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Nem Vitor Nuzzi decifrou o ‘enigma Vandré’, nem a esfinge o devorou.

Desde 1985 Vitor Nuzzi se interessava pela trajetória do cantor e compositor Geraldo  Vandré, o principal expoente da resistência musical à ditadura militar durante os anos 60 (na década seguinte, tal papel seria desempenhado por Chico Buarque). Segundanista de Jornalismo, descobriu em 1985 o telefone do artista e disse estar querendo conversar com ele sobre um trabalho para a faculdade. 

Foi recebido no apartamento que Vandré ainda possui na rua Martins Fontes, próximo ao prédio que durante muitas décadas sediou o jornal O Estado de S. Paulo, na capital paulista. A conversa foi cordial, mas breve.

Quando Vandré se tornou septuagenário, em setembro de 2005, Nuzzi  temeu que ele mergulhasse cada vez mais no esquecimento; decidiu, então, assumir como sua a tarefa de apresentá-lo às novas gerações.

Foi um trabalho longo e abrangente como bem poucas biografias brasileiras. Entrevistou mais de 100 pessoas (inclusive esta que vos escreve), garimpou informações em 51 livros e 29 jornais/revistas. Com isto, pôde reconstituir nos mais ínfimos detalhes a história do artista.

Cheguei, em tempos idos, a indagar-lhe o que faria com tudo isto, já que Vandré dificilmente daria aval para a publicação e as biografias não-autorizadas eram um risco que as editoras não queriam assumir depois de Roberto Carlos impugnar judicialmente uma que contou verdades indigestas a seu respeito. Nuzzi disse que iria tocando seu trabalho, deixando para o final a escolha de uma linha de ação. Tinha esperança de que a liberdade de opinião e de expressão acabassem prevalecendo.

Nuzzi: algumas dúvidas subsistiram.

Acabou pagando 100 exemplares do seu bolso e distribuindo-o aos amigos, em maio de 2015. Um mês depois, contudo, o Supremo Tribunal Federal  fulminou por 9×0 a censura que figuras públicas queriam impor a quem fizesse abordagens independentes sobre elas, ao invés dos textos expurgados e bajulatórios que os Roberto Carlos da vida preferem ler.

E a odisseia de Nuzzi, depois dos mesmos 10 anos que durou a descrita por Homero, teve final feliz, com o lançamento, no final do ano, de Geraldo Vandré: uma canção interrompida (Karup, 2015, 352 p.)

É um trabalho de fôlego e muito bem escrito; tem qualidade superior, na minha opinião, à das obras congêneres de biógrafos famosos como Fernando Moraes e Rui Castro. Quem não acompanhou a trajetória de Vandré, certamente se deslumbrará. 

E mesmo os contemporâneos de sua trajetória ficarão conhecendo muita coisa nova. Recomendo enfaticamente, ainda que o autor tenha feito a ressalva de que “vão continuar misteriosos” muitos pontos obscuros acerca do exílio e comportamento posterior de Vandré.

“Ele foi um rei, e brincou com a sorte“…

Acredito, contudo, que seria impossível, mesmo com o extremo profissionalismo e detalhismo de Nuzzi (a ponto de distribuir, junto com A canção interrompida, um relato mimeografado sobre as crônicas que Vandré escreveu durante alguns meses para um jornal de Campinas, certamente porque não deu tempo para acrescentar este capítulo ao livro), decifrar todos os enigmas da vida de quem insiste até hoje em permanecer enigmático. 

Até porque Nuzzi, nascido em 1964, escreveu sobre muitas coisas de que só tomou conhecimento a posteriori. Talvez não haja, p. ex., conseguido consultar os números antigos mais cruciais do jornal Folha da Tarde, que foi um veículo simpático à esquerda até que, como um porta-voz dos patrões admitiu há cinco anos, sua linha foi diametralmente alterada em 1969, tendo a direção sido entregue “a jornalistas entusiasmados com a linha dura militar” (vários deles eram policiais)”, como “uma reação da empresa à atuação clandestina, na Redação, de militantes da ALN”. 

Mas, foi nesse jornal que já não existe com tal nome (teve como sucessor o Agora São Paulo) e cuja memória é geralmente identificada com o impopular papel desempenhado a partir de 1969, que acompanhei, em 1967 e 1968, episódios como o da vitória da banal Sabiá no III Festival Internacional da Canção da Rede Globo, quando a ridícula decisão de júri provocou a maior vaia da história dos festivais de MPB. 

…”Hoje ele é nada, e retrata a morte”.

E foi na Folha da Tarde que tomei então conhecimento, num artigo de autoria do grande radialista Walter Silva (o Pica-Pau, falecido em 1999) desta informação abaixo, que eu aproveitaria numa longa reportagem escrita para a revista Especial em 1980:

Walter Silva ainda foi responsável por ter deixado um gravador ligado na sala do júri do III Festival Internacional da Canção, em 1968, no Maracanãzinho, no Rio, e depois denunciar a impostura na edição de 2ª feira do jornal paulista Folha da Tarde, provando que o presidente do júri, Donatelo Grieco, pressionara seus colegas para que não premiassem músicas que fazem propaganda da guerrilha. Este alegava que, caso contrário, haveria retaliações da ditadura. Era uma referência à música Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores (ou, simplesmente Caminhando, de Geraldo Vandré.

Nuzzi obteve a confirmação de que houve mesmo pressão dos militares sobre os organizadores do festival, mas publica também declarações dos membros do júri negando terem sido pressionados. Cabe uma pergunta: pessoas famosas admitiriam que lhes faltou coragem para premiar a canção política mais importante da História brasileira, ignorando o clamor do público, como se fossem estetas numa torre de marfim? 

Walter Silva denunciou: foi mesmo marmelada!

Por toda a convivência pessoal e profissional que já tive com essa gente, eu diria que afinaram e hoje tentam salvar suas imagens. Se há algo que o jornalismo me ensinou, foi a nunca dar 100% de crédito a entrevistado nenhum.

Também é inverossímil ao extremo que os responsáveis pelo FIC, com a espinha flexível que era marca registrada dos profissionais da Globo nos anos de chumbo, tivessem ousado guardarem para si as ameaças dos fardados, torcendo para que, espontaneamente, o júri não premiasse nem a Caminhando, nem a América, América, de César Roldão Vieira (outra que a caserna impugnara). Fala sério…

Lamentavelmente, tive em mãos esse recorte da Folha da Tarde há 35 anos, mas não o possuo mais. Se armazenasse tudo que citei nos meus textos, precisaria de um quarto só para isso.

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SEQUESTRADO NO AEROPORTO  E INTERNADO 

POR 58 DIAS NUMA CLÍNICA CARIOCA. PARA QUÊ?

Quanto ao comportamento esquisito e errático de Vandré desde que voltou do exílio em 1973, todas as informações que Nuzzi levantou são conclusivas quanto ao fato de que Vandré não foi torturado antes de deixar o Brasil e dificilmente o terá sido na volta negociada para o País.

Tão aguardada, tão frustrante.

Estava em más condições psicológicas e com a saúde debilitada nos últimos tempos de exílio. Foi sequestrado discretamente pela ditadura no aeroporto e, um mês depois, a Globo o exibiu no Jornal Nacional como se estivesse desembarcando naquele instante.

Parece ter ficado 58 dias (antes e depois da entrevista ao JN) recebendo tratamento psiquiátrico. E, ao revê-lo em 1980 (estivera com ele em junho de 1968, quando ainda fazia correções na letra da Caminhando), papeamos durante horas no apê da rua Martin Fontes. Eis a impressão que me causou:

Reparei que ele continuava lúcido, ao contrário das versões de que teria ficado xarope por causa das torturas. Mas, perdera a concisão e clareza. Seus raciocínios faziam sentido, mas davam voltas e voltas até chegarem ao ponto. Para entender a lógica do que ele dizia, eu precisava ficar prestando enorme atenção. Era exaustivo.

O mais importante que ele disse: estaria na mira de organizações de extrema-direita, inconformadas com o gradual abrandamento do regime.

A censura finalmente liberara Caminhando, que fazia sucesso na voz de Simone. Vandré explicou que tinha de passar-se por louco pois, se ele tentasse voltar à tona junto com a música, seria assassinado.

Entrevista ao Globo News deixou os admiradores perplexos

Ou seja, ainda não estava tão aniquilado como o veríamos, com imenso pesar, naquela entrevista concedida em 2010 ao canal Globo News.

A menos que algum militar, algum médico ou algum enfermeiro abra o bico, jamais saberemos o que aconteceu com Vandré enquanto esteve internado (rigorosamente isolado dos demais pacientes) numa clínica do bairro de Botafogo, RJ. 

Reafirmo a convicção que formei após assistir àquele melancólico programa, de que ele foi submetido a uma lavagem cerebral, A terapeuta brasileira Adriana Tanese Nogueira, radicada nos EUA, considerou plausível:

É como se, de alguma forma, tivessem conseguido reprogramar o cantor de modo a manter sua aparente sanidade mas atuando em modo diferente

Celso Lungaretti sustenta a tese da lavagem cerebral, não em sentido amplo, mas estrito. Ela acontece quando se submete uma pessoa a uma condição de total dependência de seus carcereiros.

Adriana Tanese: mente reprogramada.

Estes controlam tudo o que a pessoa faz, desde o que e quando ela come e vai ao banheiro, até o sono e todos seus movimentos. Dá para imaginar o que isso significa? Estar totalmente à mercê do inimigo cruel?

Após um tempo assim, por instinto de sobrevivência e busca de sentido (para não ficar louca), a vítima passa do sentimento de pânico e abandono total àquele de buscar conivência com seus algozes. Se, além dos cuidados materiais pelos quais a vítima passa, são-lhe ministrados também cuidados psicológicos, tipo ensinar-lhe o que ela deve pensar e acreditar, temos um prato cheio para compreender a esquisita entrevista de Geraldo Vandré à Globo.

Já o perfil de Vandré que se depreende da enxurrada de depoimentos de pessoas que o conheceram melhor do que eu me fez perceber que era totalmente infundada a hipótese que levantei, de que ele haveria entrado (ou fingido estar) em parafuso por não estar suportando o fato de que seu comportamento diante do inimigo ficara bem abaixo da imagem que tinha de si mesmo.

Levei a sério demais a constatação de que, dos compositores engajados daquela época, ele era o único a se colocar, na 1ª pessoa, como personagem de suas letras. Todos os demais contavam histórias genéricas, tendo como heróis o morro, povo, os camponeses, os operários, Che Guevara, Zumbi, Tiradentes, etc.

Caetano também sofreu muito com o exílio

Em Aroeira, o narrador (Vandré) declara estar “escrevendo numa conta/ pra juntos a gente cobrar/ no dia que já vem vindo/ que este mundo vai mudar”. E alerta os marinheiros (os colonizadores portugueses) que está próxima “a volta do cipó de aroeira/ no lombo de quem mandou dar”.

Bonita é uma guarânia na qual um presumível guerrilheiro tenta explicar à sua amada que não a pode tomar naquele instante e (como poderá morrer seguindo o destino que escolheu) talvez ela só venha novamente a saber dele “se um dia encontrares alguém/ que te cante meus versos”.

Há outras. A mais explícita de todas, Terra plana, traz este desafio que o combatente lança a um militar: “Se um dia eu lhe enfrentar/ Não se assuste, capitão/ Só atiro pra matar/ E nunca maltrato não/ Na frente da minha mira/ Não há dor nem solidão/// E não faço por castigo/ Que a Deus cabe castigar/ E se não castiga ele/ Não quero eu o seu lugar/ Apenas atiro certo/ Na vida que é dirigida/ Pra minha vida atirar”.

A canção interrompida me fez cair a ficha: Vandré havia dado um duro danado para se tornar artista vitorioso e era exatamente isto que ele queria ser. Acreditava nos ideais da esquerda e era favorável à luta armada, mas nunca como causas às quais se pretendesse engajar como militante. Cansava de repetir que sua atuação não era partidária.

A sensibilidade de artista o levava a incluir tais fantasias em suas músicas, mas ele apenas se colocava imaginariamente no lugar dos revolucionários e dos guerrilheiros. Não queria ser uma coisa nem outra. 

Daí ter-lhe pesado tanto o fardo que passou a carregar em suas andanças de judeu errante pelo mundo: se formiga aguentaria, mas, cigarra, não estava preparado para tais rigores,  O exílio o desconstruiu antes mesmo de os militares o terem à sua mercê; e isto, certamente, lhes facilitou a tarefa de reprogramá-lo, como disse a Adriana. 

E lá se foi outra das fantasias que nos ajudavam a manter a sanidade durante aqueles anos terríveis! Ainda assim continuo lamentando —e muito!— que esse extraordinário artista tenha caído numa armadilha da História, acabando por ser destruído. 

Nunca haverá desculpa para os que fizeram desabar tamanha tempestade em cima de um músico, apenas por ele ter composto uma canção que expressou o sentimento de todo um povo. 

Como bem lembrou o Benito de Paula, “esse trapo, esse homem um dia foi um rei”.

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OS MELHORES POSTS DO “NÁUFRAGO” SOBRE O VANDRÉ (clique p/ abrir):

  1. DE COMO UM HOMEM PERDEU O SEU CAVALO E CONTINUOU ANDANDO
  2. VANDRÉ: DILACERANTE
  3. VANDRÉ: DE REI A TRAPO EM 58 DIAS
  4. AINDA SOBRE O ARTISTA MÍTICO QUE HABITA A MEMÓRIA DE SUA CANÇÃO
  5. ADRIANA TANESE NOGUEIRA: “UMA ANÁLISE DE VANDRÉ”
  6. A ÉPOCA DE OURO DA MPB 12, 34 e 5
  7. QUEM DEU SUMIÇO NO VÍDEO DO VANDRÉ, A DITADURA OU A TV RECORD?
  8. “TANTA VIDA PRA VIVER/ TANTA VIDA A SE ACABAR/ COM TANTO PRA SE FAZER/ COM TANTO PRA SE SALVAR”
  9. RARIDADE: VANDRÉ INTERPRETANDO A CANÇÃO QUE COMPÔS PARA GUEVARA.
  10. VEJA AQUI UM VÍDEO RARÍSSIMO DE VANDRÉ NO EXÍLIO

Sábado, na Bienal: o tributo de uma filha cujo pai foi submetido a tribunal revolucionário.

Quando Adriana Tanese Nogueira começou a escrever um livro sobre a corajosa ajuda que seu pai prestou à Vanguarda Popular Revolucionária no pior momento da ditadura militar, o preço que ele pagou por sua disposição sincera de contribuir para a resistência e como sua desdita afetou os entes queridos, era natural que me contatasse, pois os sites ultradireitistas me citavam como um dos três membros do tribunal revolucionário que julgou Antônio Silva Nogueira Filho, juntamente com Ladislas Dowbor e Carlos Alberto Soares de Freitas.
Era falso. Eu não chegara sequer a ser informado do episódio, que certamente foi encaminhado em nível de Comando Nacional, já que nunca veio à baila nas reuniões do Comando Estadual de São Paulo, do qual eu fazia parte.
Foi só em 2004 ou 2005 que, dando uma olhada no que aparecia quando teclava meu nome na busca do Google, fiquei sabendo que me imputavam tal papel.  E não estranhei, porque os Ternumas da vida também me davam como autor de um comunicado da VPR que jamais redigi –para minha irritação, pois não só era mentiroso, como pessimamente escrito, com erros que nem no ginásio eu cometia.
Expliquei à Adriana que a rede virtual fascista era abastecida com informações dos órgãos de repressão –os tais arquivos secretos que o governo nunca foi capaz de localizar. Evidentemente, os torturadores conservaram consigo boa parte dos registros emporcalhados de sangue de interrogatórios dos DOI-Codi’s, Dops, etc., utilizando-os depois para produzirem a interpretação inquisitorial da História.
E, como era mais cômodo para os torturados confirmarem as suposições dos torturadores quando se tratava de assunto de menor importância, alguém deve ter relacionado meu nome ao tal julgamento, ou por não saber quem realmente dele participou, ou porque não quisesse identificar os reais participantes.

Abri portas e indiquei caminhos para que a Adriana pudesse levar a bom termo sua empreitada, superando a dificuldade natural de tentar apurar, desde os EUA, algo que aconteceu aqui. E acompanhei, durante certo tempo, seu labor de ir escrevendo e tornando pública sua obra, capítulo por capítulo, num blogue que criou.especialmente para tal finalidade.
Depois, o Caso Battisti me absorveu tanto que perdi o hábito de visitar o blogue dela. Daí a minha agradável surpresa com o livro resultante, de 740 páginas, dividido em dois volumes: Acorda, amor (Editora Biblioteca 24 horas, 2014), que será lançado na Bienal Internacional do Livro amanhã (sábado, 30), entre 12 e 14 horas, no estande F698.
Como passei a vida inteira tentando melhorar minha carpintaria de textos, é sempre gratificante para mim ler obras com narrativa fluente e empolgante como a da Adriana, cuja formação psicanalítica ajuda muito a desenvolver o lado humano dos personagens. Infelizmente, muitos livros sobre os anos de chumbo são áridos e de difícil compreensão para os leigos, afugentando leitores.
Conheço bem demais as agruras e sofrimento das famílias dos que lutamos contra a ditadura, então este lado de Acorda, amor não me surpreendeu. Mas, a dramaticidade e o horror de certas situações deverá calar fundo em quem veio depois de nós e não está familiarizado com tais vias crucis.
Eremias: retalhado com 35 tiros.
Para mim, são lembranças dolorosas. Não gosto nem de pensar que meus saudosos pais foram despertados de madrugada por uma avalanche de bárbaros que, depois de virarem a casa do avesso, ainda tiveram a petulância de pedir que me aconselhassem a rendição, pois só com a ajuda deles eu escaparia com vida. Meu pai, homem que nunca gostou de correr riscos desnecessários, daquela vez não se conteve: “E é para ajudar meu filho que vocês estão aqui com toda essa artilharia pesada?”. Quase o levaram preso.
Assim como foi intimidado o pai do meu amigo e companheiro Eremias Delizoicov, retalhado com 35 balaços pelos gorilas da PE da Vila Militar, aos 18 anos de idade (vide aqui). Como a imprensa noticiara inicialmente a morte de outro militante –a repressão só conseguiu identificá-lo pelas digitais, a tal ponto o havia desfigurado!–, o pobre homem ansiava desesperadamente por ver o corpo e tirar dúvidas.
Até isto lhe foi negado; ameaçaram-no de prisão, se insistisse, Como consequência, o velho casal continuou alimentando por muito tempo a esperança de que o falecido fosse mesmo José Araujo Nobrega, e não seu amado filho. Duas vezes passei horas ouvindo pacientemente suas hipóteses fantasiosas, sem saber se seria melhor desmenti-las ou deixá-los sonhando que o Eremias estaria são e salvo no exterior.

UM EPISÓDIO CONSTRANGEDOR, MAS QUE DEVE SER CONHECIDO, POIS DEIXOU LIÇÕES VALIOSAS.

Então, o que mais me interessou no livro foi mesmo a parte referente ao tribunal revolucionário. Para não estragar o prazer dos possíveis leitores, evitarei antecipar o desfecho (podem continuar lendo sem receios…).
A lição de Rosa: “A verdade é revolucionária”.

Apenas informarei que Adriana, como eu, não vilifica quem cometeu erros em circunstâncias tão extremas. Como eu, ela ressalta a justeza da luta e tenta compreender quem foi zeloso demais ou traído pelos nervos.

Esforçávamo-nos  para manter a chama acesa apesar da extrema desigualdade de forças. Não havia semana em que não ficássemos sabendo da morte ou prisão (leia-se torturas bestiais) de companheiros próximos ou, mesmo distantes, igualmente estimados. As confissões arrancadas a ferro e fogo, bem como a faina incansável de espiões, faziam nossos melhores projetos ruírem como castelos de cartas. Por mais que tentássemos nos iludir, lá no fundo percebíamos que nos encaminhávamos para a derrota e, provavelmente, para a morte.
Neste contexto, aliado que manifestasse o desejo de sair da Organização era logo visto como um traidor em potencial. Se já não acreditava na causa, como conseguiria resistir às torturas? Se estaria descontatado, quanto tempo levaria para sua eventual prisão chegar ao conhecimento da O.? Quantos prejuízos ele poderia causar nesse intervalo, antes de as medidas defensivas começarem a ser tomadas?
Recuso-me a acreditar que qualquer um dos meus companheiros –aqueles seres humanos capazes de assumir riscos tão extremos em nome de ideais generosos e solidários!– raciocinasse, cinicamente, que “o Nogueira nada fez de errado, mas só ficaremos tranquilos quando ele se tornar um arquivo morto”.
Contudo, em meio à compreensível paranoia que grassava entre nós (espiões existiam sim, começando pelo cabo Anselmo), alguém deixou a imaginação correr solta e acabou tomando vagas suspeitas como provas irrefutáveis de que o Nogueira  estaria trocando de lado. E um tribunal revolucionário acabou sendo constituído.

Por último: o episódio encerra muitas lições valiosas para todos os que travam o bom combate, no sentido de que tais erros jamais sejam cometidos novamente. Então, mesmo sendo constrangedor para nós, deve ser encarado e discutido, sem medo do uso demagógico que os detratores da luta armada possam dele fazer.

Temos de ser melhores do que essa gente, guiando-nos pela afirmação lapidar de Rosa Luxemburgo: “A verdade é revolucionária”. O outro lado tudo faz para esconder seus esqueletos nos armários –e eles eram tantos, e foi tão terrível o martírio infligido a nossos companheiros! Cabe-nos mostrar que também nisto somos infinitamente superiores a eles, em termos morais.
Não há equivalência ou igualação possível entre a regra e a exceção. Nem motivo para escondermos debaixo do tapete o que ocorreu, mas gostaríamos que não tivesse ocorrido. Nenhuma luta de resistência à tirania é isenta de enganos e excessos, mas estes devem ser avaliados com pesos diferentes: os idealistas têm direito à compreensão, enquanto os déspotas e seus esbirros só merecem o opróbrio.
…nós, que queríamos preparar o terreno para a amizade, não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos. Mas vocês, quando chegar o tempo em que o homem seja amigo do homem, pensem em nós com um pouco de compreensão. (Brecht)

DEPOIMENTO DA AUTORA

“VOU ABRIR A MINHA VOZ E CONTAR MINHA VERDADE. NÃO QUERO MANTER ESCONDIDA UMA PARTE DE MIM” 
Um dia saiu um artigo sobre mim num jornal local [ela mora e trabalha nos EUA]. No final de minha apresentação, após citar as minhas diversas atividades, o jornalista deu algumas referências biográficas. Quando li o artigo meu coração descompassou. Foi citada uma frase que eu mesma escrevi: ‘Filha de mãe italiana imigrante e de pai brasileiro revolucionário’, acrescentada pela informação que meu pai pertencia ao grupo de Carlos Lamarca.
Adriana: nada do que se envergonhar.

Gelei. Sim, eu tinha dito isso, mas uma coisa é você comentar uma coisa dessas com alguém, outra é você ler suas palavras numa folha de jornal. Senti-me exposta. Fiquei com medo. Mas dissimulei comigo mesma. Estava acostumada a deixar passar, disfarçar, conviver com a história colocando-a de lado.

Ao longo daquele dia, pensamentos soltos atravessaram minha mente. Aquela era uma referência histórica, algo conhecido que explicitamente revelava a atividade política de meu pai no passado. No passado.
Mas será que era passado? Não na minha alma. O medo, que por tanto tempo dominou nossas vidas e que estava aparentemente esquecido e sonolento num canto, acordou. Apesar de ter tentado ‘não pensar’ o dia todo e ‘racionalizar’, passei a noite assustadíssima. Não consegui dormir e tive um pesadelo.
Eu vou contar essa história porque não quero viver sob o constrangimento da vergonha. Uma história que me provoca pesadelos quarenta anos depois é uma história que precisa ser contada. Quero regurgitar o que vivemos, devolver ao mundo o que ao mundo pertence. Não vou deixar essa experiência trancada dentro do peito, no cárcere da dúvida e do ridículo. Não vou ser cúmplice do sistema que demonizou os que contra ele resistiram, apesar do absurdo desequilíbrio de forças.
Vou contar essa história para levantar uma bandeira contra a avalanche massificadora da crença que sustenta que bom é quem sabe ‘se dar bem’. Bom é o individualista, o puxassaquista, o que encontrou um nicho em meio ao lixo cultural e moral no qual vivemos e venceu a vida por entorpecimento do cérebro e do coração. Não quero e não vou apoiar a crença que bom é o marqueteiro, o espertalhão, o flibusteiro. A isso se reduziu boa parte do ideal social do país. Não o meu. Nem hoje nem amanhã.

O Brasil está ainda tomado pela mentalidade promovida e fortalecida pela ditadura. Nela, os valores estão todos invertidos. Os que assumiram a resistência a um regime opressor são ‘terroristas’, os que massacraram corpos, amputaram braços e torturaram jovens e adultos, mulheres e homens são anistiados. E a impunidade reina soberana.
Vou abrir minha voz e cantar minha verdade. Não quero manter escondida uma parte de mim, minhas raízes, aquele meu começo que produziu tantas consequências importantes. Tantas coisas das quais tenho orgulho. Não vou respirar da núvem tóxica do esquecimento coletivo, tão infantil quanto míope. Não há nada do que se envergonhar, a não ser da crueldade cometida.

Para mim, que trabalho com humanização, não tem como deixar de trazer à luz as origens do meu interesse vital em humanizar o mundo. Não quero mais esconder quem sou, quem somos e por que somos o que somos. Porque é assim que tivemos que viver por todo esse tempo.
SERVIÇO
O QUE: lançamento do livro Acorda, amor (Desaventuras de uma família e de seu país)
QUANDO: sábado, 30 de agosto de 2014
HORÁRIO: das 12 às 14 horas
ONDE: estande F698 da Bienal Internacional do Livro de São Paulo 
QUEM: Adriana Tanese Nogueira, autora (estará presente Celso Lungaretti, veterano da luta armada)
LANÇAMENTO COMPLEMENTAR: livro infantil O flamingo e os pombos
MARCAÇÃO DE ENTREVISTAS / MAIS INFORMAÇÕES: adrianatns@hotmail.com / naufrago-da-utopia@uol.com.br