Arquivo da tag: Battisti

Vida, Façanhas e Milagres de Ignazio La Russa


Se você não sabe quem é Ignazio La Russa, não se envergonhe.  Ele só ficou conhecido fora da Itália por sua perseguição contra o escritor italiano Cesare Battisti, montando um circo que incluiu cenas tais como se acorrentar às grades da Embaixada Brasileira em Roma, e de proferir enfaticamente a frase: “Sei que não é possível, mas eu adoraria torturar Battisti”. Não sabemos se ele disse que “não é possível” porque Battisti está longe, ou porque pegaria mal que o ministro de defesa da Itália torturasse um prisioneiro. Não é, sem dúvida, por medo da lei, porque a Itália não possui uma legislação que considere que a tortura é crime. É o único país da UE nestas condições. Nem a Turquia, autora do genocídio da Armênia e aplicadora de tratos prisionais brutais, admite a tortura do ponto de vista legal.

Fundador da Juventude Neofascista

Ignazio Benito Maria La Russa nasceu em julho de 1947, em Paternò, uma cidade de 50 mil habitantes (em 2009) da Província de Catania, na região da Sicilia. Seu pai foi o influente senador Antonino La Russa, membro do Movimento Social Italiano (MSI), uma agrupação fascista fundada em 1946 pelos grandes amigos de Mussolini (Giorgio Almirante, Pino Romualdi e Manlio Sargenti) e pelo antigo voluntário do falangismo na Guerra Civil Espanhola, Arturo Michelini.

A criação do MSI foi permitida porque os aliados Ocidentais que libertaram a Itália, não empreenderam uma tarefa de neutralização do fascismo, como foi feita, pelo menos parcialmente, no caso do nazismo. Os Estados Unidos, conscientes de que a experiência dos fascistas seria importante para sua implantação da Operação Gládio (uma operação sistemática de terrorismo de estado destinada a aniquilar a esquerda em todos seus estilos) limitaram-se a proibir ações fascistas deste tipo: tentar restaurar a ditadura explícita no estilo de Mussolini, ameaçar outros países da Europa Ocidental, mostrar falta de cooperação com NATO, e fazer propaganda ostensiva do nazismo alemão (o que poderia irritar os países vítimas do Holocausto). Entretanto, um partido com os mesmos princípios que o Partito Nazionale Fascista seria permitido, desde que respeitasse essas limitações. Inclusive, a propaganda do Fascio (mas não do Terceiro Reich) foi permitida. O MSI convocava atos em locais públicos e especialmente em Igrejas, onde se desfraldavam bandeiras com a águia fascista e a cruz céltica, e se fazia a saudação romana. No entanto, quando os encontros eram mais solenes, como alguns enterros, e a visibilidade menor, também se exibiam algumas suásticas.

O MSI foi exatamente isso: o antigo partido fascista sem pretensões de domínio na Europa. O MSI aliou-se em 1994 com outro partido neofascista, a Destra Nazionale, e finalmente se dissolveu em 1995, após 49 anos de sucessos, deixando passo a uma nova e mais eficiente direita neofascista: Alleanza Nazionale. Ignazio, que na época tinha já grande experiência parlamentar como representante de diversas coalizões fascistas, foi um dos fundadores.

Duas décadas antes, em 1972, La Russa fez parte do grupo que criou o Frente da Juventude, o braço juvenil do MSI, que era tanto um grupo político para que os calouros do fascismo fizessem suas primeiras experiências, como uma esquadra de choque para atacar esquerdistas ou simpatizantes, tanto individualmente, nas ruas e passeatas, como massivamente, em seus locais, atos e encontros.

Nesse mesmo ano, Marco Bellocchio rodou um filme sobre o jornalismo fascista na Itália, chamado Esmaga o Monstro na Primeira Página. A abertura inclui segmentos de um documentário real, onde aparece um comício em Milão da organização anticomunista de extrema direita Maioria Silenciosa. O orador daquele comício é o futuro ministro Ignazio La Russa, que na época estava com 24 ou 25 anos.

Mas, foi em abril de 1973, quando o Frente da Juventude teve sua mais árdua tarefa. Participar de uma passeata do MSI, no dia 12, quando todos os fascistas de Milão se juntariam para fazer uma megaprovocação, da qual culpariam os comunistas.

O fato é antecedido por um frustrado ataque fascista 5 dias antes. Nico Giuseppe Azzi (1951-2007) tentou fazer explodir o trem do circuito Turim-Roma com uma expressiva carga de TNT. Primeiro, passou por vários vagões do comboio, mostrando ostensivamente exemplares da revista do movimento de esquerda independente Luta Contínua, chamando a atenção de vários passageiros. Quando quase todos tinham visto aquele jovem alardeando de sua ideologia, Nico se fechou no banheiro para preparar a detonação da carga de TNT. Para sorte dos passageiros e desgraça sua, o detonante (um pequeno explosivo que deflagra a explosão maior) explodiu em sua mão. Mesmo de baixo impacto, o estouro deixou em seu corpo várias feridas.

Apesar da falha no atentado, o projeto fascista seguia os passos habituais. Aquele grande atentado de Piazza Fontana, também em Milão, tinha sido atribuído aos anarquistas em 1969. Este falho ataque de 1973 seria atribuído a Luta Contínua, já que os passageiros tinham visto aqueles jornais e ninguém reconheceria Nico como fascista, já que ele era um total desconhecido. Tampouco existia o risco de ser denunciado, porque polícia e justiça eram coniventes. Então, o ato de 12 de abril, mostraria a decisão dos fascistas de salvar seu país e as tradições nacionalistas e católicas, e repudiar os comunistas e outros esquerdistas.

Todos os grupos em ação, e especialmente o Frente da Juventude, dirigido na região norte por La Russa, protestavam contra a “violência marxista”. O prefeito de Milão proibiu todas as passeatas (de esquerda e de direita) para evitar o confronto, sob as protestas dos dirigentes fascistas, entre os quais estava o Ignazio.  Apesar do veto, os fascistas lançaram a primeira bomba, ferindo um agente e um transeunte. Logo, nova explosão matou o agente Antonio Marino. Além disso, destruíram, entre outros edifícios, a Casa do Estudante e uma Escola, ambas dirigidas por grupos de esquerda. (Vide)

Este fato tem continuação histórica com outro, ocorrido 34 anos depois. Nico Azzi sobreviveu a suas feridas, porém morreu de um ataque ao coração em 2007, sendo velado na linda igreja de Santo Ambrogio, em Milão. O fúnebre ritual teve muitos assistentes, entre os quais destacavam os skin heads, que escoltavam o caixão portando bandeiras fascistas, e o feixe (fascio) típico do movimento, do qual deriva justamente seu nome. Mas, convidados de honra mesmo foram o ministro Ignazio La Russa, junto com seu irmão Romano, que é parlamentar Europeu. Por sinal, este é um assunto para ser pensado pelos que acreditam que a União Europeia é um paraíso de democracia e justiça. Contudo, para sermos sinceros, devemos reconhecer que os fascistas no Parlamento Europeu não passam de 20%, se tanto. (Vide)

Os “Fratelli” do Signore Ministro

Falando em terroristas de grande porte, o ministro tem amigos que não são boas companhias. Um deles, camarada desde a juventude, é Giancarlo Rognoni, envolvido no primeiro grande superatentado, no Banco Agrícola de Milão, em Piazza Fontana (marcando, em 1969, a abertura dos atos ultraterroristas). Giancarlo foi condenado em primeira instância, mas absolvido por tribunais superiores, cheios de juízes fascistas. La Russa esteve, segundo muitas versões, entre os que ajudaram ele a livrar a cara.

Ora, quem afirma isto? Os membros da esquerda alternativa, subversivos e violentos? Não. Os antigos comunistas, moderados e conciliadores, porém “envenenados” pelo espírito marxista? Também não. Aliás, eles denunciam esta amizade, sim, mas não apenas eles. O principal denunciante é nada menos que Vincenzo Vinciguerra, um célebre superterrorista e o único fascista que cumpre prisão. Se ficasse alguma dúvida, veja uma matéria escrita em vivo e a cores pelo mesmo Vincenzo (em espanhol), intitulada Os Reincidentes. (Vide)

Alguns pensam que Vinciguerra está resentido porque é o único que está preso, mas esta conjetura pode beirar o preconceito. Os fascistas têm convicções violentas e desumanas, mas muitos deles realmente acreditam em seus nocivos princípios. Vinciguerra demonstrou várias vezes ser um fascista honesto, ou seja, alguém que não quer tirar vantagem, mas que se orgulha de sua ideologia de ódio, e é capaz de sacrificar-se por ela. Talvez seja por isso que não foi liberado. Ele não tentou colocar a culpa na esquerda, orgulhou-se de seus crimes, e declarou que não queria ser utilizado pelos oportunistas que colaboram com os Estados Unidos. Isso não o torna, obviamente, melhor que os outros!

O Jogo das Cruzes

Todo mundo sabe que os nazistas tornaram tristemente célebre a cruz suástica, um símbolo indostânico que não representava nada de ruim, muito pelo contrário. Em sânscrito, a palavra deriva de su e asti, que juntos significam algo como “amuleto da sorte”, horrível contraste com a imagem dos 20 milhões de vítimas do nazismo.

O atual uso da Cruz Malta já está mais próximo de seu significado inicial, pois sempre esteve associado com intolerância, crueldade e barbárie. Deriva das cruzes dos Cruzados, que a sua vez a tomaram de outros cavalheiros cristãos, e foi usada pelos fascistas de todo o mundo, mas também pelos exércitos não fascistas nas condecorações militares.

O Ministro La Russa é também chegado a uma cruz. Um exemplo é sua defesa da presença de crucifixos nos locais públicos da Itália, recentemente condenada pela Corte Europeia de Direitos Humanos.

[NOTA: Sobre a exposição de símbolos religiosos pode existir, algumas vezes, uma tênue divergência até dentro das grandes OGNS de DH. Por exemplo, o pesquisador de Anistia Internacional para assuntos islâmicos se pronunciou contra a proibição de burca na França. Nossas coincidências são absolutas em assuntos básicos, como tortura, genocídio, racismo, pena de morte, aborto, escolha sexual, etc., mas pode divergir em pontos menores. Faço questão de salientar que minha posição neste escrito é puramente pessoal.]

Em novembro de 2009, a Corte Europeia de DH instou a Itália a tirar os crucifixos das escolas públicas. Estes crucifixos não são simples cruzes, que podem ter um significado cultural e estético, mas são réplicas de cruz católica, com a figura de Cristo submetido à tortura da morte lenta. É bom salientar que a maioria das grandes correntes cristãs repudia a representação completa da morte de Jesus, considerando-a uma idolatria e um espetáculo constrangedor. A Corte alegou que essa proclama pública de tendência religiosa num país teoricamente secular violava o direito de consciência para as crianças que não eram católicas.

Como era natural, a medida provocou a histeria de padres, bispos e carolas de todo gênero e idade, que se referiram ao juiz de Estrasburgo como “porco muçulmano”. Por sinal, esta reação dificulta entender como os católicos reclamam “tolerância religiosa”.

Nos representantes da Igreja era natural esperar esse tipo de atitude, mas não num representante de um poder público, como o Ministro La Russa. Afinal, apesar da cultura fascista, mafiosa e teocrática que infesta Itália, esta teve também o maior movimento humanista e uma das maiores esquerdas do planeta. La Russa não tratou de “porcos” aos juízes; apenas lhes desejou a morte. Esqueceu dizer, se a morte devia ser na santa paz do Senhor. Literalmente:

Todas as cruzes ficarão penduradas, e os opositores da cruz que morram. Podem morrer, podem morrer, eles junto com esses órgãos internacionais mentirosos, que não valem nada!” [Grifo meu] (Vide e também).

Uma reflexão para os inimigos do direito de asilo. Dizem que a União Européia apoia Itália no caso Battisti. Será que as relações entre ambas são tão boas como para isso?

Os “Heróis” do Fascismo

Um ano antes da defesa do crucifixo, La Russa tinha manifestado sua vocação pelo fascismo e pelo obscurantismo de maneira ainda mais categórica. Fechamos nosso artigo com este último feito de nosso ministro.

Em setembro de 2008, num ato público em que estava o presidente Napolitano, ex-comunista e membro da Resistência antifascista durante a Segunda Guerra, La Russa defendeu os soldados fascistas que tentaram impedir a entrada das forças canadenses, americanas e britânicas, que, quaisquer que fossem seus interesses últimos, naquele momento estavam libertando o povo italiano da ditadura de Mussolini. La Russa disse que:

“[Os militares fascistas] combateram acreditando na defesa da pátria, opondo-se aos anglo-americanos e merecendo respeito”. (Vide isto1, isto2 e isto2)

Além de enaltecer o fascismo, o ministro esqueceu que grande parte da população italiana, incluindo um grupo de católicos alternativos, também apoiou a libertação do país. Aliás, percebo uma falta de gratidão. O que teriam feito todos os terroristas de estado nos anos 60, 70, 80, etc., sem o apoio dos americanos?

Bom, esta é uma breve saga, muito resumida do homem que se perfila como o maior inimigo de Cesare Battisti.

Caso Battisti: O Show Deve Parar

O Senador José Nery e outros com Cesare Battisti (nov. 2009)



Hoje percebi, através de uma matéria de Celso Lungaretti, que o escritor italiano Cesare Battisti está desde há 41 meses na prisão. O fato de ter um preso político num país democrático é uma grave anormalidade, muito mais ainda quando é alguém que o único “delito” que cometeu no Brasil foi o de usar um passaporte irregular, algo que quase todo refugiado faz. Não se precisa ter doutorado em Direito Internacional, para entender que se alguém está sendo procurado para cumprir pena de prisão ou, ainda pior, para ser morto, seu governo não lhe vai oferecer graciosamente um passaporte legítimo. Aliás, a Convenção de Genebra e documentos adicionais confirmam essa argumentação.

Como muito bem foi observado pelo ex ministro da justiça Tarso Genro, numa entrevista concedida ontem ao site Sul 21, o caso Battisti foi “uma questão que foi ideologizada de má fé pela grande mídia. Então é natural que as pessoas fiquem confusas sobre o assunto.”

Se realmente a posse de um passaporte irregular é um crime, eu me pergunto por que eu e outros milhares de pessoas que chegamos ao Brasil como refugiados, usando passaportes vencidos ou irregulares, nunca fomos punidos, na época da ditadura? Reconheço, sem dúvida, a cumplicidade do establishment no sequestro de vários refugiados do Cone Sul por gangues da Operação Condor, mas o governo federal (ou seja, a ditadura) não deu nenhum passo para punir formalmente os que carecíamos de documentos. (Eu estive desde 1976 até 1979 sem poder obter um passaporte válido, e só nessa época consegui um salvo-conduto dado pela ONU, apesar do qual pude trabalhar na Universidade de Campinas).

No caso de Cesare Battisti, porém, houve um ódio desaforado, regado pela “generosidade” da máfia italiana, junto com a falta de decisão de um setor do poder público. Mesmo, assim em novembro de 2009, o Supremo Tribunal Federal aprovou por 5 a 4 o direito do presidente de decidir sobre a extradição ou, falando mais propriamente, ratificou um direito que já existia e que a cúpula do Tribunal se empenhou em esquecer. Ora, desde essa data transcorreram já mais de 8 meses, e há pelo menos dois meses que o acórdão foi publicado no Diário Oficial da União. Por que, então, Battisti continua presso?

De vez em quando, em função de acontecimentos colaterais, o presidente do Brasil se manifesta sobre o caso, como o fez no final de junho durante a visita do premier italiano Sílvio Berlusconi. Nessa oportunidade, o chefe de estado disse que: (a) se pronunciaria apenas com base nos autos e com o parecer da AGU, como já tinha prometido em Novembro de 2009, na Bahia; e (b) sua decisão não tinha nada a ver com o processo eleitoral.

(Por sinal, segundo alguns italianos exilados na Europa que mantém contato com deputados da Rifondazione Comunista, Berlusconi não parece especialmente interessado na extradição de Cesare.)

É compreensível que o presidente queira ter base judicial para se pronunciar, para evitar o ataque dos bacharéis, advogados da porta de cadeia, inquisidores resuscitados e a imprensa marrom (que é quase toda). Não podemos esperar nenhuma mínima sensibilidade humana dos que duvidam se devem aprovar ou não as pesquisas biológicas de alta relevância médica, ou impedem a uma mulher em risco de morte salvar-se através de um aborto.

A partir de outros discursos do presidente e até de declarações explícitas, se deduz que ele é consciente de que o judiciário tem um poder desconhecido num país ocidental moderno. Eles estão protegidos pela Bula do Papa Urbano IV (não muito nova; é de 1262), onde diz que “governadores e chefes de estado devem estar totalmente submetidos ao poder do Santo Ofício”.

Todavia, o poder do presidente de decidir em assuntos de extradição é garantido pela Constituição, pelas leis e pelo direito internacional em Ocidente. O que a Constituição Brasileira e a de outros países encomenda às Cortes Supremas é processar e julgar a extradição, e não executá-la. A diferença entre poder executivo e judiciário parece que não é bem entendida neste caso, apesar de ser matéria da 7ª serie do ensino básico.

O que poderia ser a única exceção nos países democráticos são os chamados juízes de imigração dos Estados Unidos, mas suas decisões não podem obrigar o Immigration Board (que é um órgão executivo) a extraditar ninguém, embora este acate, rotineiramente, seus pareceres.

Mesmo que isto fosse uma exceção, pensemos que em mais de 40 países de Europa e das Américas, a decisão de recusar a extradição é um direito do poder executivo, embora ele não tenha direito a extraditar, se for proibido pela justiça.

Ora, admitindo que o presidente precise do parecer a Advocacia Geral da União para sentir-se mais amparado, eu me perguntaria: Por que demora tanto esse parecer? Será que encontrar um motivo para negar a extradição no Tratado Brasil-Itália toma sete meses, sendo que esse documento oferece pelo menos quatro motivos que seriam óbvios para um bom vestibulando de uma faculdade de direito.

Eu falei várias vezes deste problema com vários senadores e deputados progressistas, cujo esforço no caso de Cesare é extremamente louvável, e em cuja sinceridade tenho a fé mais absoluta. Alguns deles disseram que confiavam no presidente e que seria necessário esperar o “momento certo”, mas acredito que eles pareciam tão perplexos como eu sobre qual seria o momento certo para o Presidente Lula. Por outro lado, pessoas mais ligadas ao executivo, inclusive de máximo contato com o chefe de estado, reiteram essa preocupação do presidente por encontrar a oportunidade adequada.

Entretanto, é necessário ter em conta que o Brasil violou gravemente os convênios internacionais ao manter preso alguém que era legitimamente refugiado. Embora as manobras obscuras dos “caporegimes” do STF, anularam o refúgio de Battisti de maneira ilegítima, deve reconhecer-se que formalmente ele perdeu sua condição de asilado no dia 9 de setembro. Então, até essa data, sua prisão foi flagrantemente ilegal de acordo com todos os parâmetros, e só foi possível pela subserviência da justiça ao estado italiano.

Eu faço um apelo aos colegas do círculo de apoio a Cesare Battisti (especialmente aos que, por sua condição de representantes do povo possuem mais fé publica que os que somos simples cidadãos) que consideremos novos meios de ação. Se realmente acreditamos na democracia, não podemos nos abster apenas por medo a retaliações.

As Declarações da Candidata sobre o Caso Battisti


Carlos Alberto Lungarzo

Anistia Internacional (USA) – 2152711

Na edição desta 4ª feira (24), o jornal O Estado de S. Paulo repercutiu com destaque uma entrevista radiofônica concedida pela candidata presidencial Dilma Rousseff, sobre a decisão de extraditar ou não o escritor italiano Cesare Battisti. Vide retranca 1, retranca 2 e retranca 3 .

Segundo o jornal, ela “evitou hoje qualquer tipo de confronto com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e com os defensores da permanência no Brasil do ex-ativista de esquerda Cesare Battisti” (…), limitando-se a dizer que “se eleita presidente e se tiver de tomar a decisão sobre extraditar ou não Battisti, cumprirá a decisão do Supremo Tribunal Federal”.

O jornal ainda afirma que “Dilma foi tão ambígua quanto a decisão de STF”. Esta afirmação contém um erro de redator, talvez porque ele queria usar uma forma retórica e não teve uma boa ideia. Com efeito…

… é verdade que Dilma foi, de fato, muito ambígua; aí ele está certo.

Mas o STF não foi nada ambíguo, e aí o redator se engana. Na última rodada do processo, em dezembro, o tribunal aprovou, por 5 contra 4, que o presidente não está vinculado ao parecer do STF autorizando (mas não determinando) a extradição, desde que se mantenha compatível com o tratado existente entre o Brasil e a Itália.

Isto não é nada ambíguo, é claríssimo. Se alguém duvida de que 5 é maior que 4, por favor, pergunte a seu filho ou sobrinho de quatro anos…

Quando o ministro Cézar Peluso disse que a decisão era confusa e não sabia como redigi-la (coitado, quanto problema!), estava criando um clima de animosidade e tentando convencer a opinião pública de que Lula não tinha recebido do STF pleno direito de decisão, desde que compatível com o tratado.

Uma prova mais que evidente desta manobra é esta: apesar de ter “ameaçado” que a redação poderia durar muuuuuito tempo, o acórdão acabou saindo quatro meses depois, o que está mais ou menos na média da Justiça brasileira.

Ou seja, a proclamação do resultado do STF era bem clara e Peluso não precisou se angustiar tanto como pensava. Todo mundo entendeu muito bem o que tinha dito Eros Grau.

O sempre brilhante Marco Aurélio de Mello fez uma ironia forte: disse que era necessário fazer um simpósio para discutir como se proclamam os resultados. Ele já tinha dito que essa reunião de dezembro era uma manobra da Itália para “virar a mesa”

Não sei, nem acho relevante saber por que a rádio Band AM de Campinas insistiu neste assunto, sobre o qual a candidata Dilma disse algo exatamente igual há várias semanas, nem por que o Estadão dá tanta relevância a esta banalidade.

Seja qual for o motivo, quero tranquilizar os milhares de amigos de Cesare. Digo “tranquilizar”, porque cá na América Latina justiça e política são misturadas e dominadas por interesses de nível moral nada elogiável.

É natural, então, que a gente não possa confiar nem na própria sombra.

A declaração da candidata

Não sou analista político, e não posso me imaginar em qualquer função da política oficial do establishment. Mas, como o assunto é muito óbvio, vou fazer um esforço e imaginar-me no papel de consultor da candidata para política interna.

Eu diria para ela:

“Dilma, você não fale nada sobre Battisti. Lembre que seu concorrente já se manifestou a favor da extradição. Se você dizer que não extraditará, ele dirá: ‘tão vendo? Eles são malandros defensores de criminosos…

“Se alguém lhe perguntar (o que, com certeza, acontecerá), você diga que não sabe qual será a decisão de Lula, mas que você é obediente ao Judiciário. Você nunca será cobrada porque Battisti será liberado antes de você tomar posse, caso seja eleita”.

Claro que minha ética pessoal e meus valores sociais nunca me permitiriam dar um conselho como este, mas não importa. Tampouco sou assessor de ninguém. Mas, que o raio de Júpiter me fulmine se ela não recebeu um conselho como este!

Por que o Presidente extraditaria?

O Presidente não tem nenhum motivo para extraditar Battisti. É um assunto irrelevante para os planos pragmáticos do governo de erigir o Brasil em potência mundial. Nem ajuda nem atrapalha. Então, não há nenhum motivo para extraditar.

Ora, pareceria tampouco existir motivo para salvar a vida de Battisti. Mas, existe sim.

Primeiro, extraditar Battisti seria uma maldade inútil, uma perversidade desnecessária. Nada se ganharia fornecendo um troféu a esse bando de desvairados por vendetta, que se arrancam os olhos numa briga pelo butim do estado, em meio aos escândalos de corrupção mais escrachados da história da Europa após a guerra. Se Lula mandasse Battisti à tortura e à morte, o que ganharia em troca? A Itália não pode dar-lhe o assento permanente na ONU, porque nem para ela própria conseguiria, se tentasse.

Segundo, entregar Battisti aumentaria a já negativa folha corrida do estado brasileiro (não digo “o governo”, digo o estado em geral, desde há muito tempo) como violador dos direitos humanos básicos em todos os departamentos: brutalidade prisional, tortura, trabalho escravo, pedofilia, violência contra mulher, massacres de fazendeiros contra camponeses, anistia dos criminosos de estado, leniência com os autores de chacina, homofobia, misoginia, negação dos direitos da mulher, em fim… não tenho memória em meu computador para escrever tudo. Isso, sem falar nos direitos sociais.

O leitor pode pensar: e acaso o governo se importa com os Direitos Humanos? Bom, há membros do governo que sim se importam, e eles têm algum peso. Se assim não fosse, o PNDH-3 que é uma obra teoricamente magnífica, não teria sido nem mesmo publicado.

O que o Presidente pode argumentar

O Estadão, na matéria mencionada, se refere também à posição do senador Eduardo Suplicy, segundo quem a condenação à prisão perpétua é um obstáculo para a deportação. Como sempre, ponderado e agudo, Suplicy tocou no ponto sensível.

Há, pelos menos, quatro itens do tratado italo-brasileiro que impedem a extradição de Battisti. Se ele for extraditado, esses pontos seriam violados.

Entretanto, o assunto da prisão perpétua é o mais claro. Como já disse o ilustre Dalmo Dallari (Extradição inconstitucional), trata-se de uma questão de soberania nacional.

Nenhum tratado está acima da Constituição Federal. E, no mesmo nível, estão apenas os tratados sobre Direitos Humanos.

Ora, a Constituição brasileira proíbe a prisão perpétua.

Claro que os italianos pensaram numa “jogada mestra”: o boquirroto ex-ministro Mastella disse lá, pensando que não ficaríamos sabendo aqui, que nos prometeria reduzir a prisão ao que é aceitável para nossas leis, mas apenas para “enganar os brasileiros”.

Há um fato que Dallari já denunciou, mas deve ser repetido tantas vezes quantas a questão seja provocada: a Itália não pode modificar uma sentença que já transitou em juízo.

Eu acrescento, por minha parte, que, mesmo que a intenção italiana fosse boa (e, obviamente, não é), ela deveria violar suas próprias leis para alterar uma sentença judicial que já é definitiva. E por que os italianos fariam isso? Após 31 anos perseguindo uma pessoa por todo o planeta, eles iriam violar leis para beneficiar sua presa? Ridículo.

Outros Pontos do Tratado

No caso de Battisti, paradoxalmente, o tratado não é um inimigo. Por milagre, ele contribui conosco!

Ele possui três artigos (o 3º, 4º e 5º) que estabelecem motivos para a recusa de extradição. Destes, o 4º não é aplicável, pois se refere a pena de morte, uma punição que não existe na Itália. Entretanto, o artigo 3º se aplica perfeitamente em seu inciso “f”. Já o artigo 5º é aplicável em sua totalidade

O inciso “f” visa proteger o extraditando de riscos de perseguição e discriminação ponderáveis. Ora, um risco é uma probabilidade de que aconteça um fato negativo. Já uma certeza é um risco cuja probabilidade é 100%. Uma certeza de perseguição é, portanto, uma forma máxima de risco. E, no caso de Cesare, existe certeza.

Battisti já foi condenado. Deve notar-se que a maioria das extradições passivas é requerida em casos de fugitivos que aguardam processamento, embora haja algumas também para aplicação da pena.

Entretanto, Cesare foi condenado à revelia, sem provas, sem testemunhas e até sem advogados. De toda essa fraude saiu nada menos que duas prisões perpétuas. Isto é considerado perseguição no Manual do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e contraria os acordos da União Europeia, segundo os quais qualquer pessoa julgada à revelia deve ter direito a novo julgamento. Itália é o único país da União que não obedece esta norma.

Também Battisti corre risco de vida e de integridade física, pois: (1) o ministro La Russa manifestou seu interesse em torturá-lo; (2) o sindicato de carcereiros disse que quer “vingar Santoro”; (3) o chefe dos sindicatos dos policiais disse que a Itália deveria declarar guerra ao Brasil (por causa de Battisti); e (4) pessoas menos procuradas que Battisti têm sido assassinadas nas prisões italianas, tanto que nelas ocorrem quase mil mortes violentas por ano e entre 55 e 65 suicídios induzidos.

Conclusões

O governo não extraditará Battisti. A extradição seria tão irracional que nem vale a pena discutir sobre esse ponto.

É certo, entretanto, que a decisão do Presidente está demorando demais. A condição de prisioneiro não é brincadeira, mesmo que recebendo tratamento relativamente humano (dentro do que pode ser um cárcere na América Latina). O Presidente e a candidata à Presidência, que foram ambos perseguidos, embora com diferente grau de sofrimento, devem saber disso.

Portanto, está na hora de libertar Battisti.

Não há nada que temer. Os que estimularam o linchamento de Battisti no Brasil estão desmoralizados, e já sentem o desgaste que produz o ódio. Por exemplo:

Os que montaram em janeiro de 2009 uma petição para extraditar Battisti, reuniram, num ano e meio, 307 míseras assinaturas, algumas das quais parecem forjadas. E isto contando com todo o apoio da mídia, dos militares, da oposição política, de parte do Judiciário e da diplomacia.

O jornalista italiano Giuseppe Cruciani, autor do último grito de ódio contra Battisti, expresso em seu tendencioso livro “Gli amici del Terrorista”, reconhece, quando lhe perguntam se Battisti será extraditado: “Io non credo”.

Até o mais soturno inimigo dos ultraesquerdistas de mais de 30 anos atrás, o procurador Armando Spataro, não disse nenhuma palavra contra Battisti numa entrevista passada no dia 07/06/10 pela TV italiana, no famosíssimo programa da Lucia Annunziata, um equivalente feminino do Jô Soares. Apesar de dialogar com a apresentadora sobre quase toda sua vida profissional, aquele assunto não foi tocado. Por sua vez, os políticos não se pronunciam há pelos menos dois meses. O último foi o chanceler Frattini e o penúltimo o prefeito de Veneza.

Então, salvo um milagre, os inimigos de Battisti já não conseguem fazer mais nada. Faço, então, um apelo ao valoroso grupo de parlamentares, juristas, advogados e ativistas dos DH: redijam uma petição precisa e fundamentada, pedindo ao Presidente que agilize sua decisão.

Grande Mídia dá uma Trégua no Caso Battisti


Carlos Alberto Lungarzo

Anistia Internacional (USA) – 2152711

Na seção Tendências/Debates do jornal Folha de S. Paulo do dia 18/06/2010, o professor e jurista Luís Barroso, um dos defensores do escritor italiano Cesare Battisti junto ao Supremo Tribunal Federal, publicou uma apreciação rigorosa e contundente sobre o caso de seu defendido. Os que não são assinantes da Folha podem ver uma reprodução textual da manifestação do jurista no blog de Celso Lungaretti, aqui. (Na mesma página do blog, como anexo, Celso inseriu um vídeo do trabalho em que eu provo a falsificação das procurações que os advogados de Cesare utilizaram em Milão.)

Nos últimos dois anos, Barroso tem publicado vários artigos sobre Cesare, alguns muito detalhados, precisos e com abundante e clara informação, como este aqui. No entanto, o publicado agora, em minha opinião, é o mais categórico e assertivo de todos. Já o nome da matéria, Terrorismo Verbal, é sumamente duro. Tem eloquência suficiente para referir-se sem eufemismos à tarefa cumprida pela grande mídia contra Battisti: aterrorizar a opinião pública apresentando uma imagem falsa do romancista italiano, ex ativista de esquerda, que está totalmente resocializado há “apenas” 28 anos, e fez amigos em todo o mundo civilizado por sua sensibilidade literária, artística e social.

Ao apresentar a versão real sobre os fatos, Barroso não se furta de dizer: “A história documentada, que raramente se consegue contar ao público, é a seguinte: …” [grifo meu]. Deixa assim claro que as histórias que descrevem Cesare como terrorista, homicida e pessoa perigosa são as histórias falsas, mas, além disso, são as histórias “obrigatórias”, que os establhishments italiano e brasileiro (ambos, não apenas o italiano) impõem como as únicas possíveis, proibindo a verdadeira.

Barroso também denuncia o ânimo persecutório, e as maiores irregularidades do processo. Cesare foi acusado oficialmente de subversão, e não de homicídio, e aqueles crimes foram “carregados” em sua conta sem acusação formal, apenas como “fofoca” dos delatores premiados, que ganharam depois a liberdade, enquanto Battisti recebia uma sentença que incorporava esses delitos sem qualquer prova nem testemunha.

Bom, o leitor poderá apreciar a importância deste texto numa leitura e não se justifica repetir aqui todos seus acertos. Entretanto, meu objetivo ao comentar a matéria de Barroso é chamar para atenção para um fato surpreendente: um dos maiores órgãos da mídia brasileira, a Folha de S. Paulo, tem dado espaço para alguém que diz a verdade sobre o caso Battisti!

É algo muito positivo, que deve ser celebrado, mas também algo surpreendente, que ninguém poderia imaginar, e que produz uma estonteante surpresa. Qual é o motivo pelo qual a grande mídia resolveu dar uma trégua em sua campanha de perseguição contra Battisti? As verdadeiras causas devem ser conhecidas por poucas pessoas, mas podemos analisar as hipóteses mais prováveis.

Não é o caso de voltar a revisar as inúmeras campanhas de difamação da grande mídia contra Cesare Battisti, até porque ninguém dispõe de tanta memória de computador para o tamanho da lista. Alguns órgãos ou programas instilaram mensagem de ódio de altíssima voltagem: a revista Veja, o Jornal da Globo, e a revista Carta Capital, esta última considerada de centro-esquerda por muitas pessoas (o que coloca o grave problema de entender o que é esquerda no Brasil). Já, órgãos mais sérios, como os grandes jornais, mantiveram uma parcialidade mais dissimulada.

A Folha, por exemplo, referiu-se sempre a Cesare como “terrorista”, pelo qual é esquisito que publique um artigo onde se critica esta palavra infame e sensacionalista. Em alguns momentos, os editores talvez entenderam a dificuldade de fazer terrorismo dentro de uma prisão, e mudaram, por pouco tempo, para “ex terrorista”.

O jornal publicou algumas matérias favoráveis a Battisti. Uma apareceu em 28/01/2009 (vide) como notícia: era a opinião de Antígone, a mais importante ONG Europeia sobre Direitos Humanos de prisioneiros, que elogiava o refúgio político concedido ao escritor italiano. No 19/01/2009, apareceu, agora na seção Tendências/Debates, a carta onde o filósofo francês Bernard-Henri Lévy justificava seu apoio a Battisti e pedia ao presidente sua liberação.

É claro que um órgão jornalístico que se autoprojetou sempre como imprensa séria, não podia omitir as opiniões de celebridades como Suplicy, Dallari e outras, que se manifestavam em favor de Battisti, sendo que as opiniões e pareceres contra o refugiado ocupavam milhares de linhas por unidade de tempo. Mas, ainda assim, esta forçada objetividade foi relativa. Em novembro de 2009, o político italiano Fassino, na época da máxima escala italiana em favor do linchamento, emitiu opiniões pseudojurídicas sobre a necessidade de punir o escritor. Eduardo Suplicy, um já lendário defensor dos DH sem reparar nos esforços que isso custe, escreveu uma carta de leitores à Folha, um modesto texto de umas poucas linhas, que assinamos ambos, em como membro de Anistia Internacional. A Folha, que publica cartas sobre vizinhos que reclamam de buracos no asfalto, de pessoas que se queixam de barulhos de roqueiros, e outras bobagens, nem se deu o trabalho de publicar um resumo de cinco linhas.

Por outro lado, notícias derrogatórias sobre Cesar podiam ocupar uma média de três a cinco colunas por semana. Algumas dessas notícias eram apresentadas com neutralidade, mas outras eram destacadas sem nenhum motivo. Por exemplo, as contínuas provocações do então presidente do STF contra os que apoiavam Battisti foram reproduzidas sem poupar uma linha. Ainda mais aberrante foi o destaque dado a Alberto Torregiani, filho de Pier Luigi, o ourives vítima do PAC, cuja morte seus autores atribuíram a Battisti. Embora seja mais do que compreensível a dor de uma pessoa condenada a movimentar-se em cadeira de rodas, não é fácil entender a causa de seu resentimento contra o Cesare, sendo que ele mesmo reconhecia que o escritor não estava entre os que mataram seu pai, nem entre os que dispararam tiros por causa dos quais ficou paraplégico.

Nos últimos tempos, a Folha publicou uma notícia difundida por ANSA, que evitou, no entanto, colocá-la em seu site, percebendo o ridículo nela embutido. Nela, Alberto pedia ao STF que lhe permitisse manifestar-se na Corte. É óbvio que isso não podia ser concedido, porque a Corte não interroga testemunhas. Então, dar uma notícia sobre um fato impossível era apenas uma manobra para enlamear o máximo o processo.

O Jornal ignorou declarações de celebridades que apoiavam Battisti, que um jornal sério, mesmo que fosse o mais conservador ao Oeste dos Montes Urais, teria publicado: a de Anita Leocádia Prestes, a segunda declaração de Antígone, esta dirigida ao presidente, a carta encaminhada a Lula pela Liga dos Direitos do Homem, a ONG francesa que foi a primeira organização de DH no mundo.

Ainda, no dia de retomada do julgamento de Cesare Battisti, em novembro de 2009, o diretor do jornal ou coisa que o valha (não sei qual é o título que recebe o capo numa empresa) publicou um estrondoso editorial exigindo a extradição de Battisti. Claro! Ele o publicou como matéria da casa, então ninguém pode acusá-lo de parcialidade. Qualquer cidadão sabe que uma matéria editorial manifesta a opinião pessoal da empresa que, afinal, tem esse direito. Ou não é ela a que investe dinheiro no lucrativo negócio?

Fazendo breve, de toda a mídia, a única que mostrou imparcialidade compatível com o que deve ser a informação num país civilizado (ou tido como tal) foi Isto É. Mesmo assim, não posso menos que lamentar sua falta de comedimento ao não responder minha proposta de publicar as provas da falsificação das procurações, e o pedido de Lungaretti no mesmo sentido. Uma vez, o Estadão concedeu uma entrevista ao juiz Marco Aurélio, o que foi um grande parêntese em sua campanha contra Cesare, e mostro imparcialidade, pelo menos, naquele momento.

Devo reconhecer que um blog de um jornalista da Veja chamado Nunes, publicou uma carta de leitor minha, onde eu desfazia as opiniões erradas de que os filhos de Sabbadin e Torregiani tinham sido testemunhas de que seus pais foram mortos por Battisti. Mas, este foi um caso especial. Essa afirmação sobre a culpa de Battisti foi publicada no meio de um comentário grosseiro e injurioso contra o Senador Suplicy, quem, muito corretamente, negava que alguém tivesse visto alguma vez Battisti cometendo homicídio. Acredito que o editor acedeu publicar minha carta (um longo texto, rigorosamente justificado), porque teve consciência que tinha exagerado suas injúrias e sarcasmos.

Mas, agora, a situação é diferente. A Folha, numa de suas páginas mais lidas, que chega a centenas de milhares de pessoas, publica a opinião do mais autorizado e erudito conhecedor do caso Battisti. Por que?

Não vou incorrer na ingenuidade de dizer que é por respeito à verdade, nem pela famosa liberdade de imprensa, que existe e é muito bem aproveitada, pelos donos, mas não pelos usuários. Penso que toda a campanha de difamação e ódio contra Battisti está muito esgotada. Goebbels estava certo ao proclamar o poder de mentira, mas ele não revelou que o sucesso de suas calúnias se devia não apenas à insistência, mas também à força bruta que o Reich possuía.

Com efeito, este é um assunto longo, mas vou dar uma ideia. A lógica do ódio é confusa, e acaba envenenando os próprios feitores. Se o nazismo conseguiu manter mentiras e preconceitos durante muito tempo, foi porque ele tinha força e podia oferecer alguma coisa aos que secundavam suas mentiras.

Mas a sociedade brasileira, formalmente democrática, com alguns tênues limites humanitários, não pode oferecer nada em troca aos linchadores de Battisti. Sabemos que a classe média que escreve comentários na própria Folha e outros jornais, encontra uma catarse  para sua paranóia quanto externa seus preconceitos, ódios, sentimentos xenofóbicos e neofascistas. Mas isso dura pouco: se Battisti for deportado, poucos conseguirão vê-lo morrer, talvez os guardiãs da prisão, parentes dos que se dizem “vítimas” da esquerda, e alguns dignitários de estado.

Mas o homem comum de classe média, a maioria silenciosa, o frustrado advogado de cadeia que não consegue nem prestígio nem grande fortuna, o fundamentalista teológico, etc., ninguém deles poderá ver morrer o refugiado, como podem ver morrer um assaltante linchado na rua, ou um trombadinha arrebentado por um bando de hooligans. Ou seja, manter o ódio sempre é um esforço, mesmo para quem odeia. E ninguém pode prometer uma recompensar por formar parte da claque de linchadores de Cesare.

Foi esse fenômeno o que desmoralizou até os mais assanhados, sádicos e doentios perseguidores. Os membros mais corruptos do Senado, os soldados da máfia evangélica, os ruralistas, etc., já não tem mais imaginação nem esforço para gritar “Matem Battisti!” e estão encontrando inimigos novos.

Só para dar uma ideia:

O site de petições contra Cesare, organizado pelo grupo do Orkut chamado Fora Lula!, abriu uma lista de assinaturas em janeiro de 2009, encabeçada por um manifesto pieguíssimo e subserviente onde bajulavam escandalosamente Napolitano e Berlusconi. Apesar da cumplicidade de mídia e do apoio dos políticos, eles obtiveram até o dia de hoje (20/06/2010), 307 assinaturas.

No site que Celso Lungaretti e eu abrimos no mesmo portal em dezembro de 2009, já temos 3809 assinaturas. Em termos absolutos, nós temos 12,4 vezes mais do que eles. Se vocês consideram que o site deles está funcionando durante 17 meses, e o nosso durante 6 meses, então eles tiveram 19 assinaturas por mês, e nós 685, ou seja, 37 vezes mais. Ainda, esta superioridade nossa é pequena, e pessoalmente me penitencio de não ter investido mais esforço em nosso petitório porque poderíamos ter obtido mais assinaturas.

A história mostra, pelos menos nos séculos 19 e 20, que a direita só atua quando possui uma esmagadora superioridade de poder militar, policial e econômico. Mas este exemplo da falta de empenho dos inimigos de Battisti prova que ela não consegue ser eficiente, mesmo nesses casos, quando é necessário convencer e raciocinar.

Estamos no QED de nosso teorema. A Folha é um jornal conhecido, possui numerosos serviços, é lido pelos muitos brasileiros que moram fora do país. Ela comprou uma batalha muito confortável contra Battisti, e o atacou com toda a violência que fosse compatível com certa elegância. Sabe que continuar com a mentira será puro desgaste. Aliás, segundo um boato (que, obviamente, não tenho condições de confirmar) que veio da Suíça, parece que os italianos não estão dispostos a gastar mais dinheiro no linchamento de Battisti. Até porque seus problemas domésticos estão ocupando todo seu poder de “sedução”.

Chile e Itália: Prisão Perpétua e Extradição


Carlos Alberto Lungarzo

Anistia Internacional (USA) – 2152711

O caso Battisti estimulou a polêmica, geralmente evitada, sobre a crueldade prisional de alguns países desenvolvidos, como a Itália, Israel e os Estados Unidos. Este problema preocupou os humanistas do século 20, como Jean-Paul Sartre e outros intelectuais da contracultura. Michel Foucault lhe dedicou sua militância concreta e vários livros. Num nível mais científico e racional, várias escolas de sociologia na Europa e nos Estados Unidos questionaram a legitimidade do direito de punir.

Lembro isto, porque a agência EFE acaba de anunciar que o Chile confirmou a prisão perpétua de Mauricio Hernández Norambuena, um dos sequestradores do publicitário brasileiro Washington Olivetto em 2001. Essa condenação não foi imposta por causa daquele sequestro, mas por dois fatos que aconteceram no Chile: outro sequestro (um magnata do jornalismo e agente da CIA) e o pretenso planejamento do homicídio de um jurista católico devotado a justificar legalmente o terrorismo de estado de Pinochet.

Pela mesma EFE soube, ao mesmo tempo, que Regivaldo Pereira Galvão, condenado a 30 anos de prisão por ser mandante do assassinato de Dorothy Stang em 2005, ganhou liberdade provisória, porque o Tribunal do Estado de Pará diz que ele possui domicílio conhecido e atividade lícita (!), podendo, então, recorrer em liberdade.

No Brasil, Norambuena foi condenado a 30 anos de prisão, que está cumprindo na prisão de Catanduvas (PR), num regime de extrema violação dos DH. Enquanto ele foi punido no Brasil pelo sequestro local (e não pelos delitos no Chile), Galvão é autor de um crime vinculado com genocídio. Eu sei que não existe genus de uma pessoa só, mas o caso da irmã Dorothy não está isolado, pois faz parte do planejamento de extermínio de camponeses montado pelos ruralistas, e já cobrou centenas de vítimas (Chico Mendes, as de Carajás, e muitas outras menos conhecidas).

Todos os crimes são igualmente graves? Se for assim, poderia simplificar-se o sistema legal-judicial, e fixar uma pena para todas as infrações, desde briga de rua até assassinato em massa? Estou oferecendo esta dica aos candidatos nas próximas eleições.

Neste artigo, quero fazer uma breve colocação fusionando dois problemas, que, apesar de ter implicações diferentes, estão relacionados pelo caso Norambuena.

‘  A parcialidade das condenações aplicadas no Brasil, de acordo com os interesses das elites na punição.

‘  A diferente atitude do Chile e da Itália no caso de extradição, comparando o caso de Norambuena com o de Cesare Battisti.

O Crime no Brasil

Em 2001, Norambuena e outros 5 estrangeiros sequestraram o publicitário W. Olivetto, e o mantiveram durante 53 dias em cativeiro, com o objetivo de resgate (v). Não foram denunciados tratos cruéis, além da privação da liberdade.

Ninguém precisa explicar como os sequestros são angustiantes para a vítima e os familiares. Todos nós imaginamos isso e também sabemos que alguns deles acabam em morte. Entretanto, uma pessoa não pode ser punida pelo crime que eventualmente teria cometido se aquele que cometeu fosse diferente. Isto é fazer direito-ficção. De fato, ninguém morreu nem foi ferido nesse sequestro.

Os ativistas de DH não somos unânimes sobre o uso da violência, e em nossas ONGs há várias tendências. Eu, pessoalmente, entendo que só é válida a violência defensiva, mesmo quando vai além da “reação imediata”, condição prevista em algumas fontes do direito internacional. Por exemplo, o sequestro do embaixador americano no Brasil tinha por objetivo a liberdade de ativistas políticos que estavam sendo torturados. Tratava-se de uma violência defensiva, não letal, de luta contra uma ditadura, e alvo do sequestro, que era um culpável direto dos crimes da ditadura, não sofreu danos especiais.

Numa sociedade dominada por uma ditadura sangrenta, os grupos de resistência podem atuar como substitutos dos corruptos e truculentos sistemas de polícia e de justiça do sistema, sem que isto gere uma tendência perversa de “fazer justiça por contra própria”. Se toda resistência violenta fosse considera “hedionda”, os milhões de resistentes contra o nazismo deveriam ter sido julgados e condenados por terrorismo!

Entretanto, o sequestro do publicitário não foi defensivo, e deve ser considerado um delito comum, não associado a um objetivo político claro, já que a vítima não tinha relação com as ditaduras, e o Chile era governado agora por uma semidemocracia. Então, era justo aplicar alguma forma de punição.

O TJ de São Paulo, citado várias vezes nos relatórios de Anistia Internacional como protetor de terroristas de estado, e realizador das vinganças dos poderosos, tinha inicialmente sentenciado os 6 membros do grupo a 16 anos de cadeia, mas posteriormente mudou a condenação para 30 anos. Informações oficiosas da época mencionam a “pressão” (moral?) para conseguir uma retaliação à altura da relevância social da vítima. A condenação se baseia somente no delito de sequestro.

Atualmente, existem algumas denúncias, que as ONGs de Direitos Humanos não parecem ter visto, sobre os atos de sadismo usados no RDD, o Regime Disciplinar Diferenciado, ou, dito mais claramente, o sistema oficial de tomento psicológico para provocar danos irreversíveis no réu. Os organismos oficiais e paraoficiais ditos “de DH” foram criados na para conter as demandas dos autênticos ativistas; não causa surpresa, então, sua indiferença. Mas, preocupa que os movimentos independentes pareçam indiferentes.

No caso de Norambuena, sua família tem denunciado que as condições sub-humanas da reclusão o estão conduzindo a um estado limite de crise psicológica.

Além disso, o sistema judicial-prisional não está cumprindo a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de transferir os sequestradores de Olivetto para regime semiaberto a partir de 2007 (v). Seja ou não justa a condenação inicial, o concreto é que em outubro de 2005, a 6ª turma do STJ concedeu o benefício da progressão. Isto foi uma aceitação do argumento de um dos ministros, Júlio Neves, de que a lei de crimes hediondos era anti-constituicional.

Então, vejamos a situação de maneira esquemática:

Caso Norambuena:

Quem é: Ex militante político de esquerda. Ações famosas: projeto de alto risco para derrubar a ditadura de Pinochet no Chile.

Crime no Brasil: Sequestro por 53 dias sem lesões nem mortes.

Vítima: Um alto representante do empresariado nacional.

Condenação: Máxima. Trinta anos de prisão sem recurso em RDD.

Caso Pereira Galvão:

Quem é: Membro de um grupo ruralista empenhado no massacre de ativistas sociais.

Crime no Brasil: Mandante de assassinato premeditado com requintes de violência.

Vítima: Uma ativista estrangeira pelos direitos dos camponeses.

Condenação: Trinta anos de prisão com direito de recorrer em liberdade.

Podemos estar em contra ou a favor desta situação, mas ninguém pode refutar um fato objetivo: nossa justiça se mantém (embora em menos de 100% dos casos) numa espécie de direito censitário e na punição como vingança social.

O Chile e a Itália: Duas Atitudes

Num artigo de hoje, Celso Lungaretti (v), compara a sinceridade dos poderes públicos chilenos (que tornaram pública a sentença a prisão perpétua de Norambuena), com a tortuosidade dos italianos, que quiseram convencer o Brasil de que fariam um “desconto” à condenação de Battisti, reduzindo a prisão perpétua para 26 anos.

O ministro da justiça italiano, encarado pelo clube de familiares das “chamadas vítimas da subversão” (na maioria dos casos, repressores que morreram em troca de fogo com resistentes), tranquilizou os reclamantes, lhes garantiu que Battisti cumpriria prisão até o último instante de sua vida, e até se permitiu reconhecer que estava enganando as autoridades brasileiras com o objetivo de acelerar a extradição.

Lungaretti cita a Dalmo Dallari, que tocou no ponto sensível da questão, ao lembrar que a condena de Battisti tinha transitado totalmente na justiça, e que o governo italiano não podia alterar a decisão judicial por respeito à divisão de poderes. Por sua vez, a própria justiça não poderia reabrir o caso. A única possibilidade seria que, em algum momento de sua prisão, o réu fosse indultado. Esta hipótese, provável ou não, nunca pode ser exigida num convênio sério sobre entrega de extraditandos, porque seu cumprimento depende de fatores imprevisíveis num futuro talvez remoto.

Esta observação realça ainda a lisura de Chile. Se este país quisesse obter a extradição e, para tanto, decidisse enganar o Brasil, poderia ter evitado que se aplicasse uma condenação a prisão perpétua, e se teria cingido aos 30 anos aplicados no Brasil. Lungaretti está certo ao reconhecer na justiça chilena certo sentido ético do qual carece a italiana. Entretanto, esta transparência não deve criar ilusões muito exageradas sobre a equanimidade do sistema jurídico de nosso vizinho.

A prisão perpétua é uma punição atroz, que depois de 20 anos de governos democráticos (mesmo que sejam precários e condicionados pelo aparelho militar-policial), Chile deveria ter derrogado. Deve lembrar-se que o avanço do humanismo judicial no Chile é lento. O país se tornou abolicionista da pena de morte só em 2001, e ainda hoje é (como também o Brasil) retencionista para casos de crimes de guerra. Aliás, a última execução aconteceu há apenas 25 anos.

No caso específico de Norambuena, o Chile tem o direito de considerar a morte de Jaime Guzmán como um homicídio planejado, mas não deve esquecer sua componente política. Guzmán era o artífice jurídico do modelo neofascista de Pinochet. Além disso, o sequestro de Cristian Edwards em 1991, embora fosse injustificado, não produziu danos perceptíveis na vítima, salvo, como em todos os sequestrados ou prisioneiros, medo, apreensão e insegurança.

O sequestro de Edwards foi um crime comum, mas ele não pode ser reprimido com prisão perpétua. Ou, então, qual é a condenação que se aplicaria a um assassino serial ou massivo? Parece que estamos na hipótese de que todos os crimes são equivalentes, à qual me referi no começo deste artigo.

Além disso, a condenação tem de considerar quanto risco representa o réu para a segurança da sociedade. Norambuena deixou, quase com certeza, de constituir uma ameaça para a comunidade chilena. Finalmente, o sistema democrático, que até a eleição recente de Piñera, esteve gerido por uma aliança que se considerava, com certo otimismo, de centro-esquerda, ignora os serviços prestados por Norambuena na luta contra Pinochet. Com efeito, Norambuena planejou um ataque, com enorme risco para sua própria vida, para neutralizar o sinistro ditador (v). O ataque falou, mas foi o único grande projeto para acabar com a ditadura, enquanto democratas cristãos e ex membros da Unidade Popular esmolavam (mais decorosamente que no Brasil, isso é verdade) por uma abertura democrática.

O Efeito Battisti: Paraguai na Fila



No julgamento da extradição de Cesare Battisti, uma maioria de 5 a 4 anulou a condição de refugiado que o ministro Tarso Genro tinha deferido. O relator justificou a nulidade por causa de que Tarso usou de seu direito de considerar que esses delitos eram políticos. Segundo o juiz, só o STF pode fazer essa qualificação. Assim, o magistrado misturava o Estatuto de Estrangeiros, onde se incumbe ao STF como qualificador para o caso de extradição, com o assunto, exatamente oposto, da qualificação do crime para conceder refúgio. (Vide)

O relator também invocou o item 56 do Manual do Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que diferencia entre vítimas de injustiça e fugitivos da justiça. (v) Mas, “esqueceu” de mencionar o artigo 57, onde se adverte que a diferença é difusa, e que as condenações exageradas são formas de perseguição. Apesar do acúmulo de etapas caóticas dessa primeira sessão, o relator e seus aliados proclamaram um resultado que abria uma nova fase na ordem internacional. (v)

Pela primeira vez desde a Convenção de Genebra de 1951, um tribunal de um país ocidental anulava um refúgio concedido por um governo legítimo do mesmo estado. Até nos Estados Unidos, cujo tratamento do asilo é altamente politizado, um juiz ou corte pode cancelar a remoção de um asilado ordenada por um funcionário federal, mas não pode fazer o inverso (v). Aliás, os juízes e as cortes de imigração norte-americanos têm o status da magistratura, mas, na prática, são reais especialistas em movimentos migratórios.

A situação inversa é frequente. Quando um governo concede um asilo e, num estágio posterior, outra instância o revoga, a justiça pode intervir para confirmar o asilo e anular a revogação. Na Europa há numerosos casos. Na Alemanha, o pleito mais agitado foi em 2005, quando a Corte de Köln anulou a revogação do asilo de dúzias de famílias iranianas, apesar de sua qualificação de “terroristas” pelo governo (v).

No Brasil, desde o começo de 2009, se vislumbrava a intenção do STF de interferir nas atribuições do executivo. Isto foi “anunciado” por um parecer consultivo do jurista Silva Velloso, e por opiniões dadas à mídia pelo magistrado Celso de Mello, onde propunha certos “truques” com a jurisprudência para ferrar Battisti.

Frente ao aberto fraude que se anunciava, funcionários e organizações manifestaram alarma pela criação de um precedente nefasto: refúgios atribuídos em processos legítimos poderiam ser destruídos pelo humor ou pelo interesse dos juízes.

O coordenador do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), Luiz Paulo Barreto, e o representante do ACNUR no Brasil, Javier López Cifuentes, denunciaram a deturpação da instituição do refúgio, e a inaptidão do judiciário para julgar problemas específicos sobre risco e perseguição em diversos lugares do planeta (v). Eles afirmavam que aquela intromissão estimularia a países perseguidores a tentar recapturar os que tinham conseguido salvar-se. Essas predições se confirmaram rapidamente. Em seguida, Irão, Cuba, Colômbia e outros começaram a montar seus lobbies para caçar seus nacionais refugiados.

Mas, nos últimos tempos, um caso assumiu relevância. O Paraguai reclamou a revogação de três refúgios concedidos há mais de seis anos (12/ 2003) a cidadãos sobre cuja atividade legal as autoridades brasileiras nunca tinham levantado objeções.

O Contexto do Novo Caso

Em 2003, pouco antes de se exilar no Brasil, os paraguaios Juan Arrom, Anuncio Martí e Víctor Colmán foram detidos pela polícia paraguaia sob a alegação de que teriam seqüestrado (no 16/11/200) Maria Edith Debernardi, que foi liberada com vida dois meses após. A vigência deste caso, ainda hoje, mostra que o hábito italiano de desenterrar crimes antigos se tornou paradigma, aplicado, porém, com certa modéstia: apenas 8 anos e 7 meses (v).

A polícia também acusou os detentos de pertencer à organização guerrilheira Exército do Povo Paraguaio. Os três foram submetidos a sessões de tortura, uma atividade na qual o aparato de repressão do Paraguai é um dos mais truculentos do continente. Segundo um membro do CONARE que não foi identificado pela mídia, há vídeos que registram a aplicação de tormentos, e não cabe dúvida de que os três exilados são perseguidos (v).

Paraguai é um estado patrimonialista, reduzido à miséria depois do extermínio executado pela Argentina e o Brasil entre 1864 e 1870, que provocou a maior devastação demográfica per capita da história, incluindo a posterior. Durante estes anos, as oligarquias dividiram o poder no estilo das “famílias” de máfia, e se revezaram no poder através de ditaduras fortemente aparelhadas pelos grandes vizinhos. Os esforçados movimentos de resistência popular foram reprimidos com extrema barbárie em todos os níveis, inclusive durante as manifestações pacíficas.

Entretanto, o estado delinquencial, com enorme hipertrofia da estrutura repressiva, estimulou grupos policiais e militares a explorar todo tipo de negócio criminoso e, em vários casos, gangues diversas entraram em conflito por causa do butim. Portanto, em nenhuma ação delitiva no Paraguai pode descartar-se a cumplicidade da polícia. Talvez por isso, no caso do sequestro de Maria Edith, as autoridades concluíram que a guerrilha não tinha envolvimento e que era melhor procurar entre policiais e criminosos comuns. Finalmente, os três suspeitos puderam deslocar-se ao Brasil, onde obtiveram refúgio de acordo com todas as exigências do CONARE. Desde 2003, a situação não experimentou variações.

Em fevereiro de 2010, antes que Lugo declarasse estado de emergência, novas acusações apareceram abruptamente contra os três exilados. Segundo todas as informações publicadas, dois deles tinham morado em Curitiba e outro em Campo Grande desde o começo do asilo, e nem a mídia nem a polícia nem a ABIM disseram ter encontrado algo suspeito. Qualquer exilado sabe que os serviços de informações seguem todos os passos dos refugiados, e até dos estrangeiros em geral. Se eles tivessem encontrado algo, é evidente que a mídia o teria difundido para incrementar o sentimento contrário ao refúgio.

Apesar de que os três asilados possuem domicílios conhecidos e a imprensa conseguiu contatar alguns deles (v), o governo paraguaio afirma que continuaram atuando no Paraguai. Embora o padre Lugo não explique, essa atuação pode ser produto de um pacto com o diabo, porque não foi denunciada a ausência do Brasil de nenhum deles.

O governo os acusa agora, além daquele antigo sequestro, de:

  1. Dirigir as guerrilhas a distância e enviar dinheiro às FARC.
  2. Ter planejado o sequestro e morte de Cecília Cubas (em 16/02/2005), filha do ex-presidente Raul Cubas, também refugiado no Brasil fugindo de acusações de genocídio e prevaricação (v), embora estas “infrações” não preocupam muito a mídia brasileira, que poucas vezes questionou a proteção dada por seu colega FHC.
  3. Ter organizado um atentado falido contra o senador Robert Acevedo, em 27/04/2010. Todos estes delitos foram cometidos em território paraguaio.

Por causa do grande poder econômico de Cubas, o governo paraguaio empreendeu um pogrom contra suspeitos da morte de sua filha, exonerando o ministro do interior e mais de 30 delegados. Dada a estrutura mafiosa e feudal dessas elites, é natural que a investigação tenha produzido atrito entre diversas gangues, já que nem todos os policiais estão alineados com a mesma “família”.

Então, a acusação contra os três asilados visa dois objetivos simultâneos: encontrar  bodes expiatórios que paguem pelo homicídio de Cecília Cubas, e oferecer às oligarquias troféus que, supostamente, pertencem a uma pouco visível guerrilha.

Não se conhece nenhuma denúncia de atitudes suspeitas dos refugiados. É justo ressaltar que até jornalistas caracterizados por sua quase permanente subserviência ao establishment apóiam a hipótese que estes delitos foram cometidos por criminosos comuns, e que a relação dos guerrilheiros com as FARC é puramente ideológica, limitando-se a e-mail de saudações e parabéns (v).

Mas, a situação não parece muito grave. Lula tinha reagido dignamente em apóio de Tarso Genro, e tinha respondido com decoro as insolências do presidente Napolitano, mas no conflito paraguaio sua posição foi mais categórica que no caso Battisti. No total, há vários fatores que justificam a idéia de que este novo circo não poderá montar seu show:

  1. Lula disse a Lugo, no dia 3 de maio, que estava amparado pelas Nações Unidas para dar asilo, e chamou os perseguidos de “companheiros”.
  2. Também afirmou que o caso tinha sido investigado e não foram encontrados indícios demonstrativos das acusações.
  3. Esclareceu que, se aparecessem provas concretas, os asilados poderiam ser tratados “de forma diferente”, mas não fez referência à possibilidade de extradição.
  4. Neste caso, não parece existir o mesmo interesse do STF para se arvorar como árbitro do pleito. Aliás, as “predileções étnicas” das elites tornam difícil aceitar eventuais pressões de um país com maioria indígena.

Faltou esclarecer que um asilo só pode revogar-se por descumprimento das condições impostas para sua outorga, que não são sensíveis à vida pregressa dos refugiados. O único argumento válido contra eles seria a prática de crimes em ou desde território brasileiro, mas ninguém forneceu o mínimo indício sobre isso.

Aliás, mesmo no caso de ter violado a condição de asilo, o pais asilante não pode deportar os refugiados a uma região onde se praticam tratos brutais. Isto está claramente proibido pela Convenção de Genebra (art. 33), pelo Protocolo Adicional (art. 1), e pela Convenção Americana de DH (art. 22, §8), além de outros documentos menores. Se houvesse graves faltas dos asilados no cumprimento de suas condições de refúgio, eles devem ser direcionados a outro país fora de risco, ou colocados sob custódia do ACNUR (v)

Tendo em conta o longo prazo durante o qual se executaram os crimes, salta aos olhos que houve tempo para forjar cuidadosamente milhares de “provas”.

Aspectos Críticos

A atitude do presidente Lula foi tranqüilizadora, tanto em relação com os DH individuais dos supostos infratores, como na proteção da instituição do asilo em geral, tão atacada pelo alto judiciário. Entretanto, existem sim outros fatores de preocupação.

O “Palpite” do Chanceler

De acordo com alguns meios, o chanceler Celso Amorim teria feito declarações em 28/02/2010, sobre a exigência de Paraguai de devolver estes cidadãos (v). Já naquela época, o ministro condicionava a revogação do asilo à existência de “provas contundentes”.

No entanto, referiu-se com aparente seriedade ao famigerado computador das FARC, que se tornou alegoria de embuste político de baixa qualidade, depois que o portavoz da organização, Raul Reyes, fora assassinado em março de 2008, junto com vários civis, durante o bombardeio que mercenários colombianos e norte-americanos executaram sobre território do Equador.

A posição de Amorim foi evasiva e, o mesmo que no caso Battisti, não pode descartar-se que sua atitude mude de acordo com as conveniências da diplomacia. No entanto, mesmo que não tenha conseqüências práticas, a tradição de Itamaraty de conceder atenção às propostas mais desvairadas de outros governos (especialmente quando este em jogo a integridade de pessoas vulneráveis e indefensas) creia um permanente estado de insegurança.

Uma Mini-Condor?

Mesmo com a posição negativa à revogação de asilo por parte do presidente, a indiferença do STF e a postura bivalente do MRE, ainda o Paraguai pode ter outro recurso, como nos “bons” tempos da Operação Condor.

Já um professor de Direito Internacional do Paraná ofereceu uma dica valiosa sob a forma de comentário anódino. Afirmou que o governo precisava “saber se eles [os refugiados] estão legalizados no país”. (v)

Este pode ser o caminho para uma Operação Mini-Condor. A polícia pode convocar os asilados, e encontrar qualquer pretexto para denunciar uma irregularidade em seus documentos (por exemplo: “estão vencidos”, “falta um carimbo”, “há um nome escrito em espanhol”, etc.). Então, poderia expulsá-los furtivamente, aduzindo alguma confusa acusação de “permanência ilegal” e devolvê-los à sacristia do padre Lugo. Feito isso, os responsáveis ficarão impunes como aconteceu com os policiais que deportaram um casal uruguaio em 1978.

Terror Mediático

O comentário do professor, junto com outro de uma professora da mesma área, começa a delinear um panorama semelhante ao do caso Battisti, quando experts neofascistas se envolveram numa campanha de contra-informação. Isto é um complemento básico do terror mediático, pois pasquins e redes de TV costumam entrevistar estes experts para espalhar a confusão. Embora muitos assuntos familiares ou pessoais requeiram o uso do direito internacional, os mais interessados nele são as instituições diplomáticas ou militares, e as empresas de comércio exterior, que usualmente financiam as “pesquisas” dos especialistas. Os casos de especialistas em relações internacionais que são reais pesquisadores ou funcionários de organismos humanitários formam uma minoria.

Segundo a professora da USP, o Brasil favorece a entrada de criminosos e o governo estaria “abrindo precedente para isso”. Estas denúncias foram coroadas por uma observação incrível: “A política brasileira para concessão de refúgio não condiz com os tratados internacionais sobre o assunto e nem com a prática jurídica”. (v) Finalmente, disse, com outras palavras, que o governo não deveria prejudicar sua agenda internacional (negócios) por causa dos direitos de três trombadinhas.

O mais grotesco desta observação, é que a má conduta do governo com alguns tratados internacionais existe, mas no sentido oposto ao raciocínio da expert: o problema não é que o governo tenha uma visão liberal sobre o asilo, mas, pelo contrário, que os governos (desde há décadas) têm uma visão estreita e elitista. Os únicos que encontram asilo facilmente são tiranos e genocidas como Bidault, Stroessner, Cubas, Oviedo e alguns criminosos nazistas. Estes publicitários da repressão ficariam surpresos se soubessem qual é o lugar que ocupa Brasil na oferta de asilo. Mas tirarei suas dúvidas na próxima seção.

Refúgio e Asilo no Brasil

Vamos examinar primeiro as condições gerais nas quais um refúgio/asilo pode ser revogado, e depois a real dimensão da “tradição” do refúgio/asilo praticado pelo Brasil.

Revogação de Asilo

O refúgio/asilo pode ser revogado pelo governo asilante quando:

  1. O beneficiado tiver cometido alguma violação das condições sob as quais foi feita a outorga, ou um crime posterior a seu deferimento.
  2. A situação de risco que motivou o refúgio/asilo tinha sido totalmente debelada em seu lugar de origem.

O desvio de refugiados para países não perigosos é uma questão crucial na política de asilo e tem sido respeitada até pelo Estado Mexicano, cujo tratamento de estrangeiros costuma ser arbitrário. Um caso que ilustra bem esta disposição foi o sequestro da sobrinha do candidato presidencial pelo partido da direita PAN, chamada Beatriz Madero, por um italiano e um grupo de argentinos em outubro de 1981. O sequestro, considerado no México crime tão grave como no Brasil, motivou a anulação do asilo dos executores, mas não se cogitou extradição. Eles foram entregues ao ACNUR, que os direcionou para outro país. (v)

Até onde se possui informação do último meio século, os refugiados com asilo já concedido só foram repatriados (e, muitas vezes, assassinados) em países com ditaduras ou governos neofascistas, como aconteceu na Argentina em 1975, antes do golpe.

As Dimensões do Refúgio/asilo

Em 2005, o Alto Comissário do ACNUR, Antônio Guterres, elogiou o sistema de refúgio brasileiro (v) pelo tratamento cordial, mas mencionou o escasso número de pessoas que o Brasil recebe: a diferença era “apenas” a que existia, nesse ano, entre 3 mil asilados do Brasil e 3 milhões do Paquistão. Não se pode justificar este desempenho ínfimo com base na pobreza do Brasil, porque o Paquistão tem um dos piores índices de qualidade de vida. A cizanha semeada pelos experts mercenários, alertando para a invasão do país por refugiados, é de uma cretinice rompante, como mostram as estatísticas da própria ONU. (v)

No final da década de 90, o Brasil estava no 77º lugar (em ordem decrescente) em número absoluto de refugiados. Já em relação com seu tamanho demográfico (#(refugiados)/#(habitantes)), aparecia na posição 103, abaixo do Chile (99) e da Bolívia (96). (v). Em 2005, a situação tinha mudado… para pior. O Brasil estava, em valor absoluto, no lugar 79 (v), e no lugar 134 (v) per capita, com 18,6 refugiados por cada milhão, abaixo do Equador (74) e da Nicarágua (118).

A Lei 9474/97

A Lei 9474/97 é uma iniciativa bastante garantista, mas contém algumas lacunas e ambigüidades, que permitem ao judiciário forjar interpretações tortuosas, como aconteceu no caso Battisti. Um bug grave é a falta de diferenciação entre refugiados e asilados, já que o termo “asilo” aparece na Constituição, mas nunca é elucidado. Supõe-se que o Brasil aceita a definição de refugiado do Protocolo de 1967, mas não oficializa o status de asilado. Esta imprecisão facilita afirmações desvairadas que visam sabotar a concessão de refúgio e/ou asilo, como a de Silva Velloso, para quem “Tarso deu asilo sob o disfarce de refúgio”.

Aliás, a lei não define o que entende por terrorismo, nem esclarece se aceita ou não a sugestão não consensual das Nações Unidas na A/RES/51/210 de 1996 (v), que a própria organização declara não ser uma verdadeira definição. É causa de confusão deixar esse termo sem precisão, porque o rótulo “terrorista” é utilizado com a maior aleivosia pelas classes dominantes contra qualquer pessoa ou organização seriamente opositora.

Também se usa na lei o famigerado neologismo “crime hediondo”, um mistério para os próprios refugiados, que sempre são estrangeiros. Como pode saber um habitante de outro país se ele próprio cometeu crime hediondo? Algumas sentenças monocráticas consideram hedionda a falsificação de cosméticos. A lei deveria elucidar com exatidão a diferença entre os crimes comuns, crimes políticos em sentido estrito, e crimes de lesa humanidade. Esta última expressão foi cunhada para aplicar ao nazismo, mas 60 anos não foram suficientes para que os juristas a reconheçam como um termo técnico com direito a aparecer nos textos legais.

Seguindo o modelo norte-americano, a lei exclui os acusados de tráfico de drogas, sem diferenciar entre agentes do crime organizado e pessoas forçadas a trabalhar para o tráfico, que procuram refúgio, justamente para fugir das retaliações das máfias. Este é o caso de centenas de colombianos acolhidos pelo Equador e a Venezuela.

O Poder de Decisão

Outro aspecto curioso do sistema de refúgio/asilo é a composição do Comitê para Refugiados (CONARE), formado por representantes de vários ministérios, da Polícia Federal e de uma ONG. Nos asilos de índole diplomática, o MRE tem um papel fundamental, mas estes casos são minoria, e se resolvem nas embaixadas. No caso de refúgio/asilo territorial, a função de Itamaraty deveria ser apenas consultiva. A relevância concedida à chancelaria mostra que o interesse em não desagradar os governos prevalece sobre qualquer intuito humanitário, como ficou claríssimo no caso Battisti. Quando, como no Brasil, todos os governos são amigos, o melhor seria não criar falsas expectativas nos candidatos a refúgio. Em qualquer momento, o país pode dar um asilado de presente a um desses amigos.

Essencialmente, conceder proteção é uma tarefa do Ministério da Justiça ou do Interior, ou seus equivalentes, como a Secretaria de Governo no México e na América Central, ou das secretarias de imigração e população como na Escandinávia, ou dos comissionados especializados, juízes e cortes técnicas nos países que se regem pela Common Law.

Já a presença de outros ministérios no CONARE é totalmente extemporânea. Os países que brindam ampla proteção e condições de integração a seus refugiados, como os do Norte da Europa, encomendam a seus ministérios de educação, saúde, trabalho, etc., planos especiais para assentar os imigrantes com o mínimo de traumas. Entretanto, estes organismos não têm nenhum poder de decisão para aceitar ou rejeitar refugiados. A presença de alguns destes ministérios no CONARE mostra também que nem esse anêmico refúgio de 18,6 por milhão de pessoas é brindado só com base humanitária. Há uma espécie de qualificação dos refugiados, como se pessoas mais graduadas merecessem mais proteção. Não é por acaso que alguns africanos pobres foram repatriados para um destino horrível, a despeito das autocríticas do estado brasileiro por causa de seu passado (?) escravocrata.

Tampouco a presença da polícia federal no CONARE faz sentido. Em certos países democráticos, a polícia deporta impunemente potenciais refugiados, mas o sistema migratório não lhes dá direito de decisão sobre candidatos a refúgio já registrados. Nada impede a um responsável pelo refúgio/asilo pedir informações à polícia sobre o histórico do candidato, sem que isso deva implicar no direito da polícia a votar sobre o assunto. No caso de candidatos de esquerda, colocar à polícia para julgar é como pedir a um tigre preparar um churrasco.

É justo que se preze a opinião de ONGs preocupadas pelos DH, pois existem algumas de imparcialidade relativamente alta, mas é imprescindível honrar o pretenso caráter universalista e secular do estado brasileiro. No caso Battisti, quando Cáritas se declarou contra o asilo, foi claro que a presença de um marxista era irritativa para o poder eclesial. É verdade que a Comissão de Justiça e Paz teve um papel fundamental na proteção de refugiados do Cone Sul, tanto em São Paulo como no Rio, entre 1973 e 1985. No entanto, esses foram outros tempos, com outra situação política e outra Igreja. Aliás, ninguém está alijando os setores progressistas que possam existir ainda na Igreja a proteger os refugiados, mas é um pouco anacrônica a teocratização explícita de decisões políticas ou jurídicas. Já é suficiente com o espírito teocrático do judiciário, mesmo que não esteja formulado oficialmente.

Um tragicômico paradoxo é que o ACNUR pode assistir e manifestar-se no CONARE, porém sem direito a voto. As agências da ONU podem sofrer da influência dos países membros, mas é óbvio que o ACNUR entende mais de refúgio que qualquer outra organização e que sua imparcialidade é mais ou menos razoável.

Os Aspectos Políticos

É saudável diferenciar entre a tradição popular brasileira de hospitalidade e cosmopolitismo, que é um traço da psicologia social do país, das políticas oficiais aplicadas desde o império para a recepção de estrangeiros. Também, é necessário ter em conta a típica discrepância entre as leis e os fatos. Brasil tem uma das constituições mais avançadas do mundo, e os planos de DH mais ambiciosos, mas a prática da justiça, da proteção social e da política concreta mantém pouca relação com o papel.

Além disso, vale a pena uma reflexão sobre a estratégia de alianças do atual governo. É positivo que queira manter-se fora das pressões dos grandes centros de poder, e promova projetos alternativos que tentem garantir a paz e não provocar o conflito, como no caso do não bem apreciado esforço de intermediar com Irã. Entretanto, essa política parece ainda superficial, como o prova a defesa dos interesses predatórios de empresas brasileiras no Equador e na Bolívia.

Se no caso destes dois países há uma subestimação da fraternidade entre os povos, por outro lado parece existir uma exagerada condescendência com o governo de Lugo. De maneira diferente a outros regimes da região tidos como “progressistas”, o sistema paraguaio não parece dar indícios de mudança significativa, salvo pela presidência de um antigo membro da Teologia da Libertação, cuja posição política e seu discurso carecem de coerência.

A declaração de estado de emergência em cinco departamentos cria uma zona onde os direitos das pessoas estão nas mãos de militares e policiais. Esta decisão desproporcional, que visa agradar o exército e a oligarquia paraguaia e que transforma o norte do país num sub-estado policial, criminaliza os movimentos sociais e afronta o direito de asilo numa forma que não consegue convencer nem a mesma polícia e serviços de inteligência brasileiros. Aliás, o padre Lugo deverá prestar contas algum dia pelo pecado de faltar com a verdade. Como chefe do estado é evidente que não pode acreditar na culpabilidade de asilados que até a mídia brasileira considera inocentes.

Sacco e Vanzetti: Trailer do Caso Battisti

Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti na prisão. Autor Desconhecido

Vários observadores sociais e comunicadores compararam o processo sofrido por Cesare Battisti, especialmente durante 2009, quando foi oficialmente julgado, com o caso dos anarquistas italianos Sacco e Vanzetti, que, durante a década de 1920 foram acusados pelo assassinato, sem provas concretas e com testemunhas duvidosas. Hoje, ninguém duvida que ambos foram vítimas de uma vingança da justiça e das elites norte-americanas, que queriam destruir o anarquismo e o comunismo, e propagar o terror entre os trabalhadores.

O processo, condenação e morte dos dois amigos durou de 1920 até 1927. Nesse período, em quase todo o mundo se realizaram atos de protesto, se organizaram passeatas de milhares de pessoas, e se proferiram denúncias públicas de meios de comunicação e dos mais famosos e míticos intelectuais da época, como G. Wells, Bernard Shaw e B. Russell.

Meu intuito neste artigo é mostrar que, apesar da certeza unânime de que os militantes italianos eram inocentes, e de que seu julgamento foi uma grande farsa, o grau de distorção e mentira não foi o maior possível. No caso de Cesare Battisti, houve um nível de falsidade, fraude e manobras tortuosas, bastante (ou talvez muito) maiores que naquele caso. Este assunto pode ser visto, então, como um trailer do que seria, 90 anos após, o filme de Battisti: uma amostra grande, truculenta, assustadora, mas ainda assim menos nojenta que a grande tramóia de 2009.

Os Crimes e as Acusações

Nos Estados Unidos da década de 20, as elites capitalistas se sentiam acuadas pela ação do movimento operário, que, apesar dos ataques brutais recebidos desde décadas anteriores (cujo ápice foi o massacre de Chicago, no 1º de maio de 1886), tinha incrementado sua capacidade de luta. Os anos entre 1917 e 1920 formam o período de mais intensa repressão política na história dos Estados Unidos, conhecido como Red Scare (Ameaça Vermelha), que foi inaugurado no mesmo momento em que se preparava a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia.

Apesar da distância, o país reagiu ao surgimento do poder soviético com igual velocidade que os mais reacionários estados da Europa. Durante esses quatro anos, a propaganda contra os comunistas e os anarquistas, a agitação da mídia, e a brutalidade policial e jurídica, que continuariam até os dias de hoje, atingiram seu pico mais exasperado. Foi nessa época que trabalhadores de esquerda foram submetidos a julgamentos sumários, forjados e coroados por punições desproporcionais.

O caso dos anarquistas Nicola Sacco (1891) e Bartolomeu Vanzetti (1888) foi um imenso circo para converter pessoas inocentes em grandes bodes expiatórios, numa luta não apenas contra a praxe, mas até contras as idéias da esquerda. Se o militante sueco Joe Hill foi tornado símbolo de uma vendetta burguesa “provinciana” (pois seu julgamento e sua execução foram rápidas e sua repercussão foi pequena fora do estado norte-americano de Utah), estes dois imigrantes italianos foram usados para transformar essa vendetta num grande espetáculo de terror. Era uma advertência contra toda a esquerda que defendesse os direitos dos trabalhadores.

Em abril de 1920, dois pagadores de uma empresa de sapatos, situada numa pequena cidade perto de Boston (no estado de Massachusetts) foram assassinados por desconhecidos, que roubaram todo seu dinheiro. A polícia sabia que Sacco, artesão sapateiro, e Vanzetti, vendedor ambulante de peixe, eram militantes anarquistas e os deteve como suspeitos um mês depois, apesar de não ter nenhuma prova nem testemunha contra eles, e de que nenhum deles tinha sido preso antes.

Ambos foram acusados do assassinato dos pagadores, mas puderam apresentar fortes álibis, fornecidos por testemunhas de boa reputação. Uma das testemunhas era um funcionário do consulado de Itália, que lembrava ter estado com Sacco no momento do crime, e descreveu todos os detalhes do trâmite de obtenção do passaporte do imigrante. O juiz e o promotor desprezaram estes depoimentos, e aduziram que as testemunhas eram arranjadas.

Contudo, de maneira diferente ao que aconteceria com Battisti em 1980 (60 anos após), Sacco e Vanzetti tiveram direito à defesa, e contaram com os melhores advogados socialistas e libertários que havia no país.

Outra diferença é que, enquanto Battisti foi acusado de ser o dono da arma de dois dos crimes sem prova nenhuma, e sem que arma nenhuma fosse jamais mostrada, os anarquistas italianos tiveram direito a um teste experimental de disparos. Isso, porém, não adiantou, porque o promotor Frederick Katzmann (muito menos tortuoso que o magistrado Armando Spadaro do caso Battisti, mas, mesmo assim, um fanático inimigo da esquerda), aceitou uma perícia forjada que indicava que uma das balas do crime era do revólver de Sacco.

A perícia de revólver de Vanzetti foi mais escandalosa que a de Sacco, pois o projétil e a arma não coincidiam nem mesmo no calibre (a bala era de calibre32 e o revólver de Vanzetti, de calibre 38).

Além disso, Battisti foi acusado de quatro homicídios, sem que os juízes se importaram com a impossibilidade física de ter atuado nos quatro crimes. No período do Sacco e Vanzetti, em que a repressão foi a mais violenta de história urbana dos Estados Unidos, houve outros delitos políticos, mas os juízes não tentaram colocá-los também na conta dos italianos.

Montagens e Tramóias

O chefe da defesa era o esforçado e corajoso advogado socialista californiano Fred H. Moore, incansável lutador em prol das causas políticas e sindicais dos trabalhadores. Durante o julgamento, foi insultado várias vezes pelo juiz Webster Thyler, um membro da corte suprema estadual, conhecido por sua mediocridade, por ter obtido um diploma em troca de favores, e por mudar de partido político segundo a conveniência. (Alguma coincidência?) Thyler se gabou de que acabaria os condenado e injuriou a Moore, desprezando sua origem californiana.

As testemunhas de acusação eram “menos” forjadas que as de Battisti, pois, pelo menos, tinham nome e profissão e seus dados eram conhecidos. Entre elas estava a bibliotecária Mary Splaine, a enfermeira Lola Andrews, o capitão de polícia William Proctor e um desempregado chamado Lewis Pelser. Tempo depois de seus depoimentos, estes quatro declararam que seus declarações tinham sido distorcidas ou obtidas por coação, mas foram ameaçados e impedidos de pedir a retificação ao tribunal.

Splaine reconheceu que esteve, durante poucos segundos, a mais de 50 metros de distância do lugar do crime, e que realmente não tinha reconhecido aos atiradores. Andrews denunciou ter sido coagida sob ameaça, e Pelser declarou ter sido obrigado a assinar enquanto estava bêbado. O capitão Proctor foi mais enfático: afirmou que tinha advertido ao promotor que as balas do crime nada tinham a ver com as armas dos réus; também denunciou que seu depoimento foi alterado pelo ministério público, mesmo depois de redigido.

O júri, montado da maneira habitual nos Estados Unidos, com base em critérios subjetivos e parciais, gastou em sua deliberação menos de três horas, um terço do que consume uma deliberação média em casos bem mais simples que aquele. Depois, entregou um veredicto unânime de culpabilidade, o que condenou os acusados à pena de morte. Entretanto, como acontece até hoje em muitos julgamentos, a ameaça da morte ficou pendendo sobre os réus até muito tempo depois. Só seriam eletrocutados em agosto de 1927, passados sete anos de calvário e terror.

Em 1924, a polêmica ainda continuava, focada agora na substituição de provas (por exemplo, a mudança do cano do revólver de Sacco), a falsidade de algumas perícias, as declarações prévias ao julgamentos de alguns membros do júri, e a permanente atitude de ódio e ofensa do juiz contra os defensores. De maneira exatamente oposta ao que aconteceu no Brasil, uma parte da imprensa convencional denunciou a parcialidade do juiz e o acusou de baixo nível moral e procura de notoriedade.

Em 1925, Sacco conheceu na prisão o imigrante português Celestino Madeiros, membro de uma gangue muito temida, que fora preso por outro crime e foi executado na mesma época que os dois italianos. Naquele momento, Madeiros confessou ser o responsável da morte dos pagadores, e negou que tivesse qualquer colaboração de Sacco ou de Vanzetti, aos quais nem mesmo conhecia antes do crime. O juiz se recusou a reabrir o caso e ter em conta a confissão do verdadeiro assassino.

Isto tem duas analogias com o caso Battisti: (1) O verdadeiro autor da morte da primeira vítima, chamado Pietro Mutti, confessou seu crime. A diferença é que ele não manteve sua confissão, como Medeiros, mas mudou depois de versão, acusando a Battisti. (2) Os juízes se recusaram a aceitar a confissão de Medeiros como prova. Da mesma maneira, o Supremo Tribunal Federal que condenou Battisti à extradição, se recusou a aceitar provas fornecidas por seus amigos, e seu relator até reagiu agressivamente.

Antes da execução, ambos foram interrogados no mesmo presídio pelo reacionário semifascista governador Alvin T. Fuller, que entrou nas celas separadas dos dois amigos, protegido por uma poderosa guarda. No momento de seu interrogatório, Vanzetti deu uma mostra de coragem muito parecida às que deu Battisti no confronto com seus juízes de Milão, durante o processo de 1981.

Apesar de estar enfraquecido por uma greve de fome de vários dias, Vanzetti improvisou um forte discurso, reivindicando seus ideais libertários, e acusando o governador e os juízes de ter fraudado esse processo. Num último esforço, tentou avançar sobre a comitiva, mas, segundo boatos espalhados pela imprensa, tinha sido controlado a pancadas.

Durante os sete anos de martírio e especialmente quando se aproximava sua execução, os amigos italianos receberam milhares de manifestações de solidariedade, incluídas às dos mais famosos intelectuais da época, entre eles algumas figuras lendárias: John Dos Passos, Alice Hamilton, Paul Kellog, Jane Addams, Heywood Broun, William Patterson, Upton Sinclair, Dorothy Parker, Ben Shahn, Edna St. Vincent Millay, Felix Frankfurter, John Howard Lawson, Freda Kirchway, Floyd Dell, Bertrand Russell, George Bernard Shaw e H. G. Wells.

A Reação da Sociedade

Temos um sentimento muito claro de que o mundo tem progredido. O fascismo, que então começava, foi derrotado na guerra, embora ainda não foi eliminado e sua força é muito grande em vários países. O racismo também é menor, inclusive nos Estados Unidos. Ninguém sonhava em 1920 nem em 1970 com um presidente mulato. A pena de morte foi eliminada da Europa, e a tortura, apesar de assomar sua horrível cabeça em muitos países, é hoje menos tolerada que há 90, 80 ou 40 anos.

Entretanto, o caso de Sacco e Vanzetti chacoalhou quase todo o Ocidente, e até alguns lugares do Oriente. Houve manifestações nas principais cidades de Europa, nas Américas e até na Índia. Algumas das passeatas atingiram a quantidade de 250 mil pessoas, um número que impressiona se pensamos no tamanho das cidades há 80 ou 90 anos.

Quando eu era criança, os mais velhos me contavam a história de Sacco e Vanzetti, acontecida 40 anos antes. Minha família não tinha nada de esquerda, e nossa cidade estava a milhares de quilômetros dos Estados Unidos. Mas, quando pensamos no caso Battisti, parece que esse progresso da humanidade não atingiu alguns países e algumas instituições.

Com efeito, o julgamento de Battisti foi mais falso, tortuoso e bufonesco que o de Sacco e Vanzetti. Não houve prova nenhuma, nem testemunhas reais, e até documentos neutros como procurações foram falsificados pela justiça italiana. Já no Brasil, o Supremo Tribunal não se deu ao trabalho de ler as provas. Não houve o mínimo pudor de fingir interesse, mesmo que o resultado depois fosse o pactuado com as autoridades italianas. O relator do caso simplesmente desprezou qualquer oportunidade de esclarecimento, e até ofendeu os amigos de Battisti que reclamavam a verdade.

Uma explicação para a diferença entre ambos os casos é que, apesar de seu caráter arbitrário e sua aplicação exorbitada da pena de morte, a justiça norte-americana nas comarcas fora do Sul do país, sempre foi menos imoral e mais garantista que a Italiana. A comparação entre o caso Battisti e o de Sacco e Vanzetti mostra que a máfia stalino-fascista do judiciário de Milão era mais corrupta e sádica que a dos estados ianques, mesmo em tempos de crise política.

Embora na França e parcialmente no Brasil, se tenha sentido a reação de um setor esclarecido e corajoso da sociedade, os atos concretos de protesta foram muito menos intensos que os da época dos anarquistas italianos. Será que nosso progresso moral e social é apenas uma ilusão?  Talvez não.

Os quase 16 mil dólares roubados no assassinato dos pagadores da fábrica de sapatos nunca foram encontrados. Nenhuma parte desse dinheiro apareceu nas casa de Sacco nem na de Vanzetti nem das de seus amigos. Por sua vez, o português Madeiros morreu na cadeira elétrica bradando que os italianos eram inocentes.

Serra agora quer castrar os sindicatos

“Hoje mocinho, amanhã bandido” (slogan de campanhas
antigas contra brinquedos que reproduziam armas).

Por uma questão de princípio, não participo de querelas eleitoreiras.

Para quem, como eu, acredita que os Executivos federal, estaduais e municipais não têm autonomia para decidir o destino da Nação (ditado pelo poder econômico) e cumprem apenas o papel de síndicos do edifício capitalista, seria incoerente conferir peso significativo à escolha desses síndicos.

Estou careca de saber que, num país da importância geopolítica do Brasil, a política econômica será sempre imposta pelo grande capital. Isto é uma espécie de cláusula pétrea de uma Constituição que não está à vista de ninguém, mas tem força bem maior que a de 1988.

Vai daí que continuo apostando todas minhas fichas na organização autônoma dos cidadãos, fora do Estado e contra o Estado, para criarmos uma democracia fundada na priorização do bem comum e dos interesses coletivos. Essa que aí está expressa apenas o primado da usurpação e da ganância.

Mas, como preservo o legado da resistência à ditadura de 1964/85, permito-me criticar atores políticos que iniciaram essa caminhada nas fileiras dos justos e agora se compõem com os injustos.

Caso de José Serra, que acaba de qualificar de “político-eleitoral” a recente greve dos professores da rede estadual de São Paulo.

A criminalização da greve está sendo pleiteada por tucanos e demos (o leitor que decida se são democratas ou demoníacos…) e um parecer equivocado da Procuradoria-Geral Eleitoral veio ao encontro do pleito reacionário.

Ao mesmo tempo em que, para todos os efeitos, apóia a representação do DEM e do PSDB contra a Apeoesp, Serra faz questão de ressalvar que a iniciativa de apresentá-la não foi sua.

É claro que, para um ex-presidente da UNE, trata-se de um ato absolutamente inconcebível, daí a retórica farisaica.

Se não apóia, o que está fazendo ao lado de gente que quer cercear a manifestação política dos sindicatos?

Se não apoiava a presença dos piores brucutus da PM no campus da USP, por que os mandou lá, ao invés de escolher unidades mais aptas para lidar com professores e estudantes?

Se não mudou de idéia acerca dos usurpadores do poder de 1964, por que deixou, durante todo seu governo, que a página virtual da Rota os elogiasse?

Se não apóia as vinganças selvagens da direita contra cidadãos idealistas, por que se pronunciou a favor da extradição de Cesare Battisti?

Não, as evasivas não colam. Se quer eleger-se presidente da República com os recursos da direita e está disposto a todas as concessões para mostrar-se-lhe confiável, que tenha, ao menos, a hombridade de admitir que, hoje, é favorável a manietar sindicatos, barbarizar campus, endossar golpismos e linchar contestadores.

Quanto ao parecer da Procuradoria Eleitoral, vou repisar o óbvio:

  • ao pretenderem atrapalhar as pretensões presidenciais de um político que fez o que Serra fez com a Educação em São Paulo, os professores paulistas estavam em seu pleno direito e tinham todos os motivos para agir como agiram;
  • se houvessem tomado partido explícito por tal ou qual candidatura oposta à de Serra, o que não fizeram, aí sim se poderia discutir o caráter de sua greve (e mesmo assim, a condenação não seria automática, pelo menos numa democracia).

De resto, sou obrigado a me repetir e a repetir o que o colega Jânio de Freitas brilhantemente escreveu em sua coluna A greve da hora:

“O histórico reacionarismo brasileiro foi que propagou a ideia de que sindicatos e congêneres só podem promover ações sem mais pretensão ou conotação do que reivindicações profissionais específicas. E, ainda assim, bastante estritas e sob legislação muito restritiva.

“…Impedir sindicatos e congêneres de se manifestar politicamente seria trazer de volta um pedaço de ditadura.”

Quando presidente da UNE, Serra decerto subescreveria estas palavras.

Como presidenciável demo-tucano, ele não hesita em queimar todas as bandeiras que um dia, dignamente, empunhou.

Deveria ler os Evangelhos:

“Pois, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?” (Mateus, 16:26)

Como Eram as “Vítimas” de Battisti?

Simbolo do MSI Italiano. Logotipo de domínio público

Desejo agradecer à companheira Amparo Ibáñez, que me forneceu parte da documentação usada neste artigo, e me informou sobre livros e artigos recentes na área.

Sobre as vítimas do PAC, carregadas na conta de Battisti pelos próprios autores dos crimes (ou seja, Santoro, morto por Mutti, com ajuda de Miglioratti e Giacomin; Torregiani, morto por Fatone, Memeo, Sebastiano Masala e Grimaldi; Campagna, morto por Memeo; e Sabbadin, morto por Giacomin com ajuda de Mutti) sabe-se muito pouco. Até Torregiani, sempre lembrado por seu filho, cujos mais simples comentários ganham enorme repercussão na mídia, não é suficientemente conhecido. O que se sabe deles é um conjunto de dados fragmentários, nem sempre consistentes, descobertos muito depois, quando Cesare voltou à França e seus amigos lhe ajudaram a reconstruir a fraude dos julgamentos de Milão. Mas, mesmo assim, a história é lacunar.

Apesar disso, queremos passar o mais perto possível da resposta a esta pergunta:

Como eram aqueles 4 homens que foram assassinados por Mutti, Miglioratti, Giacomin, Fatone, Memeo, Sebastiano Masala e Grimaldi, mas cujo homicídio se atribui totalmente a Battisti?

Fontes Virtuais e Impressas

Da Associazione Italiana Vittime del Terrorismo (AIVITER), tenho tomado apenas dados básicos sobre os mortos. O site está construído com cuidado, mas evita informações detalhadas. Os editores não podem ignorar totalmente o terrorismo “nero” (de direita), porque alguns membros da associação são parentes de vítimas dos fascistas. Mas, mesmo assim, diminuem todo o possível a responsabilidade da direita. Duas ou três vezes se usa a palavra “fascismo”, mas nunca se denuncia um executor ou uma organização fascista pelo nome.

A esquerda, entretanto, é amplamente denunciada. Fala-se muitas vezes das BR, dos PAC, se dedica uma página a Battisti e outra a Matina Petrella, se critica que Curcio, já liberado, possa proferir palestras, e alguns propõem que qualquer pessoa próxima da esquerda real seja proibida de ter cargos públicos. Das chamadas stragi (grandes explosões com dúzias de mortos e mutilados) apenas duas são explicitamente atribuídas ao terrorismo de direita (Vide). São as de Fecha (12/07/70) e ao do Rápido 904 (23/12/84). Outras seis, algumas com quase 100 mortos, aparecem na coluna maior sem referência aos autores. Em alguns casos, o site fornece links para outros portais cujos editores sim denunciam criminosos fascistas (como Mambro), mas o AIVITER faz esta referência como simples serviço, sem assumir responsabilidade. Usualmente, AIVITER reserva o termo “terrorista” para a esquerda e “extremista” para a direita, quando não pode evitar mencioná-la.

Em nenhum local do site figuram as vítimas de morte sob tortura policial, como o anarquista Giuseppe Pinelli, e se ridiculariza os que falam do terrorismo de estado, como Adriano Sofri. Manifestam mal-estar com os políticos acomodados, aos que acusam de linha muito branda contra os exilados, e propõem ações diplomáticas agressivas contra países como França, que respeitam, mesmo precariamente, o direito de asilo.

Também os mercenários que participam das invasões da coalizão em Afeganistão e Iraque são incluídos entre as vítimas do terrorismo (ou seja, a resistência nacional desses países) (Vide). Portanto, o site é de utilidade escassa, mas não quis se acusado de parcialidade.

Tenho usado também as fontes da cooperativa Sensibili alle Foglie, no Progetto Memoria tanto no que se refere aos volumes narrativos dos Anos de Chumbo (Roma, 1994, 1996, etc.), como aos seminários.  REFERÊNCIA: PM.

Foram de essencial ajuda alguns textos jornalísticos de La Repubblica, Corriere, Il Giornale outros, e revistas como Panorama. REFERÊNCIA: Por título.

Também usei os ensaios e relatos de Claude Mesplède, Claude Amoz, Alexandre Bilous, Valerio Evangelisti, Michèle Lesbre, Dominique Manotti, Patrick Mosconi e Roberto Bui, editados por Fred Vargas. (La Verité Sur Cesare Battisti, Ed. V. Hamy, 2004). REFERÊNCIA: VCB.

O site Polvere Da Sparo está mantido por militantes de DH de esquerda, mas quem deseje confirmar a veracidade poderá compulsar os outros sites e estabelecer relações. REFERÊNCIA: PS.

Tenho omitido livros do próprio Battisti e minhas conversas com ele, e outras fontes influenciadas emocionalmente. Alguns dos jornais e capítulos de livros se encontram na Internet, e podem ser acessados livremente. Não posso digitalizar e colocar em meu site o resto do material, porque parte dele deve ter direitos autorais, mas posso emprestá-los a quem se comunicar comigo. (http://ocasodecesarebattisti.blogspot.com/)

Foto de autor desconhecido

O Chefe Antônio Santoro

Antonio Santoro era o comandante geral dos carcereiros da prisão judicial de Udine, (“Maresciallo della Polizia Penitenziaria”). Sua figura é a menos discutida, pois, enquanto a corporação policial e o governo fazem homenagens a sua memória, guardam silêncio sobre os detalhes de sua conduta, limitando-se a dizer que morreu cumprindo seu dever. Santoro foi executado em Udine no dia 06/07/78.

Já as pessoas que Santoro maltratou na prisão de Udine, ou torturou ou mandou torturar, têm deixado depoimentos claros, pois quase todos os prisioneiros sobreviveram. Alguns resilientes comparam sua situação com a dos presos argentinos, mas a repressão italiana foi muito menor em quantidade, e os tormentos aplicados foram (na linguagem do manual da CIA) de leves a moderados: espancamento, chutes, privação do sono, ameaças de morte contra familiares, humilhações, afogamentos e queimaduras leves. Foi escasso o uso do choque elétrico e de mutilações com chamas ou com armas brancas. Não se relatam casos de uso do pau-de-arara. A tortura química, que produz alucinações e delírios com drogas fornecidas pela CIA, parece que foi introduzida depois de 1980. A existência de tortura em Udine e Verona concordam com as denúncias feitas por Anistia Internacional, nos relatórios que abrangem desde 1977 até 1981. Veja estes relatórios em meu site:

https://sites.google.com/site/lungarbattisti/documentos/anistia-internacional

Os detalhes sobre as torturas aplicadas sob a supervisão de Santoro estão relatados com detalhe pelas vítimas, no PM, vol. 1º, p. 403. Já o clima geral de violência e tormentos, de maneira mais genérica, é descrito no PM, vol. 3º, PP. 364-365.

O grupo de Proletários Armados para o Comunismo teve muito envolvimento com policiais e carcereiros, porque seus grandes objetivos eram: evitar as torturas, punir os torturadores, combater o trabalho informal (comum na Itália comparando com outros países ricos), e desmontar os esquadrões da morte de empresários, cujo objetivo era exterminar (limpar=pulire) elementos marginais: pequenos ladrões, sem teto, mendigos, etc.

O interesse do PAC pela vida prisional é uma herança direta da contracultura, e se relaciona com as propostas de filósofos e pensadores humanistas, como Camus e Sartre. A ideologia anti-repressão do PAC lembra Michel Foucault (que estava em seu apogeu na época), mas com uma tendência prática e ética, sem adotar essa espécie de neutralidade niilista que o filósofo francês tomou de Nietzsche.

Os membros do PAC, especialmente seu ideólogo Arrigo Cavallina, se referiam à prisão italiana como “lager especial do estado”. A palavra lager, com vários sentidos em alemão, foi usada pelos sobreviventes dos campos de concentração nazistas para indicar depósitos de prisioneiros e áreas de extermínio, como Auschwitz. O termo foi muito empregado por judeus e outras vítimas do fascismo, e alguns movimentos da contracultura, como a Autonomia Operária, Prima Línea e outros o introduziram no italiano como um vocábulo próprio.

Os PAC não foram os primeiros em descobrir o caráter desumano das prisões italianas, mas talvez foram os que mais colocaram ênfase nisso, sem preocupar-se pelos objetivos da esquerda utilitária, como obter o poder, ganhar deputados, e escalar a pirâmide do status no capitalismo.

No vol. 3º de PM, p. 364, vítimas de Udine denunciam que as prisões judiciais dessa cidade e de Verona foram usadas, durante a década de 70, como laboratório para testar um método que destruísse a resistência moral do prisioneiro, fosse político ou comum. A comparação com o lager alemão foi um grande acerto, porque, depois do nazifascismo original, a Europa Ocidental não continuaria tolerando campos de concentração. Então, eles foram substituídos por modelos prisionais de “extermínio moral”. Isto não excluía a tortura (que era uma parte relevante, mas não exterminava fisicamente o prisioneiro), nem visava necessariamente danos irreversíveis, embora estes fossem frequentes. O objetivo era anular seu senso de dignidade, e torná-lo um servidor indefeso que as empresas (que tinham crescido primeiro com o fascismo e depois com a democracia) pudessem os utilizar como ferramentas.

Nesses documentos, Antonio Santoro é denunciado como organizador de torturas. De fato, apesar da purga feita pelo democrata cristão Scelba, depois da guerra, de elementos esquerdistas e democráticos no serviço público, os órgãos policiais e judiciais não ficaram totalmente nas mãos dos fascistas. Portanto, a impunidade para o terrorismo prisional, mesmo muito grande, não era absoluta. Isso fez possível que Santoro fosse denunciado várias vezes pelos detentos e alguns corregedores abriram sindicâncias contra ele, rapidamente arquivadas.

Uma observação importante é que, durante o tempo que esteve preso em Udine, antes de conhecer Cavallina na prisão, e posteriormente unir-se aos PAC, Cesare fez várias denúncias sobre tratamento cruel e desumano por parte de Santoro e os policiais a seu mando (que eram todos). Este é um dos aspectos pelo qual tornou-se, anos depois, objeto de ódio dos carcereiros, embora eles soubessem que não era o assassino de Santoro. A militância de Cesare contra a tortura foi possivelmente uma das causas para que, ao ser capturado em 1979, depois de ter abandonado o PAC, lhe fosse aplicada uma pena brutal para um delito político de guarda de armas e associação subversiva (12 anos e meio de reclusão). Também isso explica as ameaças que atualmente se fazem contra ele, no suposto caso que fosse deportado.

Santoro é longamente criticado nos textos do PM. Alguns sobreviventes contam que ele fechou todos os canais que pudessem tornar a vida dos prisioneiros menos desumana. Por exemplo, autoridades anteriores tinham criado um campo desportivo para recriação dos detentos, como era habitual nos países civilizados da Europa. Santoro mandou limpar esses terrenos e dentro dele construiu sua própria residência.

Transcrevo um trecho da página 364.

“A propaganda do sistema pretende nos escandalizar porque na Argentina, enquanto se joga futebol [era a época da Copa do Mundo no país] milhares de pessoas são sequestradas […], porém a Argentina é aqui também […]. Milhares de operários nas cidades italianas são sepultados nos lager dos estados democráticos, chamados “cárceres especiais” condenados ao isolamento perpétuo, à privação das relações sociais, dos afetos, da percepção, da assistência médica. São condenados a morrer sob longo tempo; é um genocídio de mãos limpas. […]

“Durante muito tempo, Udine é destinado a lager especial. […] O comandante canalha Antonio Santoro era a pessoa perfeitamente adequada ao projeto de extermínio desejado pelos partidos constitucionais: massacrador de detentos de antiga data, existem denúncias e processos em curso […]” [Grifos meus]

Foto do site AIVITER

O Pacífico Açogueiro

Lino Sabbadin (1933–1979) era um açogueiro da minúscula aldeia de Santa Maria di Sala, no Veneto, que hoje tem 16 mil habitantes. Apresentado pela AIVITER e pela maioria dos órgãos da mídia italiana (e, depois da brasileira), como um pacífico cidadão que ganhava a vida atendendo pacatamente sua loja, Sabbadin era, entretanto, filiado ao Movimento Sociale Italiano (MSI), um partido político de ultradireita.

De fato, o MSI foi filho da geração posterior ou contemporânea de Mussolini. Foi fundado em dezembro de 1946, por Giorgio Almirante e Pino Romualdi, que eram figuras importantes do Segundo Governo Fascista (da chamada “República de Salò”, que Mussolini instalou no Norte da Itália, sob proteção dos alemães), e por Arturo Michelini, um membro do fascismo original e um terrorista voluntário da Guerra Civil Espanhola. Foi o segundo homem depois de Mussolini, a partir de 1939.

Obviamente, que Sabbadin fosse fascista militante não justifica nenhuma agressão contra ele, nem mesmo qualquer punição jurídica, uma vez que o fascismo não é ilegal na Itália, da maneira em que é em muitos outros países (inclusive alguns que nunca sofreram o fascismo, como a Suécia). Entretanto, condenar seu assassinato é uma coisa, e vender uma falsa imagem de cidadão pacífico é outra diferente.

Há alguns meses, quando já o caso Battisti tinha passado por seu ápice, a mídia brasileira, imitando sua colega italiana, começou a difundir a versão de que era falso que Lino estivesse filiado ao MSI. A declaração tardia de seu filho, que, pelo jeito, não lembrou antes de fazer justifica à memória de seu pai, foi repetida ad nauseam. Em qualquer um dos libelos da imprensa vernácula, pode ver-se repetida esta afirmação, qualificada como calúnia dos seguidores de Battisti e coisas do gênero. Também é frequente atribuir o boato de que Sabbadin era membro do MSI à imprensa francesa, considerada liberal, cosmopolita e amiga de terroristas.

Entretanto, o diário Il Giornale de 15/01/2009 (30 anos após a morte do açougueiro, tempo suficiente para que os jornalistas investigassem se ele era ou não membro de um partido fascista), ao referir-se às vítimas de Battisti, menciona, além de Torregiani:

“…Antonio Santoro, guardia carceraria, Lino Sabbadin, macellaio iscritto al MSI [grifado meu], Andrea Campagna, agente della DIGOS”.

“Antonio Santoro, carcereiro, Lino Sabbadin, açogueiro filiado ao MSI [grifado meu], e Andrea Campagna, agente da DIGOS”.

Você pode ver a versão eletrônica dessa folha do jornal, aqui. O comentário está entre as linhas 10 e 12. Il Giornale é um diário muito prestigioso, que passou por várias experiências ideológicas e acabou se definindo como liberal de centro-direita, e oposto à chamada “tendência esquerdista chique”. Por outro lado, basta uma leitura de algumas matérias para advertir que é solidamente contrário a Battisti e partidário radical de sua condenação. Não teria nenhum motivo para caluniar Sabbadin.

Sabbadin poderia ter sido um militante burocrático, não violento, mas alguns fatos tornam esta suspeita improvável. No dia 16/12/78, dois homens entraram no açougue quando Lino estava fazendo contas junto com seu filho Adriano. Em nenhum comentário posterior da família, nem em informações da polícia ou da imprensa se menciona que os homens eram sulistas, possivelmente sicilianos. As execuções de sicilianos pobres (sejam ladrões ou simplesmente mendigos) são frequentes na Itália de todas as épocas, onde o racismo da classe média é superlativo.

Portanto, não sabemos se os assaltantes eram ou não “meridionali”, mas o jornalista Mario Immarisio, no Corriere della Sera (vide), conta que um deles mostrou uma pistola “e disse um palavrão em dialeto”, exigindo o dinheiro. Na Itália, falam-se dúzias de dialetos, mas quando se usa a palavra sem outra precisão se entende sempre um dialeto meridional. Lino recebe uma coronhada, mas sua resposta não é do mesmo estilo: puxa uma pistola e aplica um tiro mortal na testa de um dos bandidos Elio Grigoletto, de 23 anos. A crônica não disse se o morto era o mesmo que ameaçou antes, ou seu comparsa.

A coronhada foi uma forma brutal de “render” a vítima, um procedimento comum em culturas mais primitivas, como Sicília. Mas não era uma ameaça direta a sua vida. Se assim fosse, qualquer pessoa mirada com uma arma poderia considerar-se em risco incondicional, e estar autorizada a matar seu agressor. Comentários algo diluídos pela imprensa nos dias seguintes mostram que Sabbadin considerava a execução de Elio um ato normal contra um ladrão. Pena de morte rápida e pouco burocrática. O açougueiro parecia ter alta excelência no uso de armas curtas de grande impacto, pois acertar na testa de alguém, estando derrubado no chão não é para qualquer um.

O Ourives do Revólver de Ouro

Pierluigi Torregiani era um bem sucedido joalheiro, que costumava carregar armas, usar colete a prova de balas e andar com seguranças. O fato de portar arma não é significativo num país fortemente militarista e policialesco como a Itália, onde a lei permite registrar quase qualquer arma. Entretanto, as armas de defesa pessoal na época eram pistolas leves.

Segundo comentários de vários órgãos da imprensa, Torregiani usava pistolas americanas Smith & Wesson, que, tendo em conta a data, devem pertencer à série 59, do calibre 9×19 mm Parabellum. Esta arma foi adotada pela Marinha norte-americana, que a considerava muito mais mortífera que a SW 39 (uma das favoritas de James Bond).

Já o uso de colete não é frequente mesmo nos Estados Unidos, e não parece algo exigido por uma profissão tão pacífica como a de vendedor de jóias. Aliás, não se menciona que tivesse sido ameaçado por grupos violentos ou terroristas em épocas anteriores.

[A polícia e o MP de Milão jamais responderam perguntas por e-mail sobre os atos de violência nos quais Torregiani se envolveu. Portanto, todas as informações são jornalísticas, inclusive sobre as características das armas usadas.]

O fato decisivo anterior à morte de Pierluigi é um assalto sofrido por ele e um amigo, no restaurante Transatlantico, numa região nobre de Milão. O dia 22/01/79, Pierluigi estava com dois de seus filhos, Marisa e Alberto, e um amigo/cliente identificado apenas por M. Lo Cascio. (Não pude identificar esta pessoa através de amigos que moram na Itália.)

O ourives levava consigo jóias que tinha mostrado pouco antes num programa de TV. Em certo momento entram dois assaltantes que pedem a entrega de seus pertences. Segundo o Corriere dela Sera, ele e Lo Cascio reagem rapidamente, puxando armas do casaco. Posteriormente, a ocorrência policial divulgada não emitirá nenhuma opinião sobre o caso, já que não é comum que pessoas que portam armas só para defesa possam reagir exitosamente contra atacantes armados.

No relatório do Supremo Tribunal Federal, o relator Cézar Peluso afirma que somente a pessoa que estava com ele (deve referir-se a Lo Cascio, mas evidentemente não sabe o nome) abriu fogo. O juiz não diz de que fonte tirou essa notícia, ou se lhe foi revelada por algum arcanjo durante o sono, mas isso não aparece em nenhum jornal italiano nem francês, nem mesmo nos de ultradireita. Peluso pretende inocentar Pierluigi para fazer mais horrível ainda a imagem de Battisti. Em realidade, um trabalho sem graça o do coitado relator… porque o próprio filho da vítima afirmou que Battisti não estava entre os matadores.

De fato, os jornais Repubblica, Corriere e outros de tendência similar, que não teriam motivo para caluniar Torregiani, afirmam que ambos dispararam, e as balas do ourives, de alto calibre, atingiram mortalmente o siciliano Orazio Daidone, de 34 anos. Como se isso não bastasse, ambos os amigos também mataram um cliente do restaurante que jantava em outra mesa, Vincenzo Consoli. Uma terceira pessoa não identificada ficou ferida de maneira irreversível, segundo os jornalistas.

O relator do STF se confunde ao forjar sua descrição do fato, e decide não atribuir a ninguém esta outra morte. Mas, os jornais e boletins publicados tampouco se definem sobre o fato. Por acaso, Vincenzo Consoli também era siciliano.

Alguns jornais independentes da época acusaram Torregiani de fascista, “lojista pistoleiro ”e “jagunço da Bovisa”. Este apelido se refere ao bairro marginal da Bovisa, em Milão, do qual surgem muitos valentões armados dos niveles menos favorecidos da sociedade. (Vide)

Depois da dupla morte, Torregiani foi interrogado na delegacia, mas ninguém o acusou de atuar com excesso de defesa. De fato, qualquer policial sabe que o assaltante armado quer o butim da vítima, e não tem interesse na sua morte. [Nem a polícia de Mestre, a cujo distrito pertence Caltana, nem a de Milão, responderam nossos e-mails pedindo scans dos processos de ambos os incidentes, mesmo nos comprometendo a pagar o custo.] O site AIVITER descreve o fato como uma reação do assaltado, que gera um tiroteio que “conta mortos e feridos”. (Vide; coluna da direita.) Não diz quantos nem quem atingiu a quem.

Em 1984, após a reabertura do caso Battisti, a filha de Pierluigi, Marisa, afirma que Cesare era um dos assassinos, que estava à sua direita no momento dos disparos. (Vide o texto do jornal, linha 18ª desde abaixo). Confissão apressada demais! Na mesma época, seu irmão declarava que Battisti não estava no local e que a bala que o deixou aleijado foi disparada (desta vez com má pontaria) pelo pai. (Vide)

O jornalismo francês reconhece que, no começo, Alberto Torregiani negou que Battisti estivesse no local, e revelou que a bala que lhe atingira foi disparada por seu pai. Anos depois começou guardar silêncio sobre o assunto, e embora reconheça ainda hoje que não foi ferido por Battisti, suas declarações são mais lacônicas. Acredita-se que o estado italiano, talvez através do promotor Spataro, mantenha Alberto sob chantagem.

Depois do tiroteio no restaurante, Pierluigi não ficou quieto. Conseguiu uma foto do morto Orazio, provavelmente do necrotério judicial, e afixou na vitrine de sua loja, como uma declaração pouco ambígua de seu orgulho por matar um marginal sulista. O ato foi suficientemente nojento como para provocar a indignação de La Repubblica por sua extrema morbidez.

Torregiani e Sabbadin, mesmo sem se conhecer, são representantes de um renascimento no final dos anos 70, do movimento Maggioranza Silenziosa (MS), fundado em 1971 em Milão, e depois estendido a todo o Norte. O MS se diferenciava dos partidos fascistas pela não utilização do terrorismo, que era substituído por uma violência que eles chamavam “defensiva”. O grupo estimulava os cidadãos de classe média a andar armados e combater os comunistas, a esquerda não parlamentar, e seus potenciais aliados (pobres, mendigos, marginais). Sua idéia de legítima defesa poderia consistir em matar um batedor de carteira mesmo quando estava fugindo, ou atirar contra uma passeata que obstruía o trânsito, mas sempre com armas curtas.

Tecnicamente, o MS não foi um grupo terrorista; aliás, estava preocupado pelos stragi terroristas, porque podiam atingir a qualquer um da classe média. Seus principais apoios eram católicos, liberais de direita, conservadores e social-democratas. Sua independência do fascismo, porém, não era tão grande, como o prova a afirmação de Luciano Buonocore, um dos fundadores, que dizia que todo antimarxista era bem vindo. Incluso, o movimento se dissolveu em 1973, depois de matar um policial que parecia ser pró-comunista.

Foto dos Jornais da Época

Um Humilde Motorista

Dos quatro assassinatos executados pelos PAC, o mais sem sentido foi o do motorista da Divisione Investigazioni Generali e Operazioni Speciali, um órgão da Polícia do Estado (Nacional), Andrea Campagna (18/08/54 – 19/04/79), de origem calabresa.

Andrea foi acusado sem prova de ter torturado alguns detentos do setor de Milano do DIGOS. O autor foi Giuseppe Memeo, que utilizou a mesma arma que portava durante o assassinato de Torregiani, no qual participou.

Memeo já era conhecido pelos meios de repressão por ter participado numa passeata de esquerda em 12/05/77, na qual se celebrava o triunfo do divórcio num referendum. A polícia disparou aleivosamente, pois a concentração era pacífica; Giorgiana Masi (19 anos) foi morta e outros sete jovens foram feridos, sob um nutrido fogo aberto por Giovanni Santone, o chefe do comando móvel. Dois dias depois, o coletivo da Porta Romana lançou uma nova passeata, desta vez armada. Memeo foi fotografado mirando os policiais com uma P38. (Vide)

Memeo cumpriu uma pena aliviada pela delação, e atualmente trabalha como auxiliar num instituto de tratamento de AIDS. Mas, o caso de Campagna fica como uma violência gratuita, pelo menos, com base nas poucas informações que se possuem. [Minha tentativa de entrar em contato com seu irmão não deu certo, mas não foi culpa dele. Não consegui fazer contato.]