A frase célebre de Karl Marx foi ligeiramente modificada no Brasil: aqui a ditadura militar começou como farsa, transmutou-se em tragédia e terminou reconvertida em farsa (com a redemocratização pela metade, incluindo a impunidade eterna dos carrascos do regime e seus mandantes).
Mas, o que era farsa no dia da mentira em seguida se tornaria tragédia. O marco da mudança de espetáculo foi a tortura a céu aberto do sexagenário e já lendário dirigente comunista Gregório Bezerra, arrastado por uma praça de Recife com uma corda no pescoço e os pés em carne viva, pois haviam sido imersos em solução de bateria de carro.
A ditadura jamais foi branda, como a Folha de S. Paulo e Marco Antônio Villa querem fazer crer; ela dosava o uso da força de acordo com as necessidades de cada momento, mas sempre reagindo com contundência muito superior à das ações que se lhe opunham. Quando a resistência engatinhava, os militares barbarizavam menos; quando confrontados, fecharam o Congresso e colocaram o país sob estado de sítio, sem sequer terem a franqueza de dar nome aos bois.
Criam que bastava deterem o monopólio das versões, assegurado pela censura, para que as atrocidades fossem mantidas sob o tapete. Conseguiram parcialmente seu intento durante os 21 anos de arbítrio e também nos patéticos governos de José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco. Os torturadores do regime militar pouco foram incomodados, inclusive em termos de exposição e execração públicas, até 1994.
Justiça seja feita, logo no seu primeiro ano de governo (1995) Fernando Henrique Cardoso instituiu a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, à qual viriam seguir-se, em 2001, a Comissão de Anistia; e, em 2011, a Comissão da Verdade, esta última por iniciativa de Dilma Rousseff.
Os esqueletos nunca mais pararam de sair dos armários, chocando os brasileiros civilizados com os relatos nus e crus das mais bestiais torturas (inclusive de crianças, para quebrar a resistência dos pais), de um sem-número de assassinatos maquilados em suicídios, confrontos ou tentativas de fuga (os mais emblemáticos foram os de Rubens Paiva e Vladimir Herzog), das execuções covardes de prisioneiros nos aparelhos clandestinos da repressão e na campanha do Araguaia, dos frequentes estupros, da ocultação sistemática de cadáveres e outros horrores.
Como os totalitários empedernidos teimam em festejar o que seres humanos normais consideram motivo de opróbrio, sugiro-lhes a escolha do símbolo mais adequado para a efeméride.
Poderia ser o delegado Sergio Paranhos Fleury (aquele funcionário tão abnegado que até levava serviço para casa, ou melhor, para o sítio…), se ele não tivesse mordido a mão do dono e, logo em seguida, casualmente se afogado ao cair do próprio barco.
Poderia também ser o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que acusa os outros de sufocarem a verdade quando ninguém tem tanta verdade escabrosa para esconder quanto ele próprio.
Mas, lembrando o velho bordão de que futebol é momento, neste instante não há ninguém melhor do que o coronel Paulo Malhães para simbolizar a ditadura de 1964/85.
Pois ele foi além dos seus antecessores ilustres: não só fez coisas abomináveis, como assume que as fez e orgulha-se de tê-las feito. Torturou, matou, mutilou e é com indisfarçável prazer que conta isso, tintim por tintim.
1 a esquerda saiu tão mal na foto em 1964 que entrou em parafuso e partiu para intermináveis lavagens de roupa suja, culminando numa miríade de rachas e lançamento de novas siglas, enquanto filmes como Terra em transe e O desafio flagravam o desencanto e a perplexidade decorrentes da derrota sem luta. Então, para que o povo voltasse a respeitá-la, a esquerda precisava provar que tinha, sim, coragem para sangrar por seus ideais. Minha geração sentiu isto vivamente. Quando o regime se direcionou para o fechamento total, os melhores de nós consideramos indigno fugir de nossas responsabilidades… e pagamos um preço altíssimo por tal opção. Os que negaram fogo em 1964, quando as circunstâncias eram muito menos desfavoráveis, prepararam o terreno para as tragédias que marcariam a luta armada.