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Por que Serra é o herdeiro político da ditadura

É preciso dar nomes aos bois. Os brasileiros não têm memória curta, mas existe aqui uma cultura política – reforçada na esfera midiática – de enfatizar posições circunstanciais mais que campos históricos. Serra fala de “biografia”, mas omite as biografias de quem o apóia. Dilma, também, enfatiza mais sua trajetória individual de trabalho do que o conjunto político que apóia seu projeto. E basta passar em revista um “quem é quem” da política brasileira desde o regime militar para deixar bem claro quem está do lado de quem, e que setores da sociedade cada um representa.

A ditadura militar brasileira (1964-1985) não foi homogênea nem no corte temporal, nem no corte ideológico. Foi fruto de uma conjunção de interesses que se aliaram na conjuntura de 1964, mas depois de alteraram, mudaram de lado e, por fim, voltaram a se unir em alianças estratégicas. Caiu quando esses interesses lhe tiraram a base, tendo ainda por pressão um cenário externo, na América Latina dos anos 1980, de re-civilização e paulatina redemocratização.

Em março de 1964, esses interesses convergentes eram, à frente de todos, a burguesia industrial urbana (acima de tudo, paulista), grandes proprietários de terra (no nordeste, norte e centro-oeste), classes médias conservadoras do centro-sul e uma vanguarda reacionária dos militares anti-nacionalistas. A Igreja, claro, também desempenhou papel importantíssimo, ainda que membros das bases eclesiásticas tenham cedo articulado uma resistência da esquerda católica, principalmente em Minas Gerais, como foi o caso de Frei Betto, Herbert de Souza e Dilma Rousseff.

No ano do golpe, a burguesia industrial, a oligarquia rural e os anti-nacionalistas estavam reunidos no partido União Democrática Nacional, a UDN. Já outros oligarcas e os antigos burocratas (seria eufemismo dizer “gestores públicos”) do período getulista se agrupavam no Partido Social Democrático, o PSD. E os getulistas (ou, como se diz em São Paulo, “varguistas”) eram membros do Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB. Havia ainda partidos menores à esquerda, como o PSB e o PCB (ilegalizado desde 1947), e à direita, como o PSP de Adhemar de Barros, e o PRP do integralista (fascista) Plínio Salgado.

Entre udenistas mais destacados estavam Carlos Lacerda, Sandra Cavalcanti, Tenório Cavalcanti, Amaral Neto (RJ), Magalhães Pinto, Pedro Aleixo, Aureliano Chaves, Milton Campos (MG), João e Otávio Mangabeira, Juracy Magalhães (BA), Arnon de Melo (pai de Fernando Collor de Melo), Teotônio Vilela, Rui Palmeira (AL), José Américo (PB), João Agripino Maia (PB e RN), Aluísio Alves (RN, rival do anterior), Virgílio Távora (CE; sobrinho de Juarez Távora, tenentista, aliado histórico e depois inimigo de Getúlio), Flores da Cunha (RS; outro ex-getulista rompido), Petrônio Portela (PI) e José Sarney (MA).

Sua ideologia era baseada num forte apoio à iniciativa privada, aliança com empresas estrangeiras, rejeição ao nacionalismo e ao sindicalismo e um forte conservadorismo católico. Foram radicalmente contra a criação da Petrobrás, e defendiam que o petróleo brasileiro deveria ser entregue a companhias estrangeiras como a Esso, a Shell e a Texaco.

Já os pessedistas eram liderados por Juscelino Kubitschek (que já tinha sido presidente) e tinham ainda Amaral Peixoto, Negrão de Lima, Henrique Dodsworth, Miguel Couto, Pedro Calmon (RJ), Benedito Valadares (o “Governador Valadares”, que deu origem à expressão “Mas será o Benedito?”), Gustavo Capanema, Cristiano Machado, Israel Pinheiro, José Maria Alkmin (MG), Fernando de Souza Costa, Ranieri Mazzilli, Ulisses Guimarães (SP), Agamenon Magalhães, Barbosa Lima Sobrinho (PE), Silvestre e Ismar Góis Monteiro (AL), Armando Falcão (CE), Renato Archer (MA), Álvaro Maia (AM), Pedro Pedrossian (MS), Moisés Lupion (PR), Walter Só Jobim (avô de Nelson Jobim) e João Neves da Fontoura (RS), além de militares como Henrique Teixeira Lott (nacionalista) e Osvaldo Cordeiro de Farias (anti-nacionalista).

Apesar de a UDN e o PSD serem fracos em São Paulo (dominado pelo “ademarismo”), representavam nacionalmente os mesmos interesses de famílias paulistas de empresários, industriais e políticos, como os Matarazzo, os Simonsen, os Safra, os Ermírio de Moraes (Grupo Votorantim), os Camargo e os Corrêa (grupo Camargo Corrêa), os Mesquita, os Street, os Lafer e os Klabin, de quem tinham apoio. Em outros estados, ainda, tinham apoios de famílias burguesas ou de oligarquias seculares como os Melo Franco (MG), os Guinle, os Mayrink Veiga, os Steinbruch (RJ), os Mariani (BA), os Pompeu de Souza, os Jereissati (CE), os Bornhausen (SC) e os Gerdau-Johannpeter (RS).

Vários dos nomes citados acima foram ministros da ditadura, governadores e prefeitos nomeados ou eleitos por votação indireta, deputados e senadores no regime militar. Poucos, como Ulisses e Barbosa Lima, passaram para a oposição logo de cara. Mas, pelo menos no início, todos eles apoiaram o golpe.

Com a tomada do poder à força pelos militares, os nacionalistas, socialistas, comunistas e esquerdistas de todo tipo, além de alguns políticos de direita mas considerados potenciais adversários – como Juscelino, Lacerda e Adhemar – foram perseguidos, presos, cassados, banidos (expulsos do país) ou assassinados. Sobrou muito pouca gente no PTB (todos os ministros de João Goulart foram declarados inelegíveis), e as pessoas do PSB, PCB e outros tiveram de ficar escondidas – a “clandestinidade”.

A UDN e o PSD foram os partidos que apoiaram a ditadura abertamente no início. Mas, em 1965, houve eleições estaduais e esses partidos foram derrotados em postos-chave, como o Rio de Janeiro (então Estado da Guanabara) e Minas. Como em qualquer ditadura, os militares não tinham tolerância à oposição e baixaram o Ato Institucional Nº2 (AI-2), cassando todos os partidos (inclusive o PSD e a UDN) e criando regras tão exigentes para a formação de novos partidos que, na prática, só puderam ser criados dois: a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

Os políticos da UDN migraram em peso para a ARENA, partido criado pelos políticos civis para apoiar a ditadura dos militares. Entre as principais lideranças do partido estavam Francelino Pereira e José Sarney. Quase toda a UDN mineira foi para a ARENA. Além dos udenistas históricos, houve arenistas de origem empresarial ou técnica que foram ascendendo na burocracia de governos e órgãos públicos graças a nomeações (porque o AI-3, em fevereiro de 1966, acabou com a eleição direta para governador e prefeito). Entre eles, estavam Antônio Carlos Magalhães (BA; sem parentesco com Juracy), Paulo Maluf, Paulo Egydio (SP), Hélio Garcia e Eliseu Resende (MG). Entre os membros da direita ideológica estavam Célio Borja (RJ) e Abreu Sodré (SP), o líder estudantil Marco Maciel (PE), o militar Mário Andreazza, o fascista Filinto Müller (ex-chefe de polícia de Getúlio e o homem que mandou Olga Benário para os nazistas), além de economistas e banqueiros como Olavo Setúbal, Delfim Netto, Roberto Campos, Pratini de Moraes e Mário Henrique Simonsen.

Já o PSD ficou mais dividido: a maioria foi para a ARENA, mas parte expressiva foi para o MDB, de oposição “comportada” à ditadura, e formado com remanescentes do PTB getulista. Entre os ex-pessedistas, estavam Tancredo Neves (MG), Ulisses Guimarães (SP), Amaral Peixoto e Chagas Freitas (RJ). José Maria Alkmin (sem parentesco com Geraldo Alckmin), amigo de Juscelino, do PSD, foi para a ARENA e acabou escolhido como vice de Castelo Branco, o primeiro presidente da ditadura. Assim como a ARENA, o partido conta com quadros que ascendem em administrações locais, como Mario Covas, Orestes Quércia (SP), José Richa (PR), Miro Teixeira (RJ), Paulo Brossard, Pedro Simon (RS) e Renan Calheiros (AL). Houve ainda correntes “janistas”, paulistas ligados a Jânio Quadros, como Franco Montoro e o brigadeiro José Vicente Faria Lima.

À parte da política formal, sem poder concorrer aos cargos e sob ameaça de serem presos, torturados e mortos, estavam os políticos da esquerda. Contavam-se tanto a esquerda tradicional, fosse getulista (Leonel Brizola) ou socialista (Miguel Arraes, Francisco Julião, Ricardo Zarattini), além do PCB, chamado de Partidão (Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra). Todos estes foram para o exílio. Quem ficou foi obrigado a se manter na oposição intelectual, como diversos acadêmicos (Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Francisco Weffort, Maria da Conceição Tavares, Marilena Chauí, Emir Sader) ou a aderir à clandestinidade. Havia ainda as lideranças mais jovens que militavam no movimento estudantil (José Serra, Vladimir Palmeira, filho do udenista Rui Palmeira), igualmente perseguidos e dos quais vários também se exilaram. Todos estes estavam na oposição à ditadura.

Dos que decidiram pegar em armas contra a ditadura, milhares eram jovens até então desconhecidos que ingressaram nas dissidências do Partidão que apoiavam a luta armada, inicialmente lideradas por nomes da velha guarda comunista, como o PCdoB (João Amazonas, Maurício Grabois, Haroldo Lima, Pedro Pomar, Vladimir Pomar), o PCR (Manuel Lisboa), o PCBR (Mário Alves, Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho) e o PRC (José Genoíno, Tarso Genro), além das guerrilhas ALN (Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, Nilmário Miranda, Paulo Vannuchi, José Dirceu), MR-8 (ou Dissidência da Guanabara): Franklin Martins, Fernando Gabeira, Daniel Aarão Reis, César Benjamin, Vera Magalhães, Stuart Angel), VPR (Carlos Lamarca, Iara Iavelberg, Alfredo Sirkis), VAR-Palmares (Dilma Rousseff, Carlos Minc), POLOP (ligada ao PSB; Moniz Bandeira, Paul Singer) e a esquerda católica mineira (Frei Betto, Frei Tito, Herbert de Souza, Vinícius Caldeira Brant; o catarinense Leonardo Boff, também adepto da Teologia da Libertação, foi por outro caminho).

Mais para o fim do regime, uma corrente do movimento estudantil de linha trotskista se destacou das outras: a Libelu (Liberdade e Luta), que tinha entre seus membros nomes como Antonio Palocci, Reinaldo Azevedo, Demétrio Magnoli, Eugênio Bucci, Luis Favre, Clara Ant, Luiz Gushiken e Glauco Arbix.

Mas o quadro mudou muito à medida que se aproximava a volta ao governo civil e à democracia, no processo lento, gradual e repressivo chamado de “abertura” (1974-1985). O MDB já não dava conta das demandas da esquerda, e mesmo na ARENA havia políticos de direita ideológica que não se conformavam com o crescimento dos burocratas, muitas vezes corruptos, representados por Maluf.

Em 1978, foi na prática autorizado o fim do bipartidarismo, com regras mais fáceis de cumprir para a fundação de novos partidos. Leonel Brizola voltou e quis refundar o PTB para reagrupar os getulistas, mas a Justiça Eleitoral (ainda manipulada pelos militares, que viam na força da sigla uma ameaça) deu a legenda para uma sobrinha de Getúlio, Ivete Vargas, que não tinha nenhum comprometimento com a esquerda nem a causa trabalhista. Sem outra saída, Brizola fundou o Partido Democrático Trabalhista, o PDT.

O MDB acrescentou a palavra “Partido” ao nome e virou PMDB, mas começou a cindir quando cresceu eleitoralmente, gerando disputas internas regionais. Algumas destas dissidências se uniram a setores descontentes da ARENA para formar o PP (Partido Popular), apelidado de “centrão”, sob a liderança de Tancredo Neves e seu escudeiro Miro Teixeira, tendo ainda banqueiros da antiga UDN, como Magalhães Pinto e Olavo Setúbal. O PP durou apenas dois anos e foi incorporado ao PMDB em 1982.

A ARENA se converteu em PDS (não confundir com o antigo PSD!), sigla para Partido Democrático Social – curioso nome para o partido de um regime que não tinha nada de democrático, nem de social. Com ele ficaram Maluf, Sarney, Aureliano, Mário Andreazza, e membros civis menos expressivos da ditadura, como Francisco Dornelles (sobrinho de Tancredo e de Getúlio) e Fernando Collor.

Mas, naquele mesmo final de década de 1970, ocorreu um fenômeno socio-político que teria conseqüências transformadoras para o país: a ascensão do novo sindicalismo brasileiro, marcadamente paulista, sem laços com o getulismo, simbolizado pelas vitoriosas greves de metalúrgicos do ABC Paulista. A liderança que emergiu desse movimento foi Luiz Inácio Lula da Silva. E grupos tanto da esquerda tradicional quanto das antigas guerrilhas e dissidências já ativas prestararam atenção a esse fenômeno (exceto o MR-8, que se incorporou ao PMDB). A lei de anistia de 1979 permitiu a vários exilados que voltassem (Serra, Gabeira, Sirkis, Franklin Martins), cancelou banimentos e soltou oposicionistas presos (Dilma, Genoíno). Muitos deles viram em Lula uma liderança natural em ascensão, e com ele articularam um novo partido político que se apresentasse como diferente de toda a política tradicional feita no país até então.

O primeiro teste para o novo quadro partidário brasileiro foi a eleição para governador, em 1982. Leonel Brizola, pelo PDT, enfrentou uma tentativa de fraude e conseguiu se eleger no Rio de Janeiro. Lula concorreu a governador de São Paulo pelo PT, mas o eleito foi Franco Montoro, do PMDB. Já peemedebista, Tancredo foi eleito governador de Minas, e a oposição ainda garantiu outros 7 governos estaduais. Os outros 12 ficaram com os governistas do PDS (Rondônia, Roraima e Amapá ainda eram territórios federais).

O segundo teste foi a campanha pelas eleições diretas para presidente, a “Diretas Já!”, em 1984. Todos os partidos menos o PDS se uniram nessa campanha. PMDB, PDT, PT e PTB deram as mãos para exigir que o congresso aprovasse a mudança na lei para que o presidente fosse escolhido pelos eleitores, não pelos parlamentares. O autor da emenda era o deputado Dante de Oliveira, do PMDB matogrossense. Com isso, foi possível ver, no mesmo palanque, Ulisses, Brizola, Fernando Henrique, Montoro, Lula e outros políticos que jamais voltariam a estar juntos.

Na votação, porém, a emenda constitucional foi rejeitada e a eleição do ano seguinte seria feita por via indireta. Articularam-se as candidaturas: só PDS e PMDB (como fora com ARENA e MDB) teriam força para eleger seus candidatos. Mas a direção do PDS aprovou o nome de Maluf, o que gerou um descontentamento generalizado nos setores da direita ideológica, que fundaram uma dissidência: a Frente Liberal. À frente dela estavam Sarney, Marco Maciel, Antônio Carlos Magalhães, Jorge Bornhausen, Agripino Maia e outros conservadores com base política forte em áreas rurais, principalmente no nordeste. Em troca do apoio, Sarney (até semanas antes o líder do partido pró-ditadura) foi indicado a vice na chapa da oposição. Com a soma de votos PMDB + FL e ainda alguns do PDT brizolista, o peemedebista Tancredo Neves foi eleito.

Mas, como se sabe, passou mal na véspera da posse e foi internado. Sarney recebeu a faixa provisoriamente, em seu nome. Uma semana depois, Tancredo morreu. Sarney virou presidente de fato e de direito. Ele, que até pouco tempo antes tinha liderado a base de sustentação da ditadura militar, por uma ironia mais que por arranjo político, lideraria a transição para o governo civil. Seu ministério foi montado com nomes inicialmente escolhidos por Tancredo, com quadros do PMDB e da FL, além de alguns do PDS: Francisco Dornelles na Fazenda, Olavo Setúbal no Itamaraty, Pedro Simon na Agricultura, Aureliano Chaves nas Minas e Energia, ACM nas Comunicações, Marco Maciel na Educação e Renato Archer na Ciência e Tecnologia.

Mais dois partidos com grande expressão ainda surgiriam nos anos 1980, no contexto da Assembléia Constituinte, convocada para redigir uma nova constituição que substituísse a da ditadura. A Frente Liberal também ia adicionar um “P” ao nome para virar PFL, partido dos coronéis e dos conservadores convictos, com Marco Maciel, ACM, Agripino, Bornhausen e Aureliano. E os progressistas de São Paulo (Montoro, Covas, FHC, Sérgio Motta, depois aderidos por José Serra), defensores do modelo europeu de governo (parlamentarismo e social-democracia) fundariam a Social-Democracia Brasileira, que com outro “P” viraria o PSDB (e adotaram a figura do tucano como mascote). O Partido Verde foi fundado em 1986 pelos ex-guerrilheiros Sirkis, Gabeira e Minc (antes militantes do PT; este último voltaria ao partido pouco tempo depois), mas continuaria minúsculo até hoje.

A história recente desses partidos e do que fizeram em seus governos está mais fresca na memória. Sarney fez um governo fracassado na economia e na transição democrática; foi sucedido por um aventureiro – Collor – que, sem base de alianças, levou sua camarilha particular para governar do Planalto e fez o estrago institucional, econômico e ético já conhecido. A situação só foi corrigida por seu vice Itamar Franco, um emedebista histórico que, embora tenha liderado um “governo de união nacional” (em tese, com todos os partidos), privilegiou a composição com PMDB, PSDB e PFL, alavancando a aliança neo-oligárquica que faria os tucanos serem alçados de um partido de expressão regional limitada a São Paulo (Covas-Montoro), Paraná (José Richa) e Ceará (Jereissati) ao status de partido nacional. O PT correu por fora na oposição constante, sempre com Lula como líder, e em poucos anos desbancou o PDT brizolista como força maior da esquerda. O PDS/ARENA mudou de nome mais três vezes (para PPR, PPB e, finalmente, PP) e se manteve com Maluf e Dornelles, além de Espiridião Amin em Santa Catarina. O PTB apoiou Collor e minguou e foi tomado pelo empresário José Carlos Martinez e depois pelo maverick Roberto Jefferson. O PCB foi re-legalizado, mas sequestrado por Roberto Freire, que o transformou radicalmente em partido de “nova direita” sob a legenda PPS. O PCdoB passou a ser partido legal, com forte base no movimento estudantil. O PV não foi nada.

Desde o governo Fernando Henrique (1995-2003), os campos políticos foram muito bem definidos. Os partidos dos políticos que apoiaram a ditadura, que perseguiu, prendeu e matou milhares de brasileiros, censurou jornais, entregou riquezas nacionais nas mãos de empresários amigos ou estrangeiros, acobertou a corrupção endêmica e manteve a miséria como política de Estado, apoiaram o grupo de FHC-Serra, do PSDB, por meio do PFL, PP/ARENA, (ex-)PTB e outros. Os tucanos, que tinham combatido a ditadura, não tiveram vergonha em se aliar às mesmas pessoas que tinham financiado, ordenado ou compactuado com as prisões, torturas e mortes. E, no poder, conduziram finalmente um governo udenista, vendendo a Vale, a CSN, a Telebrás, e preparando o desmonte da Petrobrás – que a UDN nunca quis que existisse. Já a maior parte do campo que combateu de fato a ditadura (ou seja, à parte do MDB “comportadinho”) esteve na oposição, na maior parte do tempo fragmentada (Lula e Brizola se aliaram em 1998 a toda a esquerda, mas foram derrotados por FHC reeleito).

O atual cenário só se definiu de fato em 2002. Para conseguir se eleger presidente, depois de três tentativas derrotadas, Lula aceitou o apoio de setores muito questionáveis. Aproximou-se de nacionalistas de direita e do fenômeno crescente do poder das igrejas neopentecostais, sendo a mais forte delas a Igreja Universal do Reino de Deus, que tomara de assalto o pequeno Partido Liberal (PL, de Alvaro Valle, um ex-membro do PFL e liberal clássico por ideologia). Uma vez eleito, o apoio foi cobrado, é claro, e a composição da base aliada contou ainda com os improváveis votos do PP/ARENA de Maluf/Amin/Dornelles (sim, o mesmo partido de base da ditadura) e do PTB de Martinez/Jefferson (o primeiro morreu num acidente de helicóptero logo depois). Um esquema regular de repasse de dinheiro, a título de dívidas de campanha, foi montado por quadros do PT para remunerar o apoio. Quando acuado num caso menor de corrupção, Jefferson pôs a boca no mundo, e o que se viu foi o “escândalo do mensalão” (muito insuflado pela mídia, é verdade). O PT entrou em convulsão e nasceu a principal dissidência, que jurou fidelidade aos princípios originais do partido metalúrgico: o PSOL, de Heloísa Helena e Plínio de Arruda Sampaio. A IURD saiu do PL (que ficou oco e virou PR) e fundou um novo partido, o PRB, tendo o vice José Alencar como líder-mor (e sem vinculação religiosa).

No entanto, a despeito do choque, o sucesso do primeiro mandato levou à reeleição de Lula em 2006, quando o campo se reajustou. O PMDB entrou de corpo e alma para o governo, tendo Sarney à frente, um relutante Michel Temer na retaguarda e Renan Calheiros a tiracolo. O PP/ARENA foi mantido, com Maluf e Lula evitando menções mútuas para escapar ao constrangimento recíproco. O PDT, sem Brizola (morto em 2004), voltou ao seio da esquerda. E o PTB pós-mensalão se bandeou para o lado tucano, seguido pelo PPS de Freire e o PV de Sirkis-Gabeira. Em 2007, o PFL mudou de nome para “Democratas” (DEM), mas manteve exatamente o mesmo quadro e a mesma ideologia conservadora e oligárquica. Ganhou a adesão do prefeito carioca Cesar Maia, primo de Agripino e ex-brizolista, alçado à prefeitura inicialmente pelo PMDB. Pôs o filho, Rodrigo Maia, como presidente do partido, em substituição ao velho cacique Bornhausen – aquele que disse, em referência ao PT, que era preciso “acabar com essa raça”.

Essa raça, porém, é uma raça heróica, que pegou em armas e não teve medo de morrer para derrotar a ditadura dos generais pagos pelos empresários e fazendeiros, todos assassinos em algum grau. É a raça de Frei Betto, Leonardo Boff, Maria da Conceição, Marilena Chauí, Emir Sader (viúvo de Vera Magalhães), Válter Pomar (filho de Vladimir e neto de Pedro Pomar), dos ex-guerrilheiros José Genoíno, Tarso Genro, Nilmário Miranda, Paulo Vannuchi, Franklin Martins, Carlos Minc, Ricardo Zarattini, de Hildegard Angel (irmã de Stuart e filha de Zuzu Angel), de André Singer (filho de Paul Singer e ex-porta-voz de Lula), de Eduardo Campos (neto de Miguel Arraes), Ciro Gomes (amigo, mas adversário, de Jereissati) e Vladimir Palmeira. Todos combateram a ditadura. Todos estão com Dilma.

O lado oposto, se também puder ser chamado de raça, é uma raça acovardada, cúmplice da tortura e de assassinatos, que saqueou o patrimônio nacional. É a raça de Marco Maciel, Jorge Bornhausen, Agripino Maia, Afif Domingos, Jarbas Negri (da máfia das sanguessugas), da família de Antônio Carlos Magalhães, a latifundiária Kátia Abreu, o duplo-corrupto José Roberto Arruda (painel do senado e mensalão de Brasília), Geraldo Alckmin (cria de Covas), Orestes Quércia, Beto Richa (filho de José Richa), Moreira Franco (cria e genro de Amaral Peixoto), a imprensa dos Mesquita, dos Frias e dos Marinho. Todos estão com José Serra. Todos estiveram com a ditadura.

Há exceções de ambos os lados, é verdade. Gabeira e Sirkis, ex-guerrilheiros, preferiram abraçar Sarney Filho em seu partido e se aliar ao DEM/PFL e ao PPS de Freire, e ainda tiraram a histórica Marina Silva do PT (cuja seção no Acre ela fundara com Chico Mendes e Jorge Viana) para lançá-la como candidatura tira-votos de Dilma. César Benjamin, no PSOL, usou a tribuna da mídia corporativa para denegrir Lula. O “czar da economia” dos militares, Delfim Netto, apóia Lula de primeira hora. Antônio Ermírio de Moraes também. Já Reinaldo Azevedo e Demétrio Magnoli, da trotskista Libelu, se tornaram dois dos mais estridentes detratores anti-esquerdistas. Mas cada uma dessas exceções não altera a essência do projeto político de cada um. Dilma não é mais coronelista por ter apoio de Renan e Sarney, nem Serra é mais revolucionário por ter Gabeira e os ex-trotskistas.

Esse desfile de nomes não é uma aula de história do Brasil. É um mapa dos campos políticos que se enfrentam agora. Um tem pessoas que lutaram pelo Brasil. O outro tem pessoas que operaram contra o Brasil. Essas pessoas, no poder, não vão negar suas biografias. Quem sempre defendeu o Brasil continuará defendendo. Quem sempre prejudicou o Brasil poderá destruí-lo de vez.

O diabo trapaceou Serra: tomou-lhe a alma sem dar nada em troca

Após o insosso debate entre os presidenciáveis que a Rede TV e a Folha de S. Paulo promoveram no último domingo, fiquei com a impressão de que 2006 se repetiria: um grande esforço de última hora da mídia golpista evitando que a candidatura oficial decidisse a parada logo no 1º turno, mas não sendo suficiente para reverter o resultado anunciado.

Como Alckmin daquela vez, Serra não encontrou o mapa da mina. Marina Silva e o PIG lhe proporcionaram uma sobrevida, mas aproveitá-la para decolar são outros quinhentos.

Com carisma zero, não consegue fazer seus castelos nas nuvens valerem mais do que uma realidade palpável: as condições de vida dos pobres e dos muito pobres melhoraram sob o governo atual.

Então, independentemente de posturas ideológicas, o que deixa Serra num beco sem saída são a aprovação e popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A percepção do eleitor despolitizado é de que o Brasil evoluiu, daí ele encarar a tempestade de som e fúria dos demotucanos como tentativas de encontrarem pêlo num ovo que está dando certo. Portanto, significando nada.

Trata-se de uma sinuca de bico: não há factóide, propaganda enganosa e alarmismo que façam os eleitores  pés no chão mudarem seu voto.

O desejo da Veja, erigido em matéria de capa (!), é o de que a eleição fosse decidida em Minas Gerais, com Aécio Neves como fiel da balança. Dia 31 a revista aprenderá que jornalismo é algo mais do que expressão de desejos.

Uma mudança surpreendente do quadro só seria possível se Serra fosse um personagem eletrizante; mas, seu estilo é de quem está sempre explicando o óbvio a estudantes burrinhos. Não empolga ninguém.

Ora parece um mestre-escola alongando-se em repetições desnecessárias para martelar as lições na cabeça dos alunos, ora um guarda-livros a detalhar uma contabilidade que ele considera interessante e os demais, nem um pouco. Enfim, um chato de galochas, como se dizia antigamente.

O aborto (a palavra aqui cai muito bem…) da hipotética virada já começa a se evidenciar nas pesquisas eleitorais: a última do Data Folha mostrara um quadro estático e a nova do Vox Populi flagra subida de Dilma.

Pior que a derrota será a decepção causada por Serra àqueles que ainda acreditavam nele.

Aceitar o apoio e beneficiar-se da baixaria das correntes virtuais ultradireitistas, fazer promessas demagógicas como a do salário mínimo de R$ 600 e colocar uma questão religiosa no centro da campanha o deixou com a imagem de quem pisa até no pescoço da mão para chegar à Presidência.

O último a projetar tal imagem acabou morrendo na praia. E, convenhamos, fazia bem mais por merecer o ambicionado troféu.

Mártir da independência ou herói revolucionário?

“Brecht cantou: ‘Feliz
é o povo que não tem
heróis’. Concordo.
Porém nós não
somos um povo feliz.
Por isso precisamos
de heróis. Precisamos
de Tiradentes.”
(Augusto Boal )
Será que os brasileiros sentem mesmo necessidade de heróis, salvo como temas dos intermináveis e intragáveis sambas-enredo? É discutível.
Os heróis são a personificação das virtudes de um povo que alcançou ou está buscando sua afirmação. Encarnam a vontade nacional.

Já os brasileiros, parafraseando o que Marx disse sobre camponeses, constituem tanto um povo quanto as batatas reunidas num saco constituem um saco de batatas…

O traço mais característico da nossa formação é a subserviência face aos poderosos de plantão. Os episódios de resistência à tirania foram isolados e trágicos, já que nunca obtiveram adesões numericamente expressivas.

Demoramos mais de três séculos para nos livrarmos do jugo de uma nação minúscula, como um Gulliver imobilizado por um único liliputiano.

E o fizemos da forma mais vexatória, recorrendo ao príncipe estrangeiro para que tirasse as castanhas do fogo em nosso lugar e à nação economicamente mais poderosa da época para nos proteger de reações dos antigos colonizadores.

Isto depois de assistirmos impassíveis à execução e esquartejamento de nosso maior libertário.

Da mesma forma, o fim da escravidão só se deu por graça palaciana e quando se tornara economicamente desvantajosa.

Antes, os valorosos guerreiros de Palmares haviam sucumbido à guerra de extermínio movida pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, que merecidamente passou à História como um dos maiores assassinos do Brasil.

E foi também pela porta dos fundos que nosso país entrou na era republicana e saiu das duas ditaduras do século passado (a de Vargas terminou por pressões estadunidenses e a dos militares, por esgotamento do modelo político-econômico).

Todas as grandes mudanças positivas acabaram se processando via pactos firmados no seio das elites, com a população excluída ou reduzida ao papel de coadjuvante que aplaude.

É verdade que houve fugazes despertares da cidadania:

  • em 1961, quando a resistência encabeçada por Leonel Brizola conseguiu frustrar o golpe de estado tentado pelas mesmas forças que seriam bem-sucedidas três anos mais tarde;
  • em 1984, com a inesquecível campanha das diretas-já, infelizmente desmobilizada depois da rejeição da Emenda Dante de Oliveira, com o poder de decisão voltando para os gabinetes e colégios eleitorais; e
  • em 1992, quando os caras-pintadas foram à luta para forçar o afastamento do presidente Fernando Collor.
Nessas três ocasiões, a vontade das ruas alterou momentaneamente o rumo dos acontecimentos, mas os poderosos realizaram manobras hábeis para retomar o controle da situação. Rupturas abertas, entre nós, só vingaram as negativas.

Vai daí que, em vez de heróis altaneiros, os infantilizados brasileiros são carentes mesmo é de figuras protetoras, dos coronéis nordestinos aos padins Ciços da vida, passando por pais dos pobres tipo Getúlio Vargas.

Então, Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Frei Caneca, Carlos Marighella, Carlos Lamarca e outros dessa estirpe jamais serão unanimidade nacional, como Giuseppe Garibaldi na Itália ou Simon Bolívar para os hermanos sul-americanos.

O 21 de abril é um dos menos festejados de nossos feriados. E o próprio conteúdo revolucionário de Tiradentes é escamoteado pela História Oficial, que o apresenta mais como um Cristo (começando pelas imagens falseadas de sua execução, já que não estava barbudo e cabeludo ao marchar para o cadafalso) do que como transformador da realidade.

Então, vale mais uma citação do artigo que Boal escreveu quando do lançamento da antológica peça Arena Conta Tiradentes, em 1967:

“Tiradentes foi revolucionário no seu momento como o seria em outros momentos, inclusive no nosso. Pretendia, ainda que romanticamente, a derrubada de um regime de opressão e desejava substitui-lo por outro, mais capaz de promover a felicidade do seu povo. (…) No entanto, este comportamento essencial ao herói é esbatido e, em seu lugar, prioritariamente, surge o sofrimento na forca, a aceitação da culpa, a singeleza com que beijava o crucifixo na caminhada pelas ruas com baraço e pregação (…) O mito está mistificado”.

Quando o povo brasileiro estiver suficientemente amadurecido para tomar em mãos seu destino, decerto encontrará no revolucionário Tiradentes uma das maiores inspirações.


Obs.
Este é o artigo principal da série ESPECIAL TIRADENTES, cujas demais retrancas estão disponíveis no meu blogue: POR QUE TIRADENTES? / O TEATRO E A VIDA / SE EXISTISSEM MAIS BRASILEIROS COMO EU… / CANCIONEIRO DA LIBERDADE

Bomba! Segundo ex-diretor do Dops, o cabo Anselmo já era agente duplo em 64

Mal o cabo Anselmo acabava de finalmente mostrar a cara num longo Canal Livre da rede Bandeirantes, o bumerangue a atingiu em cheio: a Folha de S. Paulo divulga na edição desta segunda-feira (31) que Cecil Borer, diretor do Dops carioca à época da quartelada de 1964, revelou que o tinha então a seu serviço.
O jornal afirma dispor da gravação de tal entrevista, na qual Borer (1913-2003) relata a colaboração de Anselmo não apenas com o Deops, mas também com o Cenimar e a CIA.

Conforme venho esclarecendo desde que foi noticiada a pretensão de José Anselmo dos Santos a uma reparação federal (ver aqui, aqui e aqui), as regras da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça a obrigam a concordar com o pedido se ficar estabelecido que o ex-marinheiro (o apelido de cabo era equivocado) foi mesmo um militante de esquerda até 1971 e só trocou de lado em tal ano, passando a facilitar a prisão e/ou morte dos companheiros.

A única situação em que a Comissão de Anistia pode recusar o pedido de Anselmo, eu sempre disse, é a de que Anselmo já fosse agente duplo em 1964. Havia vários indícios neste sentido, mas nenhuma prova cabal.

A entrevista da Folha pode ser a evidência sonhada pelos que tentam evitar a concessão, a um auxiliar dos carrascos, de um benefício criado para suas vítimas.

A gravação, mais os inúmeros episódios flagrantemente suspeitos da vida de Anselmo, já serão suficientes para provocar muita discussão quando o colegiado for apreciar este processo. A decisão, em tais circunstâncias, seria impossível de se prever.

E se aparecer mais um – um só! – elemento de prova com o mesmo peso das palavras do ex-diretor do Dops, arrisco o prognóstico de que o pedido de Anselmo será unanimemente recusado.

Talvez seja a isto que o ministro da Justiça Tarso Genro estivesse aludindo há algumas semanas, quando aventou a possibilidade de que Anselmo já atuasse como “agente infiltrado dos golpistas” em 1964. Afinal, deu uma declaração enfática demais para quem não tivesse curinga na manga:

“Não cabe a aplicação da Lei da Anistia a pessoas que deliberadamente atuaram como agente do Estado, seja para desestabilizar um regime legal, como era o governo João Goulart, seja depois, numa estrutura paralela”.

Então, é bom o Anselmo ir desde já considerando a hipótese de seguir o conselho que Genro então lhe endereçou, de entrar com ação ordinária contra a União, requerendo indenização por haver atuado na repressão política sem reconhecimento do Estado “pela prestação desse regime”.

Pois, no próprio ato de recusar-lhe a reparação, a Comissão de Anistia estará reconhecendo sua condição de agente dos serviços de informação do Estado durante décadas. Nada mais justo do que ele ser indenizado por todos esses anos em que trabalhou sem registro em carteira. E sua profissão correta poderá até constar da nova documentação que requereu…

ANTES ELOGIAVA FLEURY. AGORA
DIZ QUE ELE O AMEAÇOU DE MORTE

De resto, a minha impressão é de que sua aparição na TV deve ter causado ao telespectador comum o mesmo asco que provocou em nós, conhecedores dos fatos esmiuçados no Canal Livre de 30/08/2009.

Tentando conciliar as mentiras atuais com as que contou aos jornalistas-escritores Octávio Ribeiro (Pena Branca) em 1984 e a Percival de Souza em 1999, Anselmo enredou-se em inúmeras contradições e não foi crível ao afirmar que a repressão lhe prometera poupar Soledad Barret Viedma, a militante uruguaia cuja morte propiciou a despeito de estar gerando uma criança dele.

Anselmo anteriormente afirmou ter apenas apelado à repressão para que a poupasse. Ao contar o conto de novo, aumentou um ponto. Só que a cascata pegou mal, já que as bestas-feras da ditadura não eram dadas a fazer promessas desse tipo. Então, ele perdeu outro tanto de credibilidade, se é que ainda tinha alguma.

Foi penoso acompanharmos as fanfarronices e as justificativas tortuosas de Anselmo ao longo de aproximadamente hora e meia de programa.

De um lado, repetiu os mais surrados clichês da propaganda anticomunista. E soaram extremamente inverossímeis suas declarações de que traiu os movimentos de resistência para evitar uma guerra civil, embora noutros momentos admitisse o despreparo e a inferioridade de força dos grupos guerrilheiros face à ditadura.

De outro, tentou angariar alguma simpatia para sua cruzada atual ao falar sobre torturas e coações que teria sofrido. Só que levou um xeque-mate quando disse ter sido ameaçado de morte pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury e lhe foram atirados na cara os elogios rasgados que fez outrora ao sinistro personagem.

ANSELMO FOI PRESO POR ENGANO
EM 64. DEPOIS, ENCENARAM SUA FUGA

Quanto á notícia da Folha, Ação de Anselmo é pré-64, diz policial (assinantes do jornal ou do UOL podem acessar aqui), causa estranheza a entrevista do ex-diretor do Dops só estar sendo divulgada hoje, oito anos depois de concedida e seis anos depois da morte de quem a concedeu. A grande imprensa tem razões que a própria razão desconhece.

Eis os principais trechos:

“Diretor do Dops carioca à época do golpe de Estado de 1964, o policial Cecil Borer (1913-2003) afirmou dois anos antes de morrer que o marinheiro de primeira classe José Anselmo dos Santos, mais célebre agente duplo a serviço da ditadura militar, já era informante da Marinha e da polícia política antes da deposição do presidente João Goulart.

“As entrevistas de Borer ao repórter da Folha foram concedidas em 2001 na apuração para um livro e uma reportagem. Ele autorizou a gravação.

“O policial, denunciado como torturador de presos durante três décadas, teve atuação destacada nas prisões após o golpe de 1964. Aposentou-se em 65.

“Ao ser entrevistado pela Folha, ele tinha 87 anos. Narrou ‘pressões’ físicas contra presos, negou a condição de torturador e falou de agentes infiltrados na esquerda.

“No começo de 1964, Anselmo presidia a AMFNB (Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil). Borer contou que ele já era informante do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) da Guanabara, do Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e dos “americanos” – a CIA (Agência Central de Inteligência).

“Foi categórico: ‘[Antes de abril de 1964, Anselmo] trabalhava, trabalhava’. Para quem? ‘Para todo mundo.’ Detalhou: ‘Ele trabalhava para a Marinha, ele trabalhava para mim, trabalhava para americano’. Não esclareceu a data em que o militar teria aderido.

“Conforme Borer, Anselmo não foi um infiltrado escalado para se misturar aos marinheiros. O ex-diretor disse que ele foi recrutado pelo Cenimar quando já atuava na associação.

“O policial afirmou que as informações transmitidas por Anselmo eram compartilhadas por Cenimar e Dops com classificação ‘A’, exclusiva de fonte de alta confiança. Os organismos tratavam-no por nome em código. ‘Não havia segredo entre Dops e Marinha. (…) Esse trabalho, essa informação veio do Anselmo, então é classe A’.

“Dias após a queda de Goulart, Anselmo se asilou na Embaixada do México no Rio. Em pouco tempo abandonou o local e se abrigou em um apartamento na zona sul. No dia seguinte, foi detido e levado para o Dops.

“Ele disse que o esconderijo foi identificado por agentes seus infiltrados entre exilados no Uruguai. Informaram o endereço a um policial que ignorava a dupla militância de Anselmo, que acabou preso.

“Sua condição de informante, diz Borer, era de conhecimento restrito, mesmo no Dops e no Cenimar: ‘Então Anselmo veio, tá preso, você não vai soltar, que não vai queimar’.

“Anselmo retomou a liberdade somente em 1966, quando Borer já estava aposentado, ao ir embora de uma delegacia no bairro do Alto da Boa Vista onde estava preso. Lá, ele circulava quase sem restrições.

“A fuga foi uma farsa, disse Borer. O objetivo do que descreve como encenação de colegas seus foi infiltrar o agente na esquerda clandestina. Anselmo foi para o Uruguai, onde entrou no MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), grupo dirigido por Leonel Brizola.

“A seguir, treinou guerrilha em Cuba. De volta ao Brasil, aderiu à VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), organização armada depois dizimada por suas delações.

“Em entrevista ao repórter Octávio Ribeiro, em 1984, Anselmo disse que se entregou por iniciativa própria ao Deops por volta de 1971 e nunca foi torturado. Em 1999, assegurou ao repórter Percival de Souza que foi surpreendido e preso pelo Deops e que o torturaram antes da mudança de lado.”