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Urbi et Orbi, o Papa: não nos esqueçamos de quem bate à nossa porta

Por Raimundo de Lima

Hoje como há dois mil anos Jesus, a luz verdadeira, vem a um mundo achacado de indiferença que não O acolhe; antes, rejeita-O como acontece a muitos estrangeiros, ou ignora-O como fazemos nós muitas vezes com os pobres. Hoje não nos esqueçamos dos numerosos deslocados e refugiados que batem à nossa porta: disse o Papa na tradicional Mensagem de Natal e Bênção Urbi et Orbi. Francisco ressaltou que vivemos uma carestia de paz e exortou a não se usar o alimento como arma de guerra

Como os pastores de Belém, deixemo-nos envolver pela luz e saimos para ver o sinal que Deus nos deu. Vençamos o torpor do sono espiritual e as falsas imagens da festa que fazem esquecer Quem é o Festejado. Saiamos do tumulto que anestesia o coração induzindo-nos mais a preparar ornamentações e prendas do que a contemplar o Evento: o Filho de Deus nascido para nós. Foi a exortação do Papa na tradicional Mensagem de Natal e Bênção Urbi et Orbi, da Sacada Central da Basílica Vaticana, diante de milhares de fiéis e peregrinos presentes na Praça São Pedro, e acompanhada pelos meios de comunicação em mundovisão.

“Voltemo-nos para Belém, onde ressoa o primeiro choro do Príncipe da paz. Sim, porque Ele mesmo – Jesus – é a nossa paz: aquela paz que o mundo não se pode dar a si mesmo e Deus Pai concedeu-a à humanidade enviando o seu Filho ao mundo”, ressaltou o Santo Padre.

Na realidade, é com tristeza que devemos constatar como, enquanto nos é dado o Príncipe da paz, ventos de guerra continuam a soprar, gelados, sobre a humanidade. Se queremos que seja Natal, o Natal de Jesus e da paz, voltemos o olhar para Belém e fixemo-lo no rosto do Menino que nasceu para nós! E, naquele rostinho inocente, reconheçamos o das crianças que, em todas as partes do mundo, anseiam pela paz, continuou o Papa.

Ucrânia

O nosso olhar se encha com os rostos dos irmãos e irmãs ucranianos que vivem este Natal na escuridão, ao frio ou longe das suas casas, devido à destruição causada por dez meses de guerra. O Senhor nos torne disponíveis e prontos para gestos concretos de solidariedade a fim de ajudar todos os que sofrem, e ilumine as mentes de quantos têm o poder de fazer calar as armas e pôr termo imediato a esta guerra insensata!

O nosso tempo vive uma grave carestia de paz também noutras regiões, noutros teatros desta terceira guerra mundial.

Síria, Terra Santa, israelenses e palestinos

Pensamos na Síria, ainda martirizada por um conflito que passou para segundo plano, mas não terminou; e pensamos na Terra Santa, onde nos últimos meses aumentaram as violências e os confrontos, com mortos e feridos. Supliquemos ao Senhor para que lá, na terra que O viu nascer, retomem o diálogo e a aposta na confiança mútua entre israelenses e palestinos.

Oriente Médio

Jesus Menino ampare as comunidades cristãs que vivem em todo o Oriente Médio, para que se possa viver, em cada um daqueles países, a beleza da convivência fraterna entre pessoas que pertencem a crenças diferentes. De modo particular ajude o Líbano para que possa, finalmente, erguer-se com o apoio da Comunidade Internacional e com a força da fraternidade e da solidariedade.

Região do Sahel, Iêmen, Mianmar e Irã

A luz de Cristo ilumine a região do Sahel, onde a convivência pacífica entre povos e tradições é transtornada por confrontos e violências, continuou Francisco. “Encaminhe para uma trégua duradoura no Iêmen e para a reconciliação no Mianmar e no Irã, para que cesse completamente o derramamento de sangue”.

Continente Americano

E, no continente americano, frisou o Pontífice, “inspire as autoridades políticas e todas as pessoas de boa vontade a trabalharem para pacificar as tensões políticas e sociais que afetam vários países; penso de modo particular na população haitiana, que está a sofrer há tanto tempo”.

O Santo Padre lembrou que a guerra na Ucrânia agravou ainda mais a situação, deixando populações inteiras em risco de carestia, especialmente no Afeganistão e nos países do Chifre de África. “Toda a guerra – bem o sabemos – provoca fome e serve-se do próprio alimento como arma, ao impedir a sua distribuição às populações já atribuladas. Neste dia, aprendendo com o Príncipe da paz, empenhemo-nos todos – a começar pelos que têm responsabilidades políticas – para que o alimento seja só instrumento de paz”, exortou ainda Francisco, que concuiu em seguida:

Queridos irmãos e irmãs, hoje como há dois mil anos Jesus, a luz verdadeira, vem a um mundo achacado de indiferença – uma doença feia -, indiferença que não O acolhe (cf. Jo 1, 11); antes, rejeita-O como acontece a muitos estrangeiros, ou ignora-O como fazemos nós muitas vezes com os pobres. Hoje não nos esqueçamos dos numerosos deslocados e refugiados que batem à nossa porta à procura de conforto, calor e alimento. Não nos esqueçamos dos marginalizados, das pessoas sós, dos órfãos e dos idosos que correm o risco de acabar descartados, dos presos que olhamos apenas sob o prisma dos seus erros e não como seres humanos.

Fonte: Vatican News

(25/12/2022)

Comunidade, corpus políticos, em diálogo à luz do Movimento de Jesus

Pretendo nestas breves linhas, desenvolver algumas experiências e reflexões com a finalidade de contribuir para o debate e a ação inspirada pela XI Semana Teológica Pe. José Comblin.

Para começar, direi que o conceito de comunidade têm uma ressonância muito forte na minha experiência de vida. Desde bem cedo aprendi que são os trabalhos em comum o que constrói a unidade entre as pessoas. Aquilo que fazemos cooperando para um bem comum. Podem ser tarefas domésticas, atividades educacionais. Aquilo que nos faz saber de maneira concreta e direta, que precisamos de outras pessoas para ser felizes, para sobreviver, para crescer, para o que for.

Muitos anos depois destas primeiras lições de vida, já aposentado do meu trabalho como docente na UFPB, vim para a Terapia Comunitária Integrativa, como uma atividade de extensão do Departamento de Enfermagem em Saúde Pública e Psiquiatria da UFPB no conjunto dos Ambulantes, em Mangabeira (João Pessoa, PB). Eu estava tentando desde fazia tempo, sair de uma depressão profunda. Estava difícil. Nessas jornadas de preparação e realização de rodas de TCI com pessoas bem pobres materialmente mas ricas em alegria e disposição de melhorar, fui vindo eu também à tona.

Lembro de uma canção daqueles tempos: “Quem disse que não somos nada, que não temos nada para oferecer, repare nossas mãos abertas trazendo as ofertas do nosso viver. Recebe Senhor…”

Participei do crescimento e expansão da TCI pelo Brasil, tanto na Paraíba como em outros estados (Mato Grosso) e também no exterior (Uruguay, Argentina, Bolívia).

Esta caminhada foi me trazendo de volta, e continua a fazê-lo. Recuperei uma sensação de que se pode agir em colaboração com secretarias municipais de saúde, movimentos sociais, universidades, gerando espaços de construção de vínculos solidários, reforço da autoestima e da capacidade resiliente, e sentimento de pertencimento.

Isto é comunidade. Me vejo nas histórias das demais pessoas, que se veem na minha própria história. Não tentamos nos homogeneizar nem pensar ou agir da mesma maneira. Antes ao contrário, aprendemos a conviver com as diferenças, tentando fazer do choque uma possibilidade de crescimento, em direção a uma cultura de justiça e paz.

Como se conecta esta ação cidadã com a ação cristã?

Posso dizer que a TCI é uma ação cristã, no sentido de que, como o Pe. José Comblin afirma, ela faz com que apareça a pessoa esquecida.

A pessoa fala de si, do que lhe tira o sono, as suas preocupações, e também das suas vitórias e conquistas.

Vamos perdendo sensações de vazio ou sem-sentido. O fatalismo cede espaço para a esperança. Saímos do imobilismo.

A atividade de TCI em Mangabeira que mencionei no início desta nota, ativou a auto-confiança das pessoas da comunidade, em conjunto com a ação do pessoal do Programa de Saúde da Família. As reuniões motivavam a dançar e cantar. Reclamar junto à prefeitura municipal a respeito da coleta do lixo.

Neste ano e meio já quase de confinamento e restrições ao contato direto, a TCI on line vêm sendo um espaço de potenciação da recuperação da identidade e do sentido de viver para muitas pessoas.

 

 

José Comblin

In memoriam (27-03-2011)

Escrever sobre José Comblin é mexer com algo que se tornou muito vivo na minha vida. Uma espiritualidade ancorada no social, uma busca de Deus além do intelecto, ou, melhor dizendo, com uma razão iluminada por uma atitude interior de amorosidade e solidariedade.

Encontrei em Comblin uma figura que parecia vinda de algum outro mundo. Uma pessoa profunda e simples. Parecia que uma luz irradiava da sua presença. Nisto lembrava muito de Dom Fragoso. Essa mesma áurea de uma pessoa profundamente humilde, embora possuísse vastíssimo conhecimento. Dom Fragoso e José Comblin.

Adalberto Barreto, outro teólogo da libertação. Não poderia deixar de juntá-los nesta evocação, uma vez que sinto que os três são como encarnações de um mesmo espírito. Uma prática concreta de partilhar saberes normalmente privatizados pelas classes mais favorecidas, com as pessoas mais pobres.

Uma partilha vinda de um sentimento de que todos necessitamos uns dos outros. Não há libertação isolada, de pequenos grupos. A humanidade é uma unidade. Posso dizer que no contato com estas pessoas, e com outras semelhantes no seu espírito de serviço e de transformação desde o amor que estende as mãos para um resgate solidário, fui me tendo de volta.

Pude ir saindo da minha depressão e das marcas de um isolamento em que me encontrava. Pude ir me vendo como rede, em comunidade. Este processo prossegue. A lembrança de Comblin e a minha prática no seio da Terapia Comunitária Integrativa criada por Adalberto Barreto, foram mudando a minha visão de mundo.

Fui me reconhecendo em uma humanidade pobre materialmente, mas rica em solidariedade e em sabedoria popular.

A pessoa vai se recuperando na medida em que se sente acolhida pelos seus semelhantes. Isto aconteceu comigo, não apenas no seio desta rede de base, solidária, que no entanto é o foco principal da minha recuperação e reconstrução constante como ser humano, como na vida diária, na medida em que foi se dissolvendo a barreira invisível mas muito efetiva da alienação que me separava de mim mesmo e dos meus semelhantes.

Fui recuperando um sentido de viver que se faz nas pequenas coisas, no dia a dia vivido com a admiração de quem se descobre maravilhado por estar vivo, por fazer parte desta maravilha que é a vida.

Foto: Pe. José Comblin

Identidades, pessoa, comunidade

Durante a reunião mais recente da Teologia Nordeste (grupos que organizam a XI Semana Teológica Pe. José Comblin), na escuta de mim mesmo e das pessoas que participaram, vieram algumas sensações e ideias que partilho aqui.

Acredito que boa parte da minha vida tenha sido uma teimosa tentativa por manter a minha própria identidade, frente a pressões que ameaçavam me apagar.

O que vou trazer aqui são algumas anotações desse processo de recuperação e preservação da minha própria identidade.

Descobrir que eu tenho uma família, que eu tinha sido amado, foi uma descoberta relativamente recente para mim.

Convivo ainda com marcas que me deixaram acontecimentos vivenciados na infância. Abuso. Impotência. Abandono.

Sensações com as quais tive e tenho que conviver para, diariamente, saber que tenho o direito de existir e ser feliz.

Estas experiências e a superação que me foi possível alcançar a partir da minha inserção na Terapia Comunitária Integrativa, constituem o eixo deste escrito.

Quando me tornei professor na Escola de Sociologia e Politica de São Paulo em 1984, tomei conhecimento, a través de um aluno, de um texto que mudou a minha vida.

Era o livro de Anaïs Nin, Em busca de um homem sensível. Mais especificamente o capítulo A nova mulher.

Descobri que eu podia ser a pessoa que sou.

Um outro texto que me marcou muito foi o livro de Allan Watts, Tabu. O que não deixa você saber quem você é.

Encontrei estímulo para prosseguir numa batalha para manter a minha própria identidade no âmbito acadêmico.

Descobri que a alienação não era algo que acontecesse a pessoas longe, desconhecidas. Tinha acontecido comigo também, em parte.

Comecei, ou melhor, prossegui no caminho de volta.

Arte, sociologia, cotidiano, fé, afetos.

Começava a me refazer por dentro.

Fui aposentado da UFPB e me integrei ativamente na rede da TCI. Aqui encontrei e encontro o florescimento dos meus sonhos de juventude.

Esta jornada é contínua.

Não se trata de uma atividade caritativa. Não fazemos a TCI para as pessoas, por sermos bonzinhos/as. Fazemo-la para nós mesmos/as, para sarar com as pessoas, comunitariamente.

Por que sarar?

Tenho relatado pormenorizadamente este processo no meu livro Um Terapeuta Comunitário em busca de si mesmo (2019)

A reunião mais recente preparatória da XI Semana Teológica Pe.José Comblin reviveu estas memórias.

Compreendi que faz sentido eu fazer parte deste coletivo.

Não consigo mais me dissociar. Aonde eu estou, procuro estar inteiro.

Durante este já quase um ano de confinamento provocado pela pandemia, fizemos rodas virtuais de TCI intensamente.

O processo de recuperação da minha identidade cresceu exponencialmente. Era muita gente por esse mundo afora na mesma caminhada.

O meu próprio encontro com Deus se tornou mais real. Longe de imposições. Personalizado.

Sem qualquer pretensão ou vaidade posso dizer que experimento a realidade daquelas palavras que nos recordam que quem procura acha.

Encontrei, encontro Deus no meu exercício cotidiano da vida.

A comunidade veio para mais perto. Veio para dentro de mim.

Muitas famílias se reconciliaram, reforçaram seus afetos, reencontraram a unidade neste quase ano de confinamento e convívio com uma morte próxima.

Já não há mais tempo para pensar que temos muito tempo.

Como em outros tempos, as circunstâncias mais uma vez me lembram que o tempo é agora. Um instante fugaz. A porta estreita.

 

 

 

Aspectos da obra de José Comblin

Não poderia escrever sobre alguns aspectos da obra de José Comblin de uma maneira teórica ou conceitual. Não que menospreze este tipo de reflexão, ao contrário. Ela é muito preciosa e necessária, mas tem o seu lugar.
Aqui prefiro, no entanto, apresentar alguns fragmentos do seu pensamento, colhidos em algumas das suas obras, de maneira a reter, para mim mesmo e para os leitores e leitoras, alguns traços dos que se me figuram mais originais, da obra deste ser tão singular, que deixou marcas indeléveis na minha existência.
Estas marcas ou traços, poderiam ser resumidos assim: A mensagem de Jesus é simples. O amor é o centro da vida. A vida é uma peregrinação. Todos e todas podem ser profetas, desde que se disponham a ser palavra de Deus.
A indistinção na obra de Comblin entre o sagrado e o cotidiano, é para mim talvez a tônica mais forte. Quebra a cisão entre o espiritual ou o religioso e a vida do dia a dia. A vida como tal, é obra de Deus, e se assim a vivermos, ela será e é, uma vida consagrada.
Não importa se a pessoa seja ordenada ou não, ou mesmo se pertença a esta ou àquela religião. Importa se vive a serviço do amor, que é Deus mesmo. E isto implica em viver mergulhados/as na cotidianidade da vida.
Rompe com a casta sacerdotal como monopolizadora do sagrado. Quebra com a privatização ou o exclusivismo do cristianismo como a única religião verdadeira. Restaura a sacralidade da vida da pessoa, como uma re-condução do ser para si mesmo, como uma ruptura do intelectualismo de uma casta ou estamento especializados, para harmonizar a vida na sua unidade de intuição, amor e razão ou consciência, e ação.
Obviamente, o que aqui destaco da obra de José Comblin, são aspectos que resultam significativos desde os meus próprios valores e desde a minha própria trajetória existencial e visão de mundo.
Outras pessoas, certamente, verão outras coisas. Algo que também creio que deva ficar bem claro, é que tenho a nítida impressão que Comblin diz muito mais do que nós somos capazes de ler. A sua palavra excede em muito o que está escrito.
A certeza que podemos ter, é que é um ser inspirado, e que essa inspiração nos oferece uma referência segura para que cada um, cada uma de nós, possa se encontrar consigo mesmo. Esse encontro conosco mesmos é o caminho de Jesus, o encontro da Jerusalém interior.
Longe de encontrarmos nos escritos de Comblin receitas ou verdades definitivas, o que neles podemos encontrar, sim, são alusões a uma verdade da qual fazemos parte, que nos contém, nos ilumina e nos guia.
Foto: Padre José Comblin

Que política?

Há uma política que não consiste em doutrinar os demais para que pensem como nós, nem para que acreditem no que nós acreditamos, ou ajam como nós achamos que se deva agir. Esta política é a política da pessoa, que se faz por presença, com o nosso estar no mundo.

O padre José Comblin falava da ação social cristã como uma ação de tipo pessoal: faz com que apareça a pessoa esquecida. Na Terapia Comunitária Integrativa tenho encontrado uma forma de praticar este modo de fazer política. A pessoa esquecida sou eu mesmo, que fui me perdendo pelo caminho, na tentativa por ser aceito, na expectativa de ter que agradar aos demais, ou ser perfeito. Hoje volto ao que é meu.

Os governos passam, os regimes mais ou menos autoritários, também passam. Fica a pessoa, com marcas mais ou menos fortes que lhe foram sendo impressas no decorrer da vida. Trabalhar as feridas, transformando-as em competência sanadora, incorporar a experiência adquirida e o conhecimento para viver de uma maneira feliz, é preciso. O sistema nos intoxica com pressões e informações excessivas acerca do que não podemos mudar; impõem-nos sensações de impotência e culpabilidade ou resignação. Tendemos a perder a nossa personalidade própria, adquirindo hábitos de pensar, agir e sentir alheios. Recuperar a identidade se impõe como uma tarefa imprescindível.

Desfrutar da vida não depende tanto do que temos materialmente, mas, sim, do que somos capazes de fazer com o que recebemos como herança. No espaço familiar, na rede de amizades, no contato cotidiano com outras pessoas, vai se desenvolvendo a nossa vida. Recuperar a criança que fomos, permite que possamos ter de volta a espontaneidade, a confiança e a alegria. A vida é até o último momento. Não podemos incorporar a noção de descarte que tratam de nos impor. Ficar velho é acreditar que agora não resta mais do que esperar a morte. Cabe recuperar a noção plena de que estamos aqui para sermos felizes. Esta possibilidade depende unicamente de nós mesmos.

Esperar e lutar pelo que dá certo: bebendo nas “correntezas” subterrâneas

“Tudo faço com amor

Se não fosse, não faria

Alimentos agradáveis

Que comemos todo dia

Presenteio, troco e vendo

Muita fartura, vou tendo

Partilho com alegria. ”

(Lita Bezerra)

No decorrer os últimos 30 dias, tive a graça de participar de três encontros memoráveis, do ponto de vista do que neles aprendi e pude compartilhar. Refiro-me ao Encontro realizado em São Lourenço da Mata – PE, promovido pelo MCP (Movimento das Comunidades Populares); o Encontro celebrativo da memória de Charles de Foucauld, organizado pelas respectivas Fraternidades, a cada 1º de dezembro, desta vez realizado em Várzea Nova, Santa Rita – PB; e o mais recente, organizado pela ASA – CENTRAC – SPM, em Itatuba – PB. A exemplo de tantas outras experiências similares, aí situo a fecundidade revolucionária das “Correntezas subterrâneas” (expressão utilizada por João Batista Magalhães, por José Comblin e outros protagonistas da Teologia da Enxada). Desta feita, com a participação de cerca de 40 militantes, vindos de onze municípios do Agreste: Aroeiras, Mogeiro, Ingá, Itatuba, Gurinhém, Fagundes, Puxinanã, Salgado de São Félix, Campina Grande, Conde (Jacumã), trataram de avaliar sua caminhada conjunta e de planejar suas atividades, para o próximo ano.

Na parte da manhã do dia 06/12, os participantes – mulheres e homens – foram convidados a fazerem uma visita a uma fecunda experiência de produção agroecológica desenvolvida por uma das figuras de referência dessas organizações, a agricultora e educadora Lita Bezerra, que também é poetisa, autora de cordéis, um dos quais intitulado “Mulheres do Semiárido e Sementes da Paixão”  

Em qualquer tempo, mas muito especialmente durante os períodos sombrios, as experiências desenvolvidas nessas “correntezas subterrâneas” seguem fazendo enorme diferença, por diversas razões:

Na parte da tarde, os trabalhos são retomados, Salão do belo edifício onde se desenrolou o Encontro. Madalena, membro da Coordenação do Projeto FOLOIA (Fórum de Lideranças do Agreste), componente da ASA, anuncia as atividades da tarde (não sem antes sublinhar a relevância do Feminismo como uma prática cotidiana, a ser assumida por todas e todos): nova apresentação dos participantes, inclusive dos recém-chegados; roda de testemunhos sobre o que se viu e se aprendeu na visita feita pela manhã, às experiências desenvolvidas por Lita Bezerra e familiares; uma reflexão problematizada proposta por Alder; uma suculenta merenda, no final da tarde; à noite, estava programada uma atividade cultural. E assim se fez.

A apresentação comportou, além do nome de cada membro da equipe e do seu município, a oferta de um símbolo ligado à sua região de onde vinham. E, ao som de uma conhecida canção de saudação (“Aroeiras, vem cá, vem saudar e participar…”), Amélia e Madalena, iam chamando a Equipe de cada município (em torno de quatro, por município, sempre tendo em consideração o equilíbrio de gênero – homens e mulheres). E assim após cada qual se apresentar, a equipe mostrava para a Assembleia o símbolo trazido, e depositava num recipiente, à frente de todos: uma expressiva variedade de sementes cultivadas e compartilhadas; frutas, fava, milho, macaxeira, arroz, algodão, etc., etc. 

Em seguida, na roda de conversas sobre o rico aprendizado experimentado, na parte da manhã, ouvimos as falas de várias pessoas, destacando, entre outros aspectos:

– O impacto da iniciativa, suscitando intensa emoção dos presentes, pelo alcance comunitário e pela criatividade da experiência visitada;

– A rememoração de vários mecanismos e estratégias de produção agroecológica, a exemplo do biodigestor, da importância da captação e armazenação da água de beber e da água de produzir utilizando-se inclusive, do reuso;

– O impacto da biodiversidade ali cultivada (há dezenas de espécies de plantas e flores ali cultivadas)

– O protagonismo comunitário e o denso aprendizado da experiência, considerando sobretudo seu enorme alcance social;

–  O forte significado pedagógico de aprender a criar e utilizar novas tecnologias de convivência com o semiárido;

– A consciência cidadã protagonizada, aprofundada e compartilhada, de modo crescente e multiplicativo, por outras comunidades…

Na fala de Alder, tratou-se, em primeiro lugar de realçar aspotencialidades transformadoras presentes, tanto na experiênciavisitada, quanto nas falas e relatos complementares, relativas asemelhantes experiências protagonizadas por vários dosparticipantes.

Em seguida, tratou-se de sublinhar a fecunda presença da Educação Popular, de Matriz Freireana, no cotidiano das experiências compartilhadas, fazendo questão de evidenciar os traços revolucionários contidos e cultivados nessas experiências moleculares, sem as quais não se sustentariam as iniciativas consideradas “macro”:

– Atentas ao que se passa nas águas de superfície, não se deixam seduzir por aparência ruidosas, compreendendo seu alcance extremamente provisório, por vezes lembrando ao efeito de cortinas de fumaça;

-Não temem ser chamadas de “micro-experiências” ou de”experiências moleculares”, que se vão firmando eespalhando, com muita confiança, com denso enraizamento no meiopopular no campo e nas periferias urbanas, e sem muita notoriedade.Destas experiências moleculares bem atestam inscrições tais como aque se acha no topo de uma grande cisterna – uma dentre outras -, no Sítio Juriti, a cinco quilômetros de Caruaru, onde se acha o Santuário das Comunidades: “Gente simples, morando em lugarespouco conhecidos, e fazendo coisas maravilhosas”;

– Diferentemente de alguns movimentos e organizações sociais que restringem suas ações apenas ao enfrentamento explícito e de grande monta, tantas vezes com resultados a quem dos esperados, as mico-experiências de alternatividade, sem deixarem de se fazer presentes também nas grandes manifestações de rua, preferem priorizar o trabalho de base contínuo, repartido organicamente entre seu compromisso organizativo, seu compromisso formativo e sua mobilização; 

– Ao contrário de uma avaliação ainda dominante, de que as micro-experiências não são capazes de responder aos “grandes” desafios colocados pelo Mercado e pelo Estado, essas organizações de base, chamadas de experiências moleculares, por sua vez, entendem que é preciso enxergar no “micro” a presença também do “macro”. Há, sim, fecundas sementes de macro-relações nas micro-experiências. Mais:  as macro-relações não terão lugar se não passarem pelo aprendizado, pelo acúmulo organizativo e formativo das micro-experiências. E a recíproca é verdadeira. As potencialidades das micro-relações carregam, já em si, manifestações do grande Projeto de uma nova sociedade. Para tais experiências, não adianta trabalhar-se a nova sociedade, apenas após a derrubada “do que aí está”. Já vimos este filme, e dele não podemos ter saudades…  Os traços da nova sociedade, protagonizada por novos homens e novas mulheres, ou se constroem desde já, nas micro-experiências, ou em vão se luta por uma nova sociedade, pois, como o tem mostrado a história recente e menos recente – e à saciedade, para quem tem olhos para ver – que, não sendo assim, a consequência certa é a reprodução de vícios terríveis da velha sociedade (caudilhismo, individualismo, personalismo, continuísmo, reedição de vícios ético-políticos, antes combatidos nas forças adversárias…).  

Eis uma notícia sucinta do vivido, com algumas provocações, convidando-nos a todos, para a retomada, em novo estilo, de nossos trabalhos de base, tanto em nossos compromissos organizativos, quanto em nossas tarefas formativas, quanto em nossa mobilização.

João Pessoa, 07 de dezembro de 2018.