na região sudeste da França, perto de Lyon e da Provence, é que tem início este movimento, chamado de movimento dos Valdenses, em referência a figura de Pierre Valdo. Tocados pelo chamamento missionário, este movimento de homens e mulheres passa a alimentar-se da palavra de Deus, especialmente do Evangelho, que os move à pregação em praça pública, em um contexto em que a pregação era tida como prerrogativa exclusiva do clero. Buscando, todavia, obedecer mais a Deus do que à hierarquia, estes homens e mulheres ousam sair em missão, a pregarem e a testemunharem o Evangelho do Reino de Deus e sua justiça, procedimento que passa a ser punido, de forma contundente, pela alta hierarquia, incluindo perseguições e castigos infligidos a este movimento, por longos séculos.

O movimento dos Valdenses não era aceito pela hierarquia, não apenas por ousarem pregar o Evangelho em público, mas também por ousarem fazê-lo, utilizando-se da língua comum, tendo traduzido o Evangelho para a língua do povo, para o vernáculo. Apenas ao clero era permitido, não apenas pregar, como também ler a sagrada escritura e, em latim, sendo às massas populares permitido tão somente ouvir, em segunda mão, a palavra de Deus, o que os membros deste movimento não se puseram de acordo. Guiados pelo sopro frontal, pelo Espírito Santo, os Valdenses não cessavam de espalhar-se por aquela região, de modo a assustar ainda mais os hierarcas. Estes ainda sofriam fortes denúncias feitas pelos Valdenses, com relação ao seu agir aético e distante dos valores do Evangelho, à medida em que se impunham como componentes de um estado, de um império, com alianças seguidas com reis e príncipes, ao tempo em que desprezavam os pobres, os desvalidos mais ainda: metiam-se em situações de corrupção e de devassidão, perdendo cada vez mais a confiança dos pobres, dos que não compunham a nobreza e seus cúmplices. Os valdenses expandiam fortemente sua ação missionária passando da região em torno de Lyon, na França, para a região da provence francesa e, em seguida, para a região italiana dos Alpes, do Piemonte. Os hierarcas, por sua vez, não pouparam os Valdenses, Contra eles movendo seguidas perseguições, das quais a chamada “Semana Sangrenta”, na região francesa do Luberon, constitui uma forte ilustração das perversidades do massacre impetrado contra milhares de membros do Movimento dos Valdenses, em 1545.

Não eram apenas os Valdenses, também conhecidos como “os pobres de Lyon” que teimavam em seguir os conselhos evangélicos, mesmo contra as ordens e as normas dos hierarcas eclesiásticos. Havia, também, outros movimentos que seguiram passos semelhantes. o próprio movimento em torno de Francisco de Assis (os Valdenses surgiram cerca de 20 anos antes do nascimento de Francisco de Assis) também significou um protesto veemente contra a riqueza do clero e seus vínculos orgânicos com o império, com reis e príncipes, com a nobreza. Enquanto Francisco e seus companheiros, ainda que não tendo uma postura de claro enfrentamento com a hierarquia, graças ao seu testemunho de pobreza e de profecia, apontavam o horizonte do reino de Deus como sendo sua verdadeira meta. Além dos chamados espirituais franciscanos ou “fraticelli”, também importa reconhecer outros grupos e movimentos que surgem e se espalham, como o movimento das Beguinas, também contemporâneo dos acima mencionados.

Há mais de 20 anos, em um pequeno livro intitulado “Memória histórica e movimentos sociais populares “, tivemos a ocasião de fazer um breve apanhado de diversos movimentos pauperes típicos da Idade Média, incluindo os valdenses, franciscanos, os espirituais franciscanos, os cátaros, os begardos, as beguinas, integrantes do movimento em torno de Jan Hus e de Thomas Müntzer, entre outros. Naquela ocasião – como ainda hoje -, com notável frequência, escutamos advertências ou exortações da parte de integrantes de correntes conservadoras e reacionárias, aconselhando a não olhar pelo “retrovisor”, para se poder olhar apenas para a frente. Isto tem sido estratégia recorrente dos “vencedores da história”, inclusive de correntes escravagistas que hoje assumem posição de relevo no atual contexto sócio-histórico e mesmo eclesial, a despeito de figuras tais como a do Papa Francisco. Ora, para os vencidos, olhar apenas para o futuro, desprezando relevantes lições do passado, significa um ato de submissão aos ditames dos grupos dirigentes e dominantes. Rememorar acontecimentos, situações e fatos históricos constitui uma ferramenta preciosa para os “de baixo”, à medida que tal exercício é capaz de recolher lições e aprendizados, sem os quais se tornaria inútil a busca de alternativas com chances de êxito. Como costumava dizer Eduardo Galeano, “o passado tem muito a dizer ao futuro”. daí nossa decisão de revisitarmos, de vez em quando, acontecimentos e fatos históricos do passado, não com o intuito de reproduzi-los – o que seria uma inócua farsa -, mas de, ao revisitá-los, buscar recolher ensinamentos grávidos de alternatividade para um enfrentamento exitoso dos desafios atuais. É, por conseguinte, nesta perspectiva, que ousamos rememorar o movimento dos Valdenses, ainda que de modo resumido.

Um dos ganhos relevantes de nossa tentativa reside no fato de que, por um lado, se as relações de dominação têm-se feito presentes, ao longo de séculos, os movimentos populares de resistência sempre tiveram lugar. E não se trata apenas, como sabemos, da resistência profética oposta pelos Valdenses aos caprichos e malfeitos perversos praticados pela hierarquia eclesiástica, em conluio com a nobreza, com o império, com príncipes, em diferentes épocas, mas também de rememorar tantos outros movimentos populares, antes e depois da Idade Média, até os dias presentes, como uma estratégia libertária para os oprimidos de todos os tempos. Convém sempre lembrar o protagonismo de outras forças sociais, movidas ou não por valores religiosos, mas sempre dispostas a se rebelarem contra todo tipo de dominação tal revisitação resulta, não apenas pertinente, mas igualmente útil e necessária, como meio de reforçar nosso horizonte de busca de uma nova sociedade, alternativa aos caprichos da barbárie presente, representada pelo capitalismo, em suas diversas modalidades.

Neste sentido, nossa busca de familiarização com os acontecimentos protagonizados, seja pelos gladiadores romanos que se rebelaram contra o império, seja pelos diversos movimentos revoltosos da Idade Média, seja pelos movimentos revolucionários da Idade Moderna e da Idade Contemporânea. Isto representa um campo de resistência bastante promissor como inspiração para as lutas presentes.

O que podemos recolher, como lições, das lutas travadas por estes movimentos populares, dentro e fora dos espaços eclesiásticos, especialmente dos Valdenses? Um dos pontos a recolher, refere-se ao entendimento de que toda dominação constitui-se uma relação social, na qual e pela qual dois pólos entram em conflito aberto: o polo da dominação e o polo que sofre a dominação. Sem o consentimento deste, a relação se rompe, em algum momento. Isto sucede tanto nas macro relações quanto nas micro relações. Resulta impossível uma dominação, inclusive, pela força das armas, quando é persistente a resistência do polo que sofre aquela dominação. Eis um aspecto que injeta muita esperança e confiança nos dominados de todos os tempos, inclusive nos de hoje.

Dadas, inclusive, suas especificidades e singularidades, vale a pena trazer à tona alguns aspectos da evolução e dos desdobramentos do Movimento dos Valdenses. Trata-se de experiência eclesial das mais longevas, entre as igrejas cristãs. O movimento dos Valdenses se dá antes mesmo do nascimento de Francisco de Assis, no final do século XII, menos de um século após o chamado cisma do oriente, isto é, a separação de igrejas ortodoxas da Igreja Católica Romana, em 1080. O movimento dos valdenses, com efeito, tem atravessado cerca de nove séculos, sendo capaz de sobreviver a graves intempéries sofridas, ao longo deste tempo.

Na sua proposta de vivenciar o Evangelho, por meio do discipulado fiel à sua palavra, Pierre Valdo e seus seguidores se mostraram bem firmes, em seus propósitos, principalmente no tocante à sua vocação de pregar o Evangelho em público, permitindo que a palavra de Deus fosse acessível diretamente àqueles e àquelas tocadas pela sua mensagem, razão por que Pierre Valdo tratou, junto com os seus irmãos e irmãs, de fazer traduzir a Sagrada Escritura ou mais diretamente os Evangelhos, em língua popular, em um tempo em que somente os membros do clero tinham a prerrogativa de lê-la, em latim, acarretando ao povo uma leitura de segunda mão, algo com o que os Valdenses não concordavam. Esta vocação de leigos e leigas pregadores do Evangelho incomodou o alto clero, tornando-se um fator de reiteradas perseguições condenações e até de massacre, como ocorreu em 1545, além de outros episódios semelhantes em tempos posteriores.

Os Valdenses, a partir de Lyon e dos seus arredores, na região de Aix-en-provence, foram se expandindo para outras regiões, A exemplo do Piemonte e, a partir daí, por toda a península italiana, pela Suíça, pelo sul da Alemanha, chegando a marcar presença também em países do leste europeu, exemplo da atual República Tcheca e da Polônia, depois indo mais longe, inclusive na América Latina, especialmente entre o Uruguai e a Argentina, além de sua presença também nos Estados Unidos, na região de Carolina do Norte, Nova York e outras.

Esta capacidade de resistência a todo tipo de perseguição tornou os valdenses fiéis e obedientes à palavra de Deus, até o presente. Disto dão testemunho sua participação e sua ação evangelizadora, por meio também da oração e do culto assegurado aos seus fiéis, mulheres e homens. Adaptando-se aos diversos contextos, os valdenses acabaram filiando-se às igrejas reformadas, principalmente à Igreja Calvinista, e mais recentemente, também à Igreja Metodista e Presbiteriana.

Interessante, igualmente, atentar à forma como organizam e vivenciam os seus cultos. uma sugestão provocativa pode ser a de acompanhar um de seus cultos, pela via da internet, nesses tempos de pandemia. Um desses cultos, tivemos a alegria de acompanhar recentemente (e que recomendo pelo link https://www.youtube.com/watch?v=j5QSiarbFGs), justamente quando se celebrava a festa de Pentecostes. No culto, a ênfase dada era a de um dia todo especial, pois rememorativo da fundação das igrejas cristãs. Chamam a atenção não apenas as densas leituras da celebração, como também a firme participação feminina nos referidos cultos, em companhia masculina, demonstrando uma participação fraterna, também no que concerne às relações de gênero.

 

Outro aspecto tocante, na experiência mais recente das igrejas valdenses, refere-se à sua participação crítica nos embates da sociedade civil, inclusive em temas delicados, tais como a orientação sexual de seus membros, a eutanásia, sua posição em relação a muitos temas-tabus, tão característicos atualmente das igrejas Neo pentecostais fundamentalistas, inclusive no segmento Pentecostal ao interno da Igreja Católica Romana. Chama a atenção, não menos, sua posição firme em relação à laicidade do Estado. Mostram-se, também, muito aplicados nos estudos de exegese, adotando o método histórico crítico, como instrumento de releitura e interpretação de textos bíblicos espinhosos, do ponto de vista das mulheres e dos homens de nossos tempos.

Rememorar traços significativos do legado dos Valdenses e de tantos outros movimentos populares, na Idade Média e em quaisquer outros períodos da história, tem a ver com o propósito de reavivarmos nossos compromissos, diante dos tremendos desafios atuais – ecológicos, sanitários, econômicos, políticos e culturais, à medida que tal exercício nos permite compreender a importância do exercício de uma memória revolucionária, tanto em sua dimensão coletiva quanto no âmbito pessoal.

Em vez de nos rendermos ao sentimento de impotência ou, pior ainda, de indiferença, ante os desafios de hoje, exercitar a memória histórica destas lutas e deste legado nos anima sobremaneira, no sentido de despertar nossa consciência crítico-transformadora, a partir das correntezas subterrâneas, grávidas de alternatividade à barbárie capitalista ora agravada, seja pela pandemia da covid-19, seja pelo pandemônio da atual conjuntura neo-fascista de correntes obscurantistas, protagonizadas por seres humanamente desfigurados como os do Trumpismo e do Bolsonarismo. Quanto a este último, importa alertar em relação aos gravíssimos riscos que a sociedade brasileira corre – já não bastassem os anos de tragédia golpista, maquinada pela elite escravagista -, ante a clara tendência ao aprofundamento do golpe, por meio da criação de um Estado teocrático miliciano, haja vista seu obcecado empenho em liberalização da venda de armas. No caso dos Estados Unidos, ainda que tarde, alguma medida está sendo tomada. E em nosso caso?

 

João Pessoa, 13 de Janeiro de 2021.