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O inacabamento do saber

Saber que o saber não está acabado, nos põe frente à possibilidade de virmos a conhecer, de virmos a saber alguma coisa. O que está aqui, o que quer que seja que está aqui, eu, vocês, qualquer coisa, é desconhecida, a menos que tenhamos aprendido a nos distanciar dela a força de acreditar em suposições, em ideias alheias incorporadas como se fossem próprias.

O mundo dos preconceitos, da falsa objetividade, das ideias erradas tidas como certas, se sobrepõe ao que existe. Há toda uma construção, ou muitas construções se interpondo como véus entre quem quer conhecer, e o que quer que venhamos a querer conhecer. Ideologias, crenças, falsas ideias sobre nós mesmos, os outros, o mundo. Tudo isso deve cessar, deve abrir passagem para que o conhecimento seja possível, para que de fato possamos vir a conhecer alguma coisa. Mas isto, que se diz com facilidade, da muito trabalho.

Tudo que é humano dá trabalho. Deu trabalho também incorporarmos todos esses véus que nos separam da realidade, que nos impedem de conhecer a verdade, saber o que está aqui. A pedagogia de Paulo Freire e a Terapia Comunitária Integrativa, como uma prática e uma forma de conhecer que se baseia como um dos seus pilares fundamentais, nesta pedagogia, são duas veredas que podem nos ajudar a saber quem somos, a saber o que está aqui. Estes dois caminhos, que na verdade são um só, nos permitem afastar o que se interpõe entre nós e a verdade.

De que forma, ou de que formas? Pondo em questão, criticando as ideias feitas, combatendo a síndrome da miséria psíquica, o “eu não posso,” “eu não valho nada”, afirmando a autoestima positiva da pessoa, a sua fé nela mesma, a confiança na sua capacidade, no seu valor. Recuperando a história de vida da pessoa e os seus laços com a sua cultura, com a matriz cultural que lhe é própria, a pessoa se reintegra a um estado de inocência, a um estado de paz, a um fluir que faz com que ela perceba que da mesma forma como foi capaz de vencer todas as dificuldades que se lhe apresentaram no passado, também é capaz de enfrentar este hoje em que há outras dificuldades.

A pessoa vai perdendo a sua sensação de impotência, de isolamento, de estranheza. Percebe que o mundo é feito de pessoas que, como ela, passam por situações muito parecidas, e que, na essência, a caminhada de cada ser humano se parece muito com a do demais. A pessoa recebe do coletivo, da rede da qual passa a fazer parte ou da qual se percebe fazendo parte, uma aprovação, uma aprovação essencial, uma permissão para ser como ela é. Ela não precisa deixar de ser quem ela é para ser aceita.

Este reencontro da pessoa com seu ser verdadeiro, com o ser que ela é, é um novo nascimento. Isto ocorre nas formações em TCI, nas rodas da TCI, quando a pessoa percebe que a sua caminhada a trouxe de volta para um estado original de confiança em si mesma e nos demais. A pessoa volta a saber que a sua vida faz sentido, um sentido que ela mesma cria, com liberdade e responsabilidade, saindo da condição de vítima para a de autora e gestora da sua autonomia.

Obviamente a pedagogia de Paulo Freire, como também a TCI, são possibilidades, ferramentas, não resolvem os problemas, não são soluções milagrosas. Abrem portas para dentro da pessoa, para a revalorização da vida, bem como abrem portas para o mundo em volta. Um mundo que vai sendo, assim como a pessoa vai sendo. Mas a caminhada exige sempre que cada um de nós assuma o desafio de se encontrar de fato, total e efetivamente, com seu ser profundo, com seu ser verdadeiro. As muletas podem até ser necessárias durante algum tempo, mas finalmente a pessoa tem que aprender a caminhar por ela mesma.

Não se trata de reprogramar as pessoas, mas sim de desprogramá-las, evidenciando as cadeias comportamentais, valorativas e de crenças, ideologias costumes, hábitos, etc. que oprimem o ser, deformando o seu existir. As rodas, a horizontalidade, a escuta de si e dos outros, abrem portas, reaproximam a pessoa do que está aqui. Oferecem a possibilidade de que a pessoa se re-encontre com esse estado primeiro de inocência de que falávamos, de confiança infantil, de crença na própria capacidade de construir seus sonhos, em redes, coletivamente, comunitariamente, mas também pessoalmente, individualmente.

Uma ferramenta valiosíssima nesta tarefa de re-encontro com o ser autêntico, são as perguntas. Elas estão presentes o tempo todo nestas duas formas de conhecimento, que na verdade é uma só. Perguntar abre portas, e importa mais a pergunta do que as respostas, no meu entender. Você se coloca outra vez diante de si mesmo como alguém que é capaz de re-escrever a sua história de vida. Inaugurar este instante, habitar o presente. O passado não pode ser o algoz do aqui e agora. Não nos podemos tornar escravos do que fomos, do que foi.

O que foi me permitiu chegar até aqui, e não o desprezo. Mas o aqui e agora me põe outra vez na situação de quem vê o mundo e a si mesmo por primeira vez. Re-inauguramos o assombro, a surpresa, a condição de quem está frente a frente com um desconhecido interior e exterior, sem medo, confiantes. Não há receitas, apenas partilhas de experiências, e a recuperação de uma noção de ser fluente que se apoia cada vez mais nas redes, nos vínculos com os demais, na crença de que a soma de fazeres coletivos pode ser e é libertadora.

Não poderia deixar de mencionar, mesmo que brevemente, uma outra forma de saber que tem me resultado valiosíssima nesta caminhada em direção ao conhecimento do que está aqui: a poesia e a literatura. Elas vem me permitindo desfazer cada vez mais essa sobrecarga de pensamento alheio que me entorpecia o viver. Desfazendo as deformações que se originam nessa falsa objetividade criada pela intelectualidade raciocinante, como diz Julio Cortázar.

Escrevo para ser

Só aqui posso ser eu mesmo. Só aqui sou eu mesmo, a pessoa que sou, o ser único que sou eu mesmo. E que lugar é este? Sou eu mesmo. O lugar em que sou, é eu mesmo. Tenho dito isto a respeito da Terapia Comunitária.

É preciso um centro fixo, um ponto de partida. Esse ponto de partida é você mesmo, você mesma. A pessoa que você é, a pessoa que cada um de nós é. Mas esta página é também o lugar onde sou eu mesmo. Lia das atrás um escrito de Ray Bradbury, em que dizia que todas as suas histórias são a sua própria história.

Ele é todas as suas histórias, cada uma das suas histórias. Não importava se fosse uma novela, uma crônica, um roteiro para cinema, o que fosse, era sempre a sua própria história. O escrito tem que ser seu, tem que ser você. Se você não for o que escreve, não será você quem escreve, será algo em você que quer escrever, mas não será você.

E se não for você, você estará se ausentando ao invés de se encontrar. E viver é se encontrar, é ir ao encontro de quem você é. Jorge Luis Borges, Fernando Pessoa, José Saramago, José Comblin, Julio Cortázar, conseguiram ser o que escreviam, Eram seus escritos. Esta é a façanha de um escritor, de uma escritora. Esta é a sua alegria, a sua peleja, a sua luta, a sua vitória.

Escribiendo

Algunas veces uno quisiera escribir algo, no tanto por tener algo que decir, sino más bien al contrario, por tener la necesidad de escuchar y escucharse. Mágico ritual este de escribir, que te pone en contacto contigo mismo, y con el mundo a tu alrededor.

Después de ya muchos años en esta tarea u oficio (que muchas veces es solamente un juego, pero un juego en serio, de jugar de verdad, jugar a encontrarte y a establecer puentes) vas sintiendo que de a poco, has ido construyendo tu propio mundo.

Vives en un mundo que vos mismo has creado. Esto es muy lindo. No tiene nada que ver con un aislamiento o autismo, más bien al contrario. El mundo es tuyo, pues de él te has ido apropiando de a poco.

Cada vez que ponías una frase en un cuaderno o libreta, fuera para escribir un relato do lo ocurrido en el día, una fantasía, un sueño, o bien para escribir un artículo o un poema, fuiste abriendo puertas hacia ti mismo y hacia afuera.

Como ya han pasado muchos años en este ejercicio, al mismo tiempo que has ido haciendo el mundo en que vives, pues otros y otras te han leído y te devuelven sus impresiones, también has ido disolviendo las falsas ideas sobre ti mismo y sobre el mundo.

Muchas veces uno suelta una frase tajante, y esto provoca algún lector, o al contrario, eres tenue, y alguien te provoca. Es un juego. No tienes por qué entrar en él si no quieres, puedes jugar y basta.

Mucha memoria se ha ido juntando con el pasar del tiempo. Recuerdas textos leídos en tu juventud, la revolución, el cambio social y de la conciencia. Han pasado muchos años, pero aunque este mundo actual te resulta en buena medida intransparente, tal vez lo sea porque ya no miras tanto desde el prejuicio y las ideas hechas, sino más bien desde una cierta simplificación de la mirada que a veces te muestra que las cosas no han cambiado tanto así.

Nos sigue costando convivir con las personas diferentes. No siempre podemos aprender con lo que nos contraría. Pero es un ejercicio de la vida, el intentar en las circunstancias que se presentan a cada momento, fluir.

Hoy veo mucha gente que escribe criticando, y creo que hay muchas cosas que criticar: la indiferencia del gobierno en cuanto a las condiciones de trabajo y remuneración de los profesores universitarios, por ejemplo. O bien el descuido de la municipalidad en cuanto al arreglo que haga transitables las veredas de la ciudad, sin riesgo de que uno tropiece y se rompa la cabeza.

Pero no basta la crítica. Es necesario cambiar en el sentido de irse haciendo más permeable a lo que hay, a lo que está. Yo creo que muchas veces le damos duro a lo que los demás deberían hacer, y no hacemos lo que está a nuestro alcance. Escribir te va poniendo en el centro del juego. De pronto no te podés esconder, no de los demás, sino de ti mismo. Has ido construyendo como que un lugar para tí, y ese lugar te va llevando. Te has ido liberando en la escritura, en la literatura.

Conocerse

Es muy bueno tener un lugar adonde ir. Ese lugar puede ser una hoja. De hecho, para mí es una hoja, es esta hoja. Cuando me pongo a escribir, el mundo empieza a ordenarse. El mundo interno y externo. Es como si cada cosa fuera estando en su lugar, o como si yo pudiera entonces ver que cada cosa está en su lugar, es como debe ser. Es una experiencia muy buena. Poder encontrarse, poder estar con uno mismo.

Creo que de algún modo como seres humanos, somos una eterna tensión entre lo que es y algo que nos parece que debería ser. Ese algo que nos parece que debería ser, ha sido implantado, se me ocurre. No es nuestro. Es un desasosiego, una intranqulidad, un cierto inconformismo. Creo que debe o puede haber algo de esto de un modo natural, pero en general me parece que es implantado, es un mecanismo de dominación.

Si no estoy conforme conmigo mismo, con la persona que soy, puede ser porque haya aprendido que tenía que ser perfecto, tenía que ser de otra manera, no así como soy. Ahora bien, yo soy así, que le vas a hacer. Si de pronto hay algo en mí que no me gusta, puedo ver por qué es que no me gusta. De pronto puedo darme cuenta de que esa disconformidad conmigo mismo no es mía, no me pertenece.

¿Qué puede haber de equivocado en mí, en vos o en quien sea? Si me parece que hay algo equivocado, es porque me estoy comparando con algún padrón que internalicé. Si te rechazo, si no te acepto como sos, es porque te estoy comparando con lo que no sos, con otra persona, con una abstracción. La sociedad en que vivimos vive de esa disconformidad.

La gente no agrediría si estuviera contenta consigo misma, si se aceptara como es. Aceptarme como soy involucra un contacto profundo con lo que soy, con este ser que respira, que siente, que piensa, que tiene una historia, proyectos, dolores, amores, sueños, pesadillas, todo esto que está aquí y que en este momento escribe estas cosas esperando que se creen puentes para el encuentro, lugares de reconocimiento recíproco.

Quem sou

Pode haver uma alegria maior do que sabermos quem somos? De eu saber quem eu sou? Para mim, não há, e não creio que possa existir uma alegria maior. Nestes dias passados, nos dias passados com a turma de terapeutas comunitárias e comunitários em formação em Lagoa Seca, e hoje, quando estive com colegas da Abratecom e do MISC-PB em Jacumã, nos preparativos para a escolha do lugar onde será o congresso da Terapia Comunitária Integrativa em 2013, tive outra vez esta certeza.

A minha certeza vai e vem, como tudo em minha vida. Vai e vem, talvez tenha sido esta a minha sina. Talvez seja esta a minha sina. Vai e vem. Sou um escritor. Achei que fosse outras coisas, Pintor, sei lá. Sociólogo. Mas por que um sociólogo não pode também ser um escritor? Ou por que um escritor não pode ser também sociólogo? Poeta. E o que é um poeta, a não ser um escritor, alguém que traz a vida, a beleza do mundo, o instante, a fugacidade do presente, para o papel?

Enquanto escrevo estas coisas, vem um alivio no peito. Nada melhor do que saber quem eu sou, do que saber quem a gente é. Sou outras coisas, também. Ninguém é uma única coisa. Temos papéis sociais. Mas ser, o que se diz ser, somos uma coisa só. Nestes dias em Lagoa Seca, me dei conta disto. Soube disto sem margem de dúvidas. E isto já é dizer bastante, pois as dúvidas são uma companhia constante. Sabermos alguma coisa com certeza, traz clareza para a nossa vida. Me dei conta de que trago a vida para o papel. Isto me faz bem, e faz bem a quem lê.

As pessoas se veem nos meus escritos, e eu me leio na leitura que as pessoas fazem de si e de mim, da vida, de tudo, nos meus escritos, e na vida que se escreve a toda hora, em todo momento e lugar. Nunca tinha colhido tantos ecos profundos em tão pouco tempo. Seria uma mania pelo sucesso? Há algo de errado em ser feliz, em se alegrar? E se esta alegria nossa tece laços de união entre as pessoas, e se esta alegria nossa, esta alegria minha, tem muito de ti, de mim, de nós, de todo mundo? O que há de errado em ser feliz?

Muitas vezes nestes dias em Lagoa Seca, pensava, por quê não estava com a turma nas vivências, nas rodas. E por que não estava? Porque estava rodando nesta outra roda, nesta roda que roda enquanto lês. É a tua própria roda, é a minha roda. É a roda da vida. Ao longo da minha vida, li e escrevi bastante. Mas as palavras que tem vindo nestes dias, me dão a certeza de que houve um nascimento, um re-conhecimento. Agora sei quem sou.

Sou um escritor. E ser um escritor não me obriga a publicar livros, ou a esperar ser um sucesso de vendas. Pode haver outro sucesso, e há. O de se ver refletido nos leitores e leitoras. Isto é um sucesso. O de ir se construindo coletivamente com uma turma que vai em busca de si mesma. Agradeço às pessoas que tenho ouvido nas rodas em Lagoa Seca, lembro delas, sei seus nomes. E hoje em Jacumã, e pela internet, via e-mail.

Nessas palavras das leitoras e leitores, tenho ido me re-conhecendo. Do mesmo modo que fui me re-encontrando nos livros que li ao longo da minha vida. Poderia continuar escrevendo. Escreveria até a noite passar. Até a luz do sol raiar. Escreveria até o mundo ser mais mundo. Até a humanidade ser mais humana. Escreveria agradecendo a cada escritora e escritor que me acolheu ao longo da minha vida. Não foram poucas nem poucos. Aos poucos, umas e outros foram abrindo um espaço para que eu me reconhecesse.

E as palavras começam a querer dizer nomes. Hermann Hesse. Anaïs Nin. John Lennon. Paul Mc Cartney. Julio Cortázar. Fernando Pessoa, Graciliano Ramos. Juana de Ibarbourou. Gabriela Mistral. Sor Juana Inés de la Cruz. A lista seria infinita. Infinita na escala deste que escreve. Swami Vijoyananda. José Saramago. Tantos nomes. Todos os nomes. Jorge Luis Borges. Iria pondo os nomes e iria indo aos lugares onde me levaram esses relatos, esses livros. Arthur Clarke, A cidade e as estrelas.

Ray Bradbury, Crônicas Marcianas. Agora a noite vai entrando dentro dela mesma, e em algum lugar as estrelas devem ter já começado a brilhar, lá no alto. Pode haver nuvens, mas elas brilham sempre, lá no alto, em algum lugar. A gente escreve, mas até as palavras tem o seu tempo de se guardar. Ou sobre tudo, as palavras sabem o tempo de falar. Falam e calam, ao seu tempo. É o tempo: tempo de escrever, mesmo em silêncio, mesmo caladamente. Tudo escreve.

Recomeço

Esta manhã pensei que poderia ser uma experiência interessante, pensar que eu não devia nada a ninguém, nem nada a mim mesmo, que estava zerado, quanto a dívidas. Veio uma paz muito grande. Foi um instante fugaz, não lembro se foi em uma loja onde fui comprar lençóis com a minha esposa, ou em algum dos trajetos percorridos.

O caso é que, pensei, se não devo nada, nem aos outros e nem a mim mesmo, estou em paz. Veio, como digo, uma alegria muito grande. Mas veio também um vazio. E o vazio foi como uma porta, uma libertação. Se não tenho dívidas, se não devo nada e se ninguém tampouco nada me deve, tudo está como deveria ser.

Não há uma rede de cobranças e nem de exigências de mim para com os outros ou de mim para comigo mesmo, e nem tampouco dos outros com relação à mim. Zerado. Estou zerado, pensei. Acho que este exercício abre uma possibilidade. Não é que, de verdade, eu não deva nada.

Pode até ser que deva. Mas me permito pensar, por um momento, que não devo nada e que ninguém me deve. Que o mundo foi resgatado do comércio e do mercantilismo, do devo e me deves. Não devo e nem me deves. Não é melhor assim? Ao menos como exercício, como uma possibilidade.

Pensei nas pessoas todas que amo, os seres que moram no meu coração, as pessoas queridas das redes que constituem a minha vida. Durante muito tempo pensei que devia a eles, a estes seres sem os quais não concebo a minha vida. Mas isto me penalizava.

Me fazia sentir em falta, permanentemente. Eu não lhes devo nada, e nem me devem. Os amo, as amo, mas isto não estabelece obrigações de parte a parte. É gratuito. Quando fiz este exercício, de manhã, e agora que escrevo, vem uma sensação como de começo.

Uma limpeza interior. Um espaço dentro de mim. Há uma possibilidade. Não necessito das cobranças interiores, de mim para comigo mesmo. Dispenso o cobrador interno, ao menos neste momento. Quem sabe possa vir a dispensá-lo definitivamente, mas por enquanto, penso que, agora, neste instante, não devo nada. Nem a você, nem a mim, nem a ninguém.

Estou zerado. Há uma possibilidade. Sinto o recomeço da vida. Um nascimento. A minha infância. O tempo primeiro, o tempo primordial. Recomeço.

Montagem

São tantas as coisas que acontecem e que a gente gostaria de registrar para que não se percam! Necessariamente, temos que escolher algumas, uma vez que não se pode escrever sobre todas as coisas. Como que não se pode escrever sobre todas as coisas? Pode-se escrever sobre todas as coisas, sim.

O que queria registrar agora, afora este fato fundamental da escolha, das escolhas, das decisões, é que quando quero relatar o que ocorreu ontem, tenho que fazer uma seleção. Se quiser relatar a reunião em família num barzinho no Bessa, por exemplo, vou ter que dizer algumas coisas e calar outras.

Toda escolha faz parte de um processo de decisão, não é verdade? Bom, até aqui, nada de novo. Todos estes arrodeios, como se diz aqui na Paraíba, para dizer que no meio a uma conversa na ponta da mesa, com um dos meus concunhados e um outro parente um pouco distante, reparei de repente, em uma bela jovem sentada na mesa ao lado, também na ponta da mesa.

Pernas cruzadas, ar displicente, envolvida também em alguma conversa. A atração que esta contemplação despertou em mim, ativou as minhas energias. Não pude deixar de reparar como o belo é sempre o que me conecta. Passei a olhar para a jovem mulher várias vezes, sem deixar de prestar atenção também às outras conversas na minha mesa, ao ambiente ao redor, à noite enluarada, aos pensamentos que inevitavelmente ocorrem o tempo todo.

Ri muito com as palhaçadas deste meu concunhado que estava bem na minha frente, a conversar com o outro parente à minha direita. Lembrava (ou lembro agora, não sei) das coincidências de ter lido um livro ate há pouco desconhecido para mim, de Julio Cortázar: Diario de Andrés Fava, publicado em 1986, após a morte do escritor argentino, e as ocorrências do dia a dia.

Lia no livro de Cortázar, sobre as lembranças dele quando menino, de se esconder embaixo dos lençóis. E sobre o que nos ocorre quando viajamos, que mergulhamos em ambientes e espaços desconhecidos ou pouco ou nada familiares. As coincidências iam criando para mim um espaço de acolhimento. O livro de Cortázar e a minha vida, entrelaçados.

Esse livro está me mostrando um Cortázar ainda mais próximo, ainda mais íntimo, se se pode dizer assim. O livro está aqui do meu lado, bem pertinho. Não deixo de me admirar profundamente como alguém que não conheci, me seja tão idêntico.

Temos que libertar a linguagem, chegar até ela, diz Cortázar neste livro que trouxe de uma viagem recente a Brasília, a visitar a minha família de lá. E neste domingo chuvoso em que tudo parece estar te trazendo mais para dentro, parece ser uma boa opção, a de retomar essa viagem.