Arquivo da categoria: Meio ambiente

Na linha de frente: violência contra defensores de direitos humanos no Brasil

A vida de defensores de direitos humanos corre, constantemente, um grande perigo. Dados detalhados sobre essa situação preocupante estão no estudo “Na Linha de Frente: violência contra defensores e defensoras de direitos humanos no Brasil”.

A pesquisa desenvolvida pelas organizações Justiça Global e Terra de Direitos registrou os casos de violência contra quem defende direitos no Brasil ao longo de todo o governo do ex-presidente da república Jair Bolsonaro (PL), 2019 a 2022.

Os dados alarmantes apontam 1171 casos de violência, sendo 169 assassinatos e 579 ameaças. Os dados mostram o acirramento de conflitos territoriais e ambientais no país, com casos registrados em todos os estados brasileiros.

O estudo considerou casos de violência contra defensoras e defensores de direitos humanos que aconteceram como forma de impedir a reivindicação e defesa de direitos. As violências foram categorizadas em oito tipos: ameaça, agressão física, assassinato, atentado, criminalização, deslegitimação, importunação sexual e suicídio. Foram considerados episódios de violência registrados em todo o território brasileiro.

Além disso, o levantamento considerou casos de violência individuais e contra coletivos, como por exemplo ataques contra povos indígenas e quilombolas.

Bruno Pereira, Dom Phillips, Dilma Ferreira, Fernando Araújo dos Santos, Paulo Paulino Guajajara são alguns dos 169 defensores de direitos humanos assassinados ao longo dos último 4 anos. A maior parte dos assassinatos foi provocada por arma de fogo (63,3%, se somadas as categorias tiro e múltiplos tiros).

Em 11 dos assassinatos, há referência à sinais de tortura encontrados no corpo da ou do defensor morto. No caso do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari (AM), em junho de 2022, ambos foram emboscados e mortos quando viajavam de barco pela região. Segundo as investigações, eles foram assassinados a tiro, queimados e enterrados. O crime teria sido motivado pelo trabalho desempenhado por Bruno na denúncia de pesca ilegal em território indígena.

Os dados do levantamento destacam que defensores indígenas foram alvos de grande parte das violências sofridas por defensores de direitos humanos:  346 casos, sendo 50 assassinatos e 172 ameaças. O quadriênio foi marcado pela adoção de uma política anti-indígena pelo governo federal e aumento da invasão e exploração dos territórios tradicionais pelo garimpo, desmatamento e agronegócio.

Para a socióloga e coordenadora de projetos da Justiça Global, Sandra Carvalho, os dados reforçam a necessidade de priorizar o Plano Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH).

“É urgente que o governo do presidente Lula assuma os compromissos acordados durante o governo de transição priorizando o PPDDH, e se comprometa a não medir esforços para fortalecer o programa com orçamento adequado, paridade entre estado e sociedade civil em seu Conselho Deliberativo e uma nova propositura legislativa que institua o marco legal da política pública de proteção”, afirmou.

Acesse o estudo clicando aqui.

Texto: global.org.br

Conquista do MST, IV Romaria pela Ecologia Integral, VI Abraço na Serra do Curral e Emergência Climática em MG

Conquista do MST, IV Romaria pela Ecologia Integral, VI Abraço na Serra do Curral e Emergência Climática em MG

Por frei Gilvander Moreira[1]

Ato Público de Declaração de Emergência Climática em MG, na represa de Vargem das Flores, em Contagem, MG, dia 05/06/23. Foto: Frei Gilvander Moreira

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) conquistou sentença judicial da Vara Agrária do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) garantindo a posse do Quilombo Campo Grande para 459 famílias que ocupam o latifúndio da ex-usina Ariadnópolis há 25 anos, no sul de MG, no município de Campo do Meio. Dia 23 de março de 2023, a juíza Janete Gomes Moreira, substituta da Vara Agrária TJMG, baixou sentença negando reintegração de posse ao espólio da ex-usina Ariadnópolis que reivindicava judicialmente o despejo do Acampamento Quilombo Campo Grande, composto por 459 famílias que se auto-organizam e subdividem-se em 12 Acampamentos, quais sejam: Acampamento Girassol, com 45 famílias; Acampamento Potreiro, com 63 famílias; Acampamento Fome Zero, com 30 famílias; Acampamento Resistência, com 43 famílias; Acampamento Tiradentes, com 27 famílias; Acampamento Rosa Luxemburgo, com 76 famílias; Acampamento Irmã Dorothy, com 13 famílias; Acampamento Chico Mendes, com 16 famílias; Acampamento Betinho, com 27 famílias; Acampamento Sidnei Dias, com 78 famílias; Acampamento Marreco-Vitória da Conquista, com 31 famílias e Acampamento Coloninha, com 13 famílias.

Na decisão a juíza fundamentou sua decisão justa, constitucional e sensata usando, dentre outros, os seguintes argumentos jurídicos: “Para obter a procedência de sua pretensão, cabe ao autor provar, nos termos do artigo 561 do Código de Processo Civil, (I) sua posse. Possuidor é aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade, conforme artigo 1.196 do Código Civil. Ou seja, é considerado possuidor aquele que tem, de fato, o exercício dos poderes de fruição, ou utilização, ou reivindicação ou disposição da coisa.” O espólio da ex-usina Ariadnópolis não comprovou ter posse.

Laudo Socioeconômico e Produtivo das Comunidades Rurais da Área da Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (CAPIA), desenvolvido pela Secretaria do Estado de Desenvolvimento Agrário (SEDA) (Id. 6437348032), concluiu que “as famílias organizadas pelo MST realizaram a primeira ocupação das áreas da antiga CAPIA no ano de 1998, o que restou demonstrado através de imagens de satélite de 2004 a 2018 o processo de ocupação das famílias nas áreas”. A requerente CAPIA não comprovou que exerceu a posse anterior sobre o imóvel objeto da Inicial que requeria reintegração de posse, sendo certo que a prova de domínio do bem é irrelevante para fins de proteção possessória, uma vez que não se discute o direito real de propriedade, mas apenas a existência de situação fática que configura a posse.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se manifestou em recurso sobre reintegração de posse: “Não basta ao autor da ação de reintegração de posse provar o domínio (ter escritura com registro em cartório e pagar tributos). Exige-se que demonstre a sua posse. Recurso não conhecido.”[2] São requisitos para a reintegração na posse a prova da posse anterior do requerente, perdida mediante esbulho; o pedido de reintegração condiciona-se à coexistência dos requisitos previstos na norma do artigo 561 do Código de Processo Civil (CPC).  As ações possessórias têm como objetivo discutir, tão somente, o direito de posse, sendo irrelevantes, portanto, alegações de direito de propriedade, conforme previsto na norma do §2º do artigo 1.210 do Código Civil.[3] Para o deferimento da liminar de reintegração de posse, se faz necessária a comprovação do preenchimento dos requisitos do art. 561 do CPC, quais sejam a posse anterior, o esbulho e sua data, que deverá ser inferior a ano e dia da propositura da ação possessória. Consubstanciando-se a demonstração da posse prévia em alegação de propriedade, deve ser indeferida a liminar possessória. Recurso desprovido.[4] Comprovado que o proprietário não exercia a posse do imóvel, inviável o manejo das ações possessórias para reaver o bem.[5]

Com a decisão acima, está pavimentado o caminho para que o presidente Lula, segundo a lei 4.132, decrete a desapropriação do latifúndio da ex-usina Ariadnópolis e destine definitivamente os quase 4.000 hectares de terra para a reforma agrária, o que vem sendo feito na marra nos últimos 25 anos. Viva o MST e a luta pela terra! O conflito de Terras no Quilombo Campo Grande em Campo do Meio, região sul de Minas Gerais perdura por 25 anos, tendo 459 famílias acampadas e cerca de 2.000 pessoas morando no território. Ao longo de sua trajetória o acampamento passou por 11 reintegrações de posse, a mais recente foi em agosto de 2020, no meio da pandemia, onde 14 famílias tiveram suas casas e lavouras destruídas pelo aparato do estado em conluio com latifundiários, bem como a Escola Popular Eduardo Galeano.

Dia 03 de junho (de 2023) realizamos na Comunidade Quilombola de Pinhões, no município de Santa Luzia, MG, a IV Romaria pela Ecologia Integral da Arquidiocese de Belo Horizonte, MG, que contou com a participação de Movimentos socioambientais e mais uma vez ecoaram fortemente gritos clamando pela anulação do leilão e assinatura do contrato do Rodoanel (Rodominério) na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Tramita na Justiça Federal uma Ação Civil Pública da Federação Quilombola de Minas Gerais – N’Golo – que exige a anulação do leilão do Rodoanel feito de forma ilegal e autoritária pelo governador de MG, Romeu Zema, dia 12 de agosto de 2022, na Bolsa de Valores de São Paulo, SEM ter feito a necessária Consulta Prévia, Livre, Informada, Consentida e de Boa-Fé aos Povos e Comunidades Tradicionais que serão brutalmente atingidas pelo rodominério. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) da ONU (Organização das Nações Unidas), tratado internacional ratificado pelo Brasil em 2004 que o Estado faça Consulta Prévia, Livre, Informada, Consentida e de Boa-Fé aos Povos e Comunidades Tradicionais toda vez que um empreendimento do Estado ou de empresas afetar estas Comunidades. O Ministério Público Federal apresentou PARECER contundente exigindo a anulação do leilão do Rodominério, porque foi feito sem a necessária Consulta Prévia . Conseguirmos também na luta popular a revogação da Resolução do Zema/SEMAD/SEDESE, que amordaçava e aniquilava o Direito à Consulta ao tentar impor que em Minas Gerais a empresa que fosse implementar um projeto do grande capital tivesse o direito de fazer a Consulta às Comunidades Tradicionais, em apenas 100 dias, um absurdo inaceitável, pois seria o mesmo que “raposa consultar as galinhas no galinheiro” para determinar a ordem de morte para todas as galinhas.

Dia 04 de junho, realizamos o VI Abraço na Serra do Curral em Belo Horizonte, na divisa com Nova Lima, MG. Após concentração no Parque das Mangabeiras, subimos a pé uns 6 Km de caminhada até o Pico Belo Horizonte, que está tendo sua base carcomida pela mineradora Ipabra, sendo que do outro lado do Pico Belo Horizonte está a cratera da Mina de Águas Claras, que carcomeu quase toda a Serra do Curral, atrás do bairro Mangabeiras. Vimos que a “casquinha” da Serra do Curral, que ainda resiste impedindo que uma “montanha” de água da cratera da Mina de Águas Claras cause um tsunami inundando dezenas de bairros de BH. Filmamos no local um “grampeamento” com “cimento e ferro” desta “casquinha” de Serra do Curral, pois estava em processo de erosão e rachaduras.

Dia 05 de junho (de 2023), Dia do Ambiente, que nos interpela a defender com ardor os territórios, exercitando nosso Direito de dizer NÃO aos grandes projetos do capital e defender a alegria de conviver em um ambiente livre e sadio, dezenas de representantes de Movimentos socioambientais, Povos Indígenas e parlamentares de esquerda, lançamos, em Ato Público, na Prainha da Represa de Vargem das Flores, em Contagem, MG, o Decreto Popular de Emergência Climática em Minas Gerais, considerando que durante o 19º Acampamento Terra Livre realizado em Brasília, entre os dias 24 e 28 de abril de 2023, a Articulação Nacional dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) decretou Emergência Climática Nacional fazendo eco ao clamor de cura da Mãe Terra. No Decreto Popular consta que “nas Minas Gerais não é diferente, pois com o governador Zema, em conluio com as grandes mineradoras, a “boiada” segue passando a todo vapor e, infelizmente, nos Gerais, ela é reforçada pelo trem da mineração, que solapa vidas e o meio ambiente.”

Entre muitas denúncias, no Decreto está que “O megaprojeto de construção do Rodoanel Metropolitano, concessão pública repleta de ilegalidades e violações que, na verdade, deveria se chamar “Rodominério”, talvez seja o melhor  exemplo da opção do governo Zema pelo aprofundamento do rodoviarismo altamente poluente, baseado no veículo individual privado, ao invés do fomento e investimentos em transporte público e modais não motorizados, como determina a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587/2012). Ainda, o bilionário Rodominério, no qual o Zema quer usar os recursos da reparação dos atingidos pelo crime da Vale em Brumadinho, representa um projeto para viabilizar o escoamento de minério de diversas mineradoras para a criminosa Vale.”

No final do Decreto de Emergência Climática consta: “Para que possamos zelar pelo bem viver, contribuindo com o equilíbrio  climático, decretamos a viva voz Emergência Climática nas Minas Gerais e reivindicamos de todos os poderes do Estado:

  1. Revogação imediata da concessão privada de construção e operação do Rodoanel Metropolitano;
  2. Respeito à Consulta Prévia, Livre, Informada, Consentida e de Boa-Fé da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT);
  3. Demarcação das terras indígenas;
  4. Reconhecimento, proteção e titularização das comunidades quilombolas rurais e urbanas;
  5. Proteção da Serra do Curral, da Mata do Baleia e de todas as serras, matas e águas de nosso estado;
  6. Respeito aos Povos e Comunidades Tradicionais do Norte de Minas,  dos Vales do Jequitinhonha e  do Rio Pardo, fortemente afetados e ameaçados pela política de destruição do governo Zema com projetos como o “Vale do Lítio”, Nova Aurora, SAM e Mineroduto, que envolve a venda destruição de nossos territórios, reduzindo-os a “riquezas minerais”, para o capital estrangeiro. Não somos Vale do Lítio, somos Vale do Jequitinhonha! Somos Gerais e não distritos ferríferos. Em defesa da Serra e dos Povos do Espinhaço.
  7. Regularização dos territórios e Certificação de autorreconhecimento  dos Povos e Comunidades Tradicionais e respeito aos seus modos de vida;
  8. Criação do Comitê Mineiro de Mudanças Climáticas (CMMC) com participação majoritária da sociedade civil organizada;
  9. Atualização e implementação do Plano Nacional sobre Mudança do Clima, incluindo os planos de ação para a prevenção e o controle do desmatamento nos biomas e os planos setoriais de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas;
  10. Imediata posse e reativação da Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais (CEPCT), com orçamento próprio e condições de funcionamento, para que tenhamos no estado de Minas Gerais um espaço institucional de proteção desses povos;
  11. Revisão  da composição do COPAM garantindo representação paritária entre estado e organizações sociedade civil, representada efetivamente pelas organizações ambientalistas e não pelas concessionárias e entidades representativas do setor econômico;
  12. Estabelecimento de Zonas Livres de Mineração, com respeito e garantia definitiva dos nossos Parques, Reservas e Unidades de Conservação: Gandarela, MONA Moeda etc. no intuito de coibir as permanentes tentativas de ataque e desafetação dessas áreas e suas zonas de entorno.
  13. Manutenção da COPASA como patrimônio público do povo mineiro. Não à privatização!”

Sigamos firmes na luta por direitos, com mobilização popular, na certeza de que somente com a união das forças vivas da sociedade é possível alcançar conquistas e empreender a necessária transformação do Estado e da sociedade, de forma que seja justa, fraterna, com respeito à vida em toda sua biodiversidade.

06/06/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Decreto de Emergência Climática em MG: Mov. Socioambientais/ Partidos de esquerda, Vargem das Flores

2 – Arquidiocese de BH realiza IV Romaria pela Ecologia Integral em Pinhões, Santa Luzia/MG. Vídeo 4

3 – Denúncia da mineração devastadora na RMBH: IV Romaria pela Ecologia Integral, Pinhões, Sta Luzia/MG

4 – Denúncia do Rodoanel, Rodominério na RMBH: IV Romaria pela Ecologia Integral, Pinhões/Santa Luzia/MG

5 – VI Abraço na Serra do Curral em BH/MG: Parque Nacional da Serra do Curral, JÁ! Fora, mineração! Víd1

6 – NÃO AO MARCO TEMPORAL E AO PL 490. Senado e STF, DERRUBEM este PL do genocídio! Por frei Gilvander

7 – IV Romaria pela Ecologia Integral em Santa Luzia MG na Comunidade Quilombola de Pinhões. Vídeo 1

8 – MST conquista sentença judicial q garante posse do Quilombo Campo Grande p 500 famílias, no sul d MG

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[2] STJ. 4ª Turma. REsp nº 150.267/PE. Rel. Min. César Asfor Rocha, DJ: 29/05/00, pág. 157.

[3] TJMG – Apelação Cível 1.0024.12.262011-5/001, Relator(a): Des.(a) Cabral da Silva , 10ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 04/06/2019, publicação da súmula em 14/06/2019.

[4] TJMG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.18.112290-4/001, Relator(a): Des.(a) Amorim Siqueira, 9ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 02/04/2019, publicação da súmula em 12/04/2019.

[5] TJMG – Apelação Cível 1.0433.11.030791-8/001, Relator(a): Des.(a) Claret de Moraes , 10ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 29/01/2019, publicação da súmula em 08/02/2019.

 

Brasil: Movimentos Sociais desafiados a protagonizarem mudanças

Grave retrocesso, a decisão majoritária dos Deputados contra nossos povos originários, ao imporem o iníquo “ Marco Temporal”, que a ministra  Sonia Guajajara chama, a justo título, de “Genocidio legislado“. Não bastassem as barbáries bolsonaristas, cometidas no seu Desgoverno, eis que a maioria dos membros da Câmara Federal, ignorando que o Brasil elegeu um novo Presidente, teima em proceder como se continuássemos na barbárie bolsonarista.

Estamos diante de um grave risco para a nossa Democracia: os herdeiros da Casa Grande continuam insistindo no retorno à escravidao, aliados que seguem ao Agronegócio, aos interesses rentista, aos grileiros de terras indígenas e quilombolas, às grandes empresas de mineração, aos garimpos ilegais, aos madeireiros, entre outras forças plutocráticas.

Ao contemplar os impasses  da atual conjuntura, sinto-me remetido à figura de José Honório Rodrigues – para mencionar apenas uma de nossas referências historiográficas – , para quem não têm sido nada  frutíferas as reiteradas frentes amplas, a exemplo da que vem caracterizando o Governo Lula. Nelas, a classe dominante quase sempre impõe reveses contra as aspirações e os projetos populares.

Após cinco meses de governança, a tal Frente ampla, ainda que costurada pela experiente liderança do Presidente Lula, segue sendo hegemonizada pelos setores mais perversos da classe dominante, de modo a infringirem graves derrotas aos interesses populares / povos originários, comunidades quilombolas,  camponeses, operários e, principalmente, contra a Mãe Natureza.

Desde os preparativos do golpe contra Dilma, iniciados já em sua segunda disputa eleitoral e aprofundados no primeiro ano do seu segundo mandato, culminando no Golpe de 2016, a Direita bolsonarista, à qual se alinham os  segmentos da classe dominante (os rentistas, o agronegócio, as igrejas neopentecostais, inclusive no segmento Católico), diversas forças Militares, entre outras, todas direta ou indiretamente apoiadas pelo Governo dos Estados Unidos), sem esquecermos a ação nefanda da mídia corporativa e das redes bolsonaristas. Em um ritmo crescente, temos observado a fúria ideologizante da mídia corporativa, seja em seus principais jornais (ver a contundência dos editoriais de jornais como O Globo, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, entre outros), seja em seus canais de televisão ( abertos e pagos ), seja pela sua extensa rede de rádios, seja ainda por meio de podcast e outras redes sociais.

Esta mesma classe dominante segue investindo, de múltiplas formas, contra os direitos mais elementares da Classe Trabalhadora, seja no Governo Temer, seja no Governo Bolsonaro.

Desde então, todo um conjunto de políticas econômicas e sociais vêm sendo implementadas: desmonte dos direitos trabalhistas e sindicais, ante reforma da Previdência, crescentes ataques aos povos originários, as comunidades quilombolas, aos direitos das Mulheres, dos camponeses, dos operários, da Comunidade LGBTQIA+, ataques aos quais se deve acrescentar as agressões constantes contra a Mãe Natureza.

Nas últimas semanas, novas derrotas, ainda que mitigadas por alguma vitória nas votaçoes,  vêm sendo acrescentadas, especialmente graças à ampla hegemonia, nas duas Casas legislativas do Congresso Nacional, das forças mais retrógradas da sociedade brasileira, ao representarem os interesses do Agronegócio, dos setores rentistas, dos segmentos Militares e religiosos mais atrasados, herança do Bolsonarismo, constituindo o que há de pior do legado escravista.

Diante deste cenário pavoroso, cabe aos Movimentos Populares assumirem sua tarefa histórica de resistência e de ações propositivas, na perspectiva de profundas mudanças, que correspondam aos mais legítimos direitos dos “ de baixos”.

Por outro lado, não desconhecemos certa retração destas forças populares, mesmo reconhecendo significativas ações de resistência e de enfrentamento por algumas delas, a exemplo do MST, alvo preferido de ataques dos setores dominante,tal como sucede na escandalosa ação  na CPMI sob a direção de figuras como a do Deputado Ricardo Salles, ex -Ministro de Bolsonaro cujo legado foi a devastação socioambiental.

Os fatos de alta tensão que marcaram a agenda congressual desta semana – com votações alternando derrotas e alguma vitória nas votações  – assinalam enfaticamente a fragilidade das lutas institucionais descoladas do protagonismo de nossas organizações de base. Ontem como hoje, somos instados a priorizar nosso compromisso organizativo, formativo e de lutas sociais, no campo e na cidade, sem o que nos tornaremos omissos ou cúmplices ante os retrocessos que as forças nazifacistas, irmanadas com as forças do capital, tentam impor ao nosso País.

João pessoa 02 de junho de 2023

NÃO AO MARCO TEMPORAL E AO PL 490! Sinal amarelo para o Governo Lula e vermelho para os Indígenas?

NÃO AO MARCO TEMPORAL E AO PL 490! Sinal amarelo para o Governo Lula e vermelho para os Indígenas?

Por Frei Gilvander Moreira[1]

“Estamos em defesa de nosso território sagrado, de nossos direitos tradicionais, contra o PL 490, contra o Marco Temporal, que quer retirar nosso direito ao território!” – Kaw Gamella, do Povo Akroá-Gamella. Foto: RAMA

Recentemente foi aprovado na Câmara Federal o arcabouço fiscal, que põe cercas para as contas públicas e para os investimentos do Governo Federal. Deixaram totalmente livre a destinação de quase 50% do orçamento para amortização e pagamentos de juros da impagável dívida pública, que quanto mais corta mais cresce. Por que não limitar este montante repassado para os banqueiros? Em breve, o Governo Lula poderá “estar nas cordas” asfixiado pelos ditames do mercado idolatrado embutido no arcabouço fiscal. O Congresso Nacional mais à direita da história do Brasil já está mostrando suas garras. Maioria da Câmara Federal, de direita, do agronegócio, insiste em continuar o genocídio indígena e continuar empurrando a humanidade para seu fim, em decisões tais como a que retira competências dos Ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. Retirar do Ministério dos Povos Indígenas a prerrogativa de demarcação de terras e amordaçar os poderes do Ministério do Meio Ambiente retirando dele a Agência Nacional de Água (ANA), o gerenciamento sobre o saneamento e o Cadastro Ambiental Rural (CAR) significa empurrar o povo brasileiro e toda a biodiversidade para o sacrifício no altar do ídolo capital precipitando a ocorrência de eventos extremos que vem causando desastres e mortandade de pessoas e animais de forma cada vez mais espantosa.

Na última semana, 262 deputados da Câmara Federal, do centrão e da extrema-direita, sob o comando do deputado Arthur Lira, aprovaram “urgência” para o PL 490/2007, que busca legislar sobre o “marco temporal”, assunto que o Supremo Tribunal Federal (STF) já pôs em pauta para ser julgado a partir de 07 de junho próximo. Outros quinze projetos de lei foram apensados ao PL 490. Com o carimbo de “urgente”, o PL 490 deverá ser votado na Câmara Federal hoje, 30 de maio. Isto é violência brutal, pois significa a Câmara Federal “passar a boiada” amordaçando as prerrogativas do poder executivo federal, que tem a missão constitucional de demarcar as terras indígenas. A Constituição de 1988 definiu que as terras indígenas deviam ser demarcadas dentro de cinco anos, a partir de 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, até 1993, mas já se passaram 35 anos e a postergação da demarcação das terras indígenas tem sido a regra. E, injustamente, as terras dos Povos Indígenas continuam griladas por empresas do agronegócio, por latifundiários e madeireiros.

Com isso, o genocídio indígena continua há 523 anos e a devastação ambiental promovida pelo agronegócio, desmatadores e garimpeiros segue em uma progressão geométrica.

Dia 7 de junho de 2023, o STF deve retomar o julgamento da tese do marco temporal, com “repercussão geral” reconhecida, que definirá se as demarcações de terras indígenas no país continuarão ou não, ou pior, se poderão ser canceladas várias demarcações já feitas. A partir de um caso concreto de conflito entre o Povo Indígena Xokleng e o Estado de Santa Catarina, pela “repercussão geral” já estabelecida pelo STF, o julgamento servirá de decisão que será parâmetro para todas as demarcações de terras indígenas no Brasil. Logo, é muito sério o que está em disputa no STF.

O que é a tese do marco temporal? Trata-se de uma farsa perpetrada no Congresso Nacional pela bancada ruralista em 2009, plantada no STF, durante o julgamento da Terra Indígena (TI) Raposa Terra do Sol, situada em Roraima: a inconsistente tese preconiza que os direitos territoriais dos Povos Indígenas só teriam validade se eles estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988 – data da promulgação da atual Constituição Brasileira. Falar em marco temporal é uma jogada, uma ficção jurídica de quem tem grandes interesses econômicos nos territórios indígenas: a turma do agronegócio, dos madeireiros, garimpeiros, latifundiários e empresários do campo, todos os que são adeptos do ídolo mercado, os que não amam o próximo e nem as próximas gerações, pois só pensam em lucrar e acumular capital, mesmo que deixando terra arrasada com sua agricultura mecanizada para produzir commodities para exportação. Marco temporal é marca do atraso, o nome elegante do genocídio, uma máquina de moer a história dos Povos Indígenas e nos empurrar para a dizimação da humanidade por falta de condições ambientais que assegurem a vida humana.

O que os capitalistas pretendem com a legitimação da tese do marco temporal? Pretendem anistiar os crimes cometidos contra os Povos Tradicionais relacionadas à escravidão, torturas, confinamentos em pequenos territórios, aprisionamentos, exílios, remoções forçadas, desterros, separação de familiares, assassinatos, apropriações indevidas de territórios tradicionais, desconsiderando assim as noções de reparação histórica, de dívida histórica com os Povos Originários, de resguardo cultural e imemorial, de direitos congênitos, imprescritíveis, intangíveis e da posse coletiva da terra.

O argumento do marco temporal é inconstitucional e inconvencional, ferindo, em especial, os artigos 231 e 232 da Constituição[2], além de desrespeitar a Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) n. 169, de 1989, ratificada pelo Brasil, que consagra os direitos culturais e territoriais, bem como a autodeclaração, como instrumento primaz da identidade étnica, além do reconhecimento das diferentes formas de ocupação, manejo e uso da terra.  Segundo a teoria do indigenato (Direito Originário), a terra é “originária” e, portanto, anterior à Constituição do Brasil, independente da data de comprovação da terra.  A tese do marco temporal é inconstitucional, porque, perseguidos, massacrados e expulsos, muitos Povos Indígenas não estavam em seus territórios originais em 5 de outubro de 1988, porque foram arrancados deles. Outros foram arrancados depois, por grileiros, latifundiários, garimpeiros e jagunços. Marco temporal serve ao agronegócio, que é devastador ambientalmente, desertificador dos territórios, concentrador da propriedade privada da terra, produtor da epidemia de câncer e da fome, asfixiador da agricultura familiar camponesa agroecológica, exterminador do futuro da humanidade.

Derrubar a tese do marco temporal se tornou necessário também por uma questão de sobrevivência da humanidade, pois já sabemos que foi o exagero de desmatamento que fez eclodir a pandemia da covid-19, já está comprovado que o agronegócio e seus aliados promovem desertificação dos territórios, desmatamentos sem fim e, portanto, o aquecimento global e a emergência climática. Já está demonstrado que nos territórios indígenas se pratica preservação ambiental, pois os Povos Indígenas são guardiões da floresta. É preciso recordar também que com a demarcação dos territórios indígenas, as terras não passam a ser de propriedade dos Povos Indígenas, que têm apenas o direito de usufruto não podendo vender a terra. As terras indígenas são da União, bem comum do povo. Portanto, derrubar o marco temporal é também caminho para frear a privatização e a grilagem de terras no Brasil.

Quem defende que o marco temporal é constitucional? Os ruralistas, deputados e senadores do centrão e da extrema-direita, os agronegociantes, os garimpeiros, mineradoras, os latifundiários e empresários que, além de ter grandes propriedades na cidade, são também grandes proprietários de terra; a mídia controlada por meia dúzia de famílias riquíssimas. Diz a sabedoria popular: “Diga com quem tu andas e o que defende que direi quem tu és”.

Quem defende a derrubada do marco temporal pelo STF? Todos os Povos Indígenas do Brasil, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o papa Francisco, Associação dos Juristas pela Democracia, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), juristas e constitucionalistas de renome, os Movimentos Sociais Populares e Ambientais, enfim, as forças éticas da sociedade.

Caso não seja derrubada a tese do marco temporal no STF, o Estado não mais demarcará terras indígenas e várias das demarcadas poderão ser desmarcadas e, assim, a ausência de demarcação de terras, causará, no médio e longo prazo, um verdadeiro etnocídio e continuará o genocídio indígena no nosso país. Portanto, o justo e necessário é que o STF julgue derrubando a tese do marco temporal, porque é absurdo, inconstitucional e violação aos direitos dos Povos Indígenas/Originários! Em contexto não apenas de mudanças climáticas e de aquecimento global, mas de emergencial climática com eventos extremos cada vez mais frequentes e letais, impor o absurdo que é a tese do marco temporal é deixar abertas as porteiras para a contínua invasão dos territórios.

30/05/2023

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – Demarcação de Terras Indígenas, com Shirley Krenak, Moema Viezzer e Célio Turino

2 – STF Urgente. Relator Fachin reconhece a tutela dos territórios indígenas

3 – #LutaPelaVida – Igreja no Brasil reafirma seu compromisso com a causa indígena. Marco temporal, NÃO!

4 – AO VIVO. Semana de protestos no Brasil começa com os Povos Indígenas em Brasília.

5 – Em MG, 17 Povos Indígenas com 16 mil pessoas resistem na luta pelos seus territórios. 09/10/2020

6 – STF definirá em julgamento critérios de demarcação de novas terras indígenas. Fantástico. 24/5/2020

7 – Deus Tupã, o Grande Espírito e os Encantados contra o PL 490 e contra o Marco Temporal. Justiça, JÁ!

8 – “Sem Demarcação de terras indígenas não tem Democracia!”. Ato contra PL 490 e contra Marco Temporal

9 – Ato Público em BH/MG contra PL 490, contra Marco Temporal, por Demarcação das Terras Indígenas. V. 1

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

 

Pedagogia camponesa: mística e segredos da luta por direitos

Pedagogia camponesa: mística e segredos da luta por direitos. Por frei Gilvander Moreira[1]

Mística de acolhida, na sombra de uma oiticica, na aula inaugural da EFA Jaguaribana, em abril de 2018 | Foto: Alisson Chaves

É emancipatória a força e a liberdade interior que fez o jovem camponês Sem Terra Oziel Alves Pereira, de 17 anos, durante o massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, dia 17 de abril de 1996, mesmo sob tortura, continuar gritando, até ser massacrado: “Viva o MST!” “A mística também evoca a materialização (geralmente simbólica) desse sentimento na beleza da ambientação dos encontros, nas celebrações, na animação proporcionada pelo canto, pela poesia, pela dança, pelas encenações de vivências que devem ser perpetuadas na memória, pelos gestos fortes, pelas homenagens solenes que se prestam aos combatentes do povo; lembra os símbolos do Movimento, seus instrumentos de trabalho e de resistência, seus gritos de ordem, sua agitação, sua arte” (CALDART, 2012, p. 213).

Em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, a música Religião Libertadora, do padre Zezinho, tem animado a mística das celebrações dos Sem Terra na luta pela terra: Diz a música: “É por causa do meu povo machucado que acredito em religião libertadora. É por causa de Jesus ressuscitado que acredito em religião libertadora …”. Impossível compreender a luta pela terra em Salto da Divisa, nos últimos 30 anos, sem a presença marcante da Irmã Geraldinha (Geralda Magela), das Irmãs Dominicanas, e sem as frequentes celebrações religiosas na linha da Teologia da libertação, como canta, por exemplo, uma música que se tornou o hino da luta pela terra em Salto da Divisa: “Vem Senhor Jesus, vem conosco caminhar, ilumina nossa luta para essa terra conquistar (bis). Em toda a América Latina há muita gente sofrida em busca de libertação, muitos lavradores sem um pedaço de chão. Somos povo de Deus, em toda essa América Latina, a caminho da libertação. Queremos lutar para partilhar o pão. Somos povo de Deus, nesta pátria tão querida, queremos evangelização, para essa terra ser de gente, semente no chão” (HINO DA COMUNIDADE CRISTO LIBERTADOR do P.A Dom Luciano Mendes, em Salto da Divisa, MG).

Com a pedagoga Rosely Caldart afirmamos que “a mística é exatamente a capacidade de produzir significados para dimensões da realidade que estão e não estão presentes, e que geralmente remetem as pessoas ao futuro, à utopia do que ainda não é, mas que pode vir a ser, com a perseverança e o sacrifício de cada um” (CALDART, 2012, p. 213). Na perspectiva da Comissão Pastoral d Terra (CPT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento Indígena e dos Povos e Comunidades Tradicionais, na Teia dos Povos, em sintonia com a Teologia da Libertação, a mística é emancipatória também porque desperta nos sujeitos que lutam pela terra um jeito de lidar com as dimensões mais profundas da realidade que, muitas vezes, são imperceptíveis quando ficamos presos a racionalismos ou idealismos. Pela mística praticada pela CPT, MST e Movimentos Sociais as melhores luzes e forças do passado e do futuro potencializam o presente de luta pela terra na terra (MOREIRA, 2015).[2] O passado e o futuro se fazem presentes no presente, quando os sujeitos são enlevados pelo encanto da mística revolucionária e, portanto, emancipatória.

A luta pela terra em perspectiva emancipatória implica necessariamente também emancipação ecológica, o que passa pela mudança radical da agricultura capitalista e pela superação do agronegócio com uso indiscriminado de agrotóxico e inclui a implementação da agricultura camponesa com plantações em sistema agroecológico, o que é algo mais do que apenas adubação orgânica, significa um estilo de vida que leva a uma relação respeitosa com a terra, com as águas e com toda a biodiversidade.[3]

Emancipatória, também, é a formação constante e permanente para o cultivo dos valores humanos que sustentam a perseverança na luta pela terra e por território. Formação que acontece em um processo que envolve estudo, convivência na luta, troca de experiências entre quem está na luta pela terra e por território e, acima de tudo, participação em todas as lutas coletivas por direitos. A pedagogia camponesa é exercitada muito mais pelo exemplo do que pela teoria. Por isso, também, a importância da troca de experiência, pois uma experiência significativa vista com os próprios olhos por um/a camponês/a cativa e desperta o acolhimento de propostas boas que, se fossem apenas comunicadas de forma teórica com argumentação racional, provavelmente não teriam a repercussão de uma experiência vivenciada. A atuação da CPT, do MST, dos outros Movimentos Sociais, dos Povos Originários e Comunidades Tradicionais emancipa, ainda, porque de alguma forma consegue transformar o sem-terra em Sem Terra, o desterritorializado em sujeito com território, o que de ‘coitado que pede ajuda’ é elevado ou se eleva a ‘trabalhador/a camponês/a – indígena ou integrante de Povo Tradicional – que tem direito e merece respeito’ e passa a ser respeitado pelas forças políticas da sociedade como um exemplo de sujeito cidadão emancipador a ser seguido.

Para a CPT, o MST, o Movimento Indígena e os Povos Tradicionais a luta pela terra e por território é mais do que luta pela terra e por resgate de território, pois inclui: a) a luta pela conquista da terra e retomada de território, a resistência na terra e nos territórios com administração autônoma segundo os princípios da autonomia dos Povos que passa por agroecologia, trabalho coletivo e sustentabilidade ecológica; b) a luta por educação para além do capital, educação do campo de forma emancipatória; e c) exige abraçar a luta pela transformação social, política e econômica da sociedade na perspectiva da construção de uma sociedade para além do capital: uma sociedade socialista, sem exploração de classe e sem exploração do trabalho da classe trabalhadora e nem expropriação das terras da classe camponesa, dos Povos Originários e nem dos Povos Tradicionais.

Referências

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

MOREIRA, Gilvander Luís. Entre sinais e conflitos, se requer opção de fé (Jo 5,1-8,5). In: SABOYA, Marysa Mourão (Org.). Amar sem limites, nas trilhas das comunidades do Discípulo Amado. São Leopoldo: CEBI, p. 50-65, 2015b.

23/05/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – “Não ao Marco Temporal! Demarcação de todos os Territórios Indígenas e Tradicionais, JÁ!” Enc. POVOS

2 – Ato Público no início do Encontro de Povos Tradicionais de MG: em defesa dos Territórios e Consulta

3 – Audiência Pública na ALMG: ilegalidades e violências da mineradora Santa Paulina em Ibirité, MG!

4 – Preservação total, integral, 100% da Mata do Jd. América em BH/MG: Dever, direito e necessidade-vida

5 – Mineradora Sta Paulina em Ibirité/Sarzedo/MG acabará c água de 700 mil pessoas /Agricultura Familiar

6 – Ato Público e Marcha denuncia violações aos direitos do Quilombo do Campinho em Congonhas, MG

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Cf. MOREIRA, Gilvander Luís. Entre sinais e conflitos, se requer opção de fé (Jo 5,1-8,5), p. 50-65, especialmente p. 55 a 59, onde tratamos da partilha de pães, pedagogia que liberta e emancipa (Jo 6,1-15). In: SABOYA, Marysa Mourão (Org.). Amar sem limites, nas trilhas das comunidades do Discípulo Amado. São Leopoldo: CEBI, 2015b.

[3] Exemplo disso está retratado no vídeo documentário “Resistir e saber cuidar – experiências agroecológicas em Assentamentos da Reforma Agrária”. Direção e roteiro de Cecília Figueiredo. Brasília: MST, Triângulo Produções, 2006. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-oedHfalprM

De crime em crime, só espiritualidade e luta coletiva nos libertam

Lançamento do livro “O preço de um crime socioambiental”, de Marina Oliveira, com seminário dos/as Atingidos/as pelo crime brutal da Vale S/A com anuência do Estado, crime que eclodiu no Córrego do Feijão, em Brumadinho, MG. Foto: Card divulgado nas Redes virtuaisEm uma sociedade capitalista como a nossa, com idolatria do mercado/capital, a injustiça social segue se reproduzindo, mas também muitas lutas por direitos e pela superação de injustiças e violências seguem. Quero aqui fazer menção a algumas lutas. Dia 13 de maio último (2023), foi dia marcante em Belo Horizonte e região. No dia da farsa de 135 anos da abolição da escravatura, mito e mentira que aconteceu dia 13 de maio de 1888, pois relações sociais escravocratas continuam se reproduzindo cotidianamente no nosso Brasil e pelo mundo afora. Em 2022, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou 207 casos coletivos de trabalho escravo no meio rural, com 2.218 pessoas resgatadas, o maior número dos últimos dez anos, caracterizando uma explosão nos números de autuação constatando trabalho escravo. O estado de Minas Gerais segue nos últimos dez anos sendo o estado campeão em trabalho escravo, pois em Minas Gerais continuamos sob o império do agronegócio que violenta brutalmente os territórios, os povos e a natureza. Em Minas Gerais temos mais de 50% da monocultura de eucalipto, que desertifica os territórios e dizima as fontes de água, além de expropriar e expulsar camponeses e camponesas para as periferias das grandes cidades. Convém recordar que não podemos aceitar a expressão eufemista “trabalho análogo à escravidão”, pois significa negar a existência da escravidão contemporânea. É trabalho escravo mesmo, nu e cru, que continua de forma acentuada em muitas empresas no campo e na cidade, também na uberização do trabalho e com o uso indiscriminado de tecnologias que substitui mão de obra.

Com a participação de centenas de pessoas vítimas do crime da Vale e do Estado – quilombolas, reinados, congados, folia de reis, artistas – dia 13 de maio, véspera do dia das mães, aconteceu em Belo Horizonte, MG, no Auditório da Faculdade de Medicina, da UFMG[2], o lançamento do livro “O preço de um crime socioambiental”, de Marina Oliveira, com seminário dos/as Atingidos/as pelo crime brutal da Vale S/A com anuência do Estado, crime que eclodiu no Córrego do Feijão, em Brumadinho, MG, com o rompimento de uma barragem de mineração, às 12h28 do dia 25 de janeiro de 2019, e que segue impune e se reproduzindo em uma progressão geométrica.

Foi muito comovente ver e assistir aos depoimentos de vítimas sobreviventes do crime. A professora Andresa, de Mário Campos, por exemplo, em lágrimas, mas com contundência, denunciou: “Amanhã é dia das mães. A mineradora Vale continua nos matando, pois retirou de mim o direito de ouvir meu filho Bruno me chamar de mãe, pois ele foi sepultado vivo junto com outros/as 271 pessoas na mina do Córrego do Feijão. A Vale roubou de mim o direito de ser avó, matou a reprodução da minha família.” O senhor Antônio Cambão, quilombola da Comunidade de Marinhos, de Brumadinho, que, quase sem conseguir falar, lançou palavras de fogo apontando para um painel com as fotografias das 272 vítimas que foram sacrificadas pela Vale no altar da idolatria do mercado: “A maioria destas 272 pessoas que estão com seus rostos aqui neste painel, todos/as assassinados/as pela Vale, vinha me pedir a bênção quando eu chegava na rodoviária de Brumadinho, toda semana. A Vale roubou deles o direito de me pedir a bênção e roubou o meu direito de abençoá-los”. Eliana Marques, da Comunidade de Cachoeira do Choro, em Curvelo, também em lágrimas, mas de cabeça erguida, denunciou com a firmeza que faz tremer os podres opressores: “O crime da Vale continua nos matando, pois é um crime continuado que se reproduz todos os dias. Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) já demonstrou que a maioria do povo das comunidades atingidas está com metais pesados no próprio sangue. Só na minha comunidade mais de dez pessoas já suicidaram-se, porque não suportaram a violência brutal deste crime que matou 272 pessoas instantaneamente, sacrificou o rio Paraopeba, matando peixes e todos os seres vivos da bacia do Paraopeba. E continua disseminando depressão e morte nas nossas comunidades. O acordão que o governador Zema, o Tribunal de (In)Justiça de Minas Gerais (TJMG), Ministério Público Estadual (MP/MG) e Federal (MPF) e Defensoria Pública de Minas (DPE-MG) assinaram com a Vale S/A foi mais um crime brutal que pavimentou o caminho para outros crimes, tal como a reeleição do Zema e a construção de um rodominério na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Crime em cima de crime. Basta! Exigimos reparação integral.”

No evento acima ficou negritado que as chamadas Instituições de Justiça (TJMG, MP/MG, MPF e DPE-MG, na prática, no acordão com a Vale, foram Instituições de Injustiça, pois se ajoelharam diante do poderio da mineradora Vale e se tornaram cúmplices da limpeza mentirosa da imagem da Vale diante dos seus acionistas, da reeleição de Zema, do rodominério na RMBH, que precisa ser abortado antes que seja iniciado, pois está eivado de ilegalidades e de injustiça socioambiental e de outros projetos de mineração devastadora que seguem violentando os Povos, os territórios e toda a biodiversidade.

Cortar o orçamento das Assistências Técnicas “Independentes” (ATIs) está sendo uma violência absurda, mas temos que denunciar que não basta “assistência técnica para informar sobre os direitos”, é preciso também e principalmente assistência técnica para MOBILIZAR as pessoas e as comunidades violentadas para lutas coletivas concretas pelos direitos das comunidades golpeadas. A história demonstra que sem lutas coletivas concretas por direitos, só informar, elaborar documentos e protocolar nos gabinetes do Ministério Público ou do juiz do processo, nunca assegurará reparação integral. O que incomoda os opressores e efetiva direitos são as lutas coletivas concretas. Portanto, proibir as Assistências Técnicas “Independentes” de mobilizar significa amordaçá-las e não canalizar a indignação e os clamores ensurdecedores das vítimas para lutas concretas pelos seus direitos reincidentemente violados.

A Defensoria Pública da União (DPU) está de parabéns por ter se retirado do acordão e não o ter assinado. Assim, não se tornou cúmplice da injustiça que se reproduz. No mesmo modus operandi, sem participação ativa e com poder de decisão dos/as atingidos/as, agora se confabula outro acordão sobre o crime da Vale/Samarco/BHP na bacia do ex-rio Doce. É uma escada de crimes: 1, 2, 3 …, cada um causando um maior que o anterior. Lógica perversa que só multiplica a violência e nos empurra para eventos extremos cada vez mais letais em tempos de emergência climática. As futuras gerações vão cobrar com veemência a violência e a injustiça maquinada com sangue frio pelos autores desta engrenagem de morte, os cúmplices e os omissos também serão responsabilizados pela história.

Na parte da tarde do dia 13 de maio de 2023, realizamos um Ato Público e Marcha na Comunidade Quilombola de Campinho, em Congonhas, MG. Comunidade já reconhecida pela Fundação Cultural Palmares como Quilombo do Campinho, com mais de 160 anos de existência, anterior à criação da cidade de Congonhas, mas que vem sendo violentada nos seus direitos. A prefeitura de Congonhas, que investe no cuidado do patrimônio cultural da Praça dos Profetas, de Aleijadinho, está pisando no principal patrimônio cultural de Congonhas, que é a Comunidade Quilombola do Campinho, pois já rasgou o território da comunidade com uma avenida, sem Consulta Prévia, Livre, Informada, Consentida e de Boa-fé. Nos últimos meses, também sem Consulta Prévia, …, a prefeitura de Congonhas está construindo um conjunto habitacional no território do Quilombo Campinho com a construção de 160 apartamentos por mais de R$30.681.997,41 (mais de 30,6 milhões de reais), ou seja, R$191.762,48  (cento e noventa e um mil reais …) cada apartamento. Preço de “custo”! Quanto cada família terá que pagar por cada apartamento? Este preço é indício de corrupção? Como prova de que só perde quem não luta, ontem, o juiz federal Felipe Eugênio concedeu liminar a uma Ação Civil Pública impetrada pela Federação Quilombola de Minas Gerais – N’Golo – e mandou paralisar a construção de conjunto habitacional no território da Comunidade Quilombola do Campinho. Mais uma vitória da luta coletiva por direitos.

Enquanto os capitalistas seguem causando sexta-feira da paixão sacrificando no altar da idolatria do mercado povos, ecossistemas e toda a biodiversidade, resistiremos insistindo em construir domingos de ressurreição com justiça econômica, solidariedade social, justiça agrária, urbana e ambiental e respeito à imensa diversidade cultural e religiosa presente no nosso país.

Dia 13 de maio, no bairro Concórdia, em Belo Horizonte, também aconteceu uma maravilhosa e inspiradora Festa de Preto Velho, no dia das almas. Com reverência, admiração e respeito aos povos de terreiro, do Candomblé, da Umbanda e de muitos outros modos de lidar com nossa dimensão espiritual, faço minhas as palavras do irmão Marcelo Barros: “Somos chamados/as a contemplar o amor divino nas expressões espirituais dos povos originários e nos povos de Religião de matriz ancestral africana. No culto aos antepassados, na relação com os Encantados, nas manifestações dos Orixás, na Jurema ou no santo Daime, assim como nas forças da natureza tão agredida.”

16/05/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Lançamento do livro “O Preço de um crime socioambiental”, de Marina Oliveira, sobre o Crime da Vale

2 – Ato Público e Marcha denuncia violações aos direitos do Quilombo do Campinho em Congonhas, MG

3 – Live: PL 2508/2021 “Acordão do Zema com a Vale”, na Assembleia Legislativa de MG. “Boiada passando?”

4 – “Acordão imoral, injusto e excluiu os atingidos. CPI do Acordão, JÁ!” (Fernanda Perdigão, na ALMG)

5 – “Exigimos a exclusão do Rodoanel do PL 2508, do Acordão com a Vale S/A. Fora, Rodominério!”-1ª parte

6 – Frei Gilvander repudia Acordão e Rodoanel, PL 25/08 na ALMG: “Exigimos Mineração Zero em BH e RMBH!”

7 – Dom Vicente repudia o Acordão e o Rodoanel, PL 2508 na ALMG, e pede CPI JÁ. Basta de crimes!–25/6/21

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Universidade Federal de Minas Gerais

Agronegócio solapa a soberania dos Povos

Agronegócio solapa a soberania dos Povos. Por frei Gilvander Moreira[1]

O agronegócio predador envenena a terra e mata gente. Estudos científicos dão sinais do inquestionável e urgente enfrentamento efetivo dos males dos venenos agrícolas. Foto: Reprodução http://www.brasildefato.com.br

Na era da financeirização do capital e da especulação exacerbada do grande capital, imperam relações transnacionais pouco controladas pelos governos dos Estados nacionais. O Estado capitalista está em crise aguda transbordando contradições. O capitalismo quanto mais se desenvolve mais brutal e podre se torna. Nesse contexto do capital e do capitalismo, o movimento de luta pela terra para superar o ‘cativeiro da terra’, seu aprisionamento em estrutura fundiária pautada no latifúndio, tornou-se imprescindível para a formação do novo sujeito social para além do capital. Sem desconcentração da propriedade fundiária, sem reforma agrária e sem resgate dos territórios pelos povos originários (indígenas), pelo campesinato e pelos Povos e Comunidades Tradicionais não conquistaremos a superação da injustiça social, urbana e ambiental. “É preciso esvaziar as cidades e os povos reconquistarem seus territórios”, alerta o mestre Joelson Ferreira, articulador da Teia dos Povos.

Na América afrolatíndia, estamos diante de evidências da emergência de formações sociais plurinacionais a partir das lutas populares na Bolívia e Equador. Nunca estará tudo dominado. A história não acabou. O sistema do capital tem um poder de dominação gigantesco ao olharmos com base nele – perspectiva hegemônica -, mas se olharmos considerando a classe trabalhadora e o campesinato – o profundo das relações sociais, o contra-hegemônico -, percebemos que o sistema do capital está recheado de contradições e inconsistências, é um gigante, mas com pés de barro. Já alertava José de Souza Martins, em 1989, no livro Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo que “nas sociedades ricas e nos espaços ricos das sociedades pobres, a reprodução e o poder dominam a superfície, o espaço, o imaginário, mas não dominam o subterrâneo, os nichos do contrapoder, a imaginação” (MARTINS, 1989, p. 119).

Como muitos outros movimentos populares, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), desde 1975, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), desde 1984, pelas suas práxis, se tornam sujeitos históricos que “transformam demandas individuais em propostas coletivas. […] como força política, consolidam saberes, e avançam na conquista de suas reivindicações. Deixam evidentes as contradições do modelo de acumulação implementado na modernidade, rejeitando sua racionalidade, com vistas à construção de novos padrões de produção e trabalho” (PIETRAFESA, 2015, p. 100).

A luta pela terra potencializa e politiza os sujeitos dela ampliando o protagonismo dos camponeses na produção de novos projetos de sociedade, na construção de uma cultura política que se contrapõe à cultura hegemônica da lógica do capital e na formação de contra-saberes que são disseminados na sociedade pelo protagonismo dos sujeitos sociais engajados. As ações de resistência política dos sujeitos da luta pela terra se revestem de transgressão e de inovação na gestão territorial, após (re)conquistarem alguns territórios. “Se ocuparmos e não administrarmos de forma própria e direta os nossos territórios seguindo os princípios da sustentabilidade, crescerá sempre o agronegócio. Nossa presença e atuação nos territórios precisam ser no sentido de resgatar a confiança dos animais conosco seres humanos. Se envenenarmos a terra, as águas e o ar e matarmos os animais, não somos dignos de habitar aqueles territórios. Temos que ser autoprodutores, autônomos, e não depender de Estado e nem de governos” (CACIQUE BABAU, do povo indígena Tupinambás, do sul da Bahia, no IV Congresso da CPT, dia 12/7/2015).[2]

A luta pela terra é também luta por soberania, uma vez que “os perigos para a soberania não estão, portanto, sempre vinculados a guerras, conquistas e defesa de fronteiras” (APPADURAI, 1997, p. 37), não vem só do exterior, mas é no interior dos territórios que, de forma disfarçada, mas contundente, os representantes do capital internacional fincam suas bandeiras, via agronegócio, e vão solapando a soberania dos povos da terra auferindo lucros absurdos à custa de uma tremenda devastação socioambiental. Exemplo disso é Aimorés, MG, onde o fotógrafo Sebastião Salgado nasceu e foi criado. O filme O Sal da Terra, biografia de Sebastião Salgado, retrata as apropriações da terra sob o signo do capital causando inclusive migrações forçadas de populações em muitas regiões do mundo.

Baseando-se na necessidade, sentida de forma dramática, de um pedacinho de terra, os Sem Terra, os indígenas e Povos e Comunidades Tradicionais, na luta coletiva pela terra e por território, ampliam a consciência e começam a perceber que têm muitos outros direitos a conquistar e, acima de tudo, descobrem que podem mais, que não são tão fracos como se sentiam antes ou como a ideologia hegemônica dissemina aos quatro ventos e tenta impregnar as consciências para reproduzir pessoas resignadas e conformadas.

A luta pela terra e por território tem uma imensa força, uma centralidade. Pelo trabalho coletivo, os Sem Terra, os Povos Originários e os Povos Tradicionais conquistam o início da interrupção da mercantilização da terra e o começo da democratização da terra, o que passa inclusive pela afirmação de outra política econômica, construída com base nas necessidades do povo e não no lucro e na superexploração da força de trabalho da classe trabalhadora e do campesinato.

A mesma terra que foi expropriada passa a ser força de luta pela reconquista de identidades. Os geraizeiros, os quilombolas, os indígenas, os vazanteiros, os seringueiros, os groteiros, os/as apanhadores/as de flores ‘sempre viva’ etc., enfim, as várias faces do campesinato percebem que sem-terra e sem território serão dizimadas e perderão suas identidades, mas só podem afirmar suas identidades na luta pela terra e pelo território. Para continuar existindo, resistem e insistem na luta coletiva pela construção de um Projeto Popular para construirmos uma sociedade justa economicamente, solidária socialmente, sustentável ecologicamente, politicamente democrática, plural culturalmente e responsável geracionalmente.

Referências

APPADURAI, Arjun. Soberania sem territorialidade – notas para uma geografia pós-nacional. In: Novos Estudos, CEBRAP, São Paulo, n. 49, p. 33-46. Nov./1997.

MARTINS, José de Souza. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo. São Paulo: HUCITEC, 1989.

PIETRAFESA, José Paulo. Conflitos agrários, protagonismo camponês e ocupações de terra no Brasil. In: Conflitos no campo Brasil 2015. Goiânia: CPT Nacional, p. 100-108, 2015.

02/05/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Marco temporal: terra para os Povos Indígenas ou para o agronegócio devastador? Por Frei Gilvander

2 – Leo Péricles, UP: É c luta p retomar territórios no campo e na cidade q vamos superar o capitalismo

3 – Primeiro de Maio 2023 em BH/MG: Fora, Zema! Reconstruir o Brasil com direitos trabalhistas e sociais

4 – Soberania Alimentar com Vandana Shiva. Agronegócio e agrotóxicos matam! Dia da alimentação. 16/10/20

5 – Você sabe de onde vem a sua comida? O agronegócio envenena a comida do povo. Episódio 1 – Greenpeace

6 – “Libertar do agronegócio” (Jefferson/Sindieletro). Acampamentos do MST/Campo do Meio/MG. Vídeo 7

 

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Cf. Palavra Ética na TVC/BH com o cacique Babau, do povo indígena Tupinambás, na internet em https://www.youtube.com/watch?v=Iq5Q2BafTEE

Se há agronegócio não há cerrado

Se há agronegócio não há cerrado. Por frei Gilvander Moreira[1]

Divulgação: https://blogdopedlowski.com/2018/02/24/violencia-e-desterritorializacao-no-cerrado-do-piaui-sao-denunciadas-em-nota-publica/

Em uma pesquisa de doutorado na Faculdade de Educação (FAE), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisamos a luta pela terra com a seguinte hipótese: a força e a centralidade da luta pela terra na luta coletiva do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) como um processo de pedagogia de emancipação humana. Vimos que o MST e a CPT politizam a questão da luta pela terra afirmando a força da luta pela terra como força de mobilização emancipatória. Nessa luta, a dimensão religiosa vivenciada pelo povo sem-terra é algo ambíguo, pois pode contribuir nos processos e lutas emancipatórias quando fomentam a organização popular e luta coletiva, mas pode também reforçar processos alienantes quando fomentam o individualismo, o conformismo e a espiritualização de questões sociais. A Teologia da Libertação contribui para unir a perspectiva da fé do povo com as lutas coletivas necessárias para se conquistar justiça agrária e outros direitos humanos fundamentais.

A história da noção de propriedade privada da terra é recente. Na maior parte da história humana a terra não era considerada como algo capaz de ser propriedade privada. Segundo o filósofo Rousseau (1712-1778), em um determinado contexto histórico, alguém teve a ideia e a coragem de cercar certo território e dizer que lhe pertencia: “Isto é meu” (ROUSSEAU, 1999, p. 87).  E os vizinhos, de braços cruzados, aceitaram de forma resignada o início da privatização da terra, algo que era até então bem comum de todos/as. Assim, os vizinhos, por omissão/cumplicidade, aceitaram aquele evento sem prever as graves consequências futuras do que estava acontecendo. Ao dizer “Isto é meu” e cercar um pedaço de terra, em um triste dia, estava nascendo a sociedade civil, a propriedade privada dos meios de produção e com ela a desigualdade entre as pessoas, regiões e países.

Assim, em determinada condição histórica material e objetiva se lançaram as bases da propriedade privada capitalista da terra, legitimada pela criação de leis no âmbito da sociedade civil. “Criaram novos entraves para os fracos e novas forças para o rico” (ROUSSEAU, 1999, p. 222), pois, interrompendo a “independência do homem natural e ampliando a dependência recíproca entre os indivíduos socializados, no quadro de um regime baseado na propriedade privada, a divisão do trabalho criou conflitos e rivalidades entre as pessoas” (COUTINHO, 1996, p. 14).

Para Karl Marx, a pessoa se faz humana trabalhando, pois pelo trabalho produz bens gerais necessários à vida humana. Mas trabalho é uma noção contraditória: tem verso e reverso. Pelo verso, o trabalho é engendrador de riqueza genérica humana, mas pelo reverso é mercadoria que gera acumulação de capital. Marx afirma o trabalho como um fazer criativo (poiesas, em grego, significa poético) e denuncia o trabalho escravizador (doulos, em grego, significa escravo). O trabalho pode se tornar uma matriz de pedagogia de emancipação humana, desde que a classe trabalhadora e a classe camponesa se libertem da exploração do capital que usa a força de trabalho para acumular mais-valia e reproduzir o sistema do capital. O ser humano é criador de si mesmo e não sozinho, mas em comunhão de classe injustiçada, emancipa-se quando conquista condições materiais históricas que possibilitem desenvolver o seu infinito potencial humano. Na sociedade capitalista há um antagonismo, uma contradição, entre o trabalho proletário criador e a concepção capitalista do trabalho.

Ao longo da história humana se constituiu a visão mercantil da terra, produzindo as bases materiais para a apropriação da terra como propriedade privada capitalista. Isso foi feito usando pedagogias cruéis em processos sutis que exigem pedagogias delicadas e complexas. Uma dessas pedagogias foi a desterritorialização de comunidades camponesas para se territorializar projetos agropecuários de interesse do capital, tal como os do agronegócio. O uso de linguagem eufemística tem ocultado a exploração perpetrada pelo capital. Por exemplo, ao dizer ‘expansão da fronteira agrícola’ subentende-se que a ampliação agropecuária se daria em uma região vazia, mas na realidade tem sido dada em cima de regiões cheias de biodiversidade, de Povos Tradicionais e Originários com uma multiplicidade de culturas. Logo, o que se chama de expansão da fronteira agrícola trata-se de invasão de territórios do campesinato. Aufere-se lucro e progresso para uma minoria e uma devastação socioambiental para a maioria. Dizer ‘soja no cerrado’ ou ‘agronegócio no cerrado’ também é contradição, pois para instalar monocultura da soja tem antes que dizimar todos os cerrados. Logo, se há soja não há cerrado; se há agronegócio não há cerrado. No momento que se expropria a terra do camponês, se expropria muito mais, não apenas a terra. O camponês desterritorializado perde suas raízes humanas e sua identidade cultural. Assim como toda árvore, “o ser humano precisa de raízes, e somente consegue produzi-las quando participa de uma coletividade” (CALDART, 2012, p. 346). Se a coletividade estiver sempre em movimento e em luta constante, geram-se condições materiais objetivas para se produzirem raízes culturais que se expressam em sujeitos de luta, como os Sem Terra.

Referências

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

COUTINHO, Carlos Nelson. Crítica e utopia em Rousseau. In: Lua Nova, Revista de Cultura e Política. Rio de Janeiro, nº 38, p. 5-30, 1996.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

11/04/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Marco temporal: terra para os Povos Indígenas ou para o agronegócio devastador? Por Frei Gilvander

2 – Geraizeiros denunciam SAM, monocultura de eucalipto e vilipêndio de cemitérios/norte de MG. 04/11/20

3 – Aula Magna sobre Fruta de Leite, Cerrado e Geraizeiros e luta contra monocultura do eucalipto em MG

4 – Soberania Alimentar com Vandana Shiva. Agronegócio e agrotóxicos matam! Dia da alimentação. 16/10/20

5 – Você sabe de onde vem a sua comida? O agronegócio envenena a comida do povo. Episódio 1 – Greenpeace

6 – MST ocupa Ministério da Agricultura, em BH: Luta contra agronegócio; luta por Agroecologia. 30/04/14

7 – Lagoa da Prata/MG: Águas secadas, monocultura e agrotóxicos/XXI Romaria/Águas/Terra/MG/3a parte/9/18

 

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

Comunidade Quilombola Família Araújo, de Betim, MG: exemplo inspirador

Comunidade Quilombola Família Araújo, de Betim, MG: exemplo inspirador. Por Frei Gilvander Moreira [1]

Celebração e Festa da conquista da 1a Comunidade Quilombola de Betim, MG: a Comunidade Quilombola Família Araújo, dia 19/03/23. Fotos: Alenice Baeta

Dia 19 de março de 2023, dia de São José, entrará para a história como um dia histórico na Comunidade Quilombola Família Araújo, de Betim, MG, situada à Rua Hum, 77, no Jardim Brasília, atrás do Hospital Regional do SUS. Reunimos mais de 100 lideranças populares para celebrarmos e festejarmos a conquista da 1ª Comunidade Quilombola da cidade de Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte, MG, que se apresentou como Comunidade Quilombola e já conquistou o Certificado de autorreconhecimento expedido pela Fundação Cultural Palmares (FCP ) do Governo Federal.

Na parte da manhã realizamos uma inesquecível celebração de ação de graças inter-religiosa ao Deus da vida, aos ancestrais e todos os bons espíritos que guiaram nossa luta pelo território. A palavra foi compartilhada e várias pessoas do Quilombo Família Araújo e muitos da Rede de Apoio resgataram a maravilha que está sendo a conquista do território, exorcizando a brutal ameaça de despejo apoiado pela Comunidade durante os últimos anos. Alegria irradiava em todos os rostos. A fraternidade flui. Todos/as irmanados/as na luta pelos direitos quilombolas. Foi servida uma saborosa feijoada no almoço comunitário preparada em mutirão, a partir da receita da matriarca Dona Zulmira. Na parte da tarde uma vibrante roda de samba embalou todos/as que festejavam. Houve também um momento solene em que três lideranças das Comunidades Quilombolas de Belo Horizonte (Quilombo Mangueiras, Quilombo Souza e Quilombo Manzo) entregaram “oficialmente” à Comunidade o Certificado de autodefinição expedido pela Fundação Cultural Palmares (FCP), reconhecendo a Comunidade Tradicional como Quilombola . “Quilombo Reconhece Quilombo!” Esta lema assumiu a todos/as presentes uma mística libertadora com partilha de palavra, gestos, sabores e cânticos quilombolas.

O Sr. José Preto, de saudosa memória, patriarca da Comunidade Quilombola Família Araújo, após peregrinar por vários municípios trabalhando com sua família em serviço braçal, trabalhou na limpeza urbana da cidade de Betim por quase 40 anos. Dona Zulmira, a matriarca do Quilombo Araújo, mulher de uma sabedoria incrível e de uma fé inabalável, diante das brutais ameaças de despejo, sempre dizia “daqui só saio para ir para o cemitério em um caixão ”.

Há quase 40 anos, um ex-prefeito de Betim, autorizou verbalmente o sr. Zé Preto a construir uma humilde casa no terreno, que era ermo e longe do centro da cidade. Entretanto, nos últimos 40 anos, a cidade foi se expandindo e a região se tornou muito valorizada pelo mercado imobiliário. O Hospital Regional do SUS [2]foi construído ao lado da Comunidade e a pressão dos especuladores imobiliários tem animado de forma vertiginosa. Com isso, nos últimos cinco anos, a “Família Araújo” passou por uma brutal “sexta-feira da paixão”, pois o atual prefeito de Betim, Vitório Mediolli, que governa para atender os interesses dos empresários, subjugando o povo empobrecido cada vez mais, entrou com um processo de reintegração de posse que, em meados do ano de 2022, já tinha transitado em julgado com uma decisão absolutamente inconstitucional e injusta, inclusive com anuência do Ministério Público de Minas Gerais. Ao lado da casa da matriarca dona Zulmira e do patriarca Zé Preto, os filhos e filhas construíram outras seis casas dignas e adequadas para morar, com preocupação ecológica. Quintais bem cuidados, com plantações de árvores frutíferas, hortaliças,

As sete famílias Araújo, hoje, compondo a Comunidade Quilombola Família Araújo, aflitas com a pressão infernal pelo despejo feito pela prefeitura de Betim, que insistia diariamente para eles saírem das casas, com ameaças de que os tratores poderiam chegar a qualquer momento para demolir as casas, buscaram socorro na vizinha Comunidade do Beco Fagundes, no Jardim Teresópolis, onde estava em uma grande Rede de Apoio resistindo às investidas brutais também do prefeito Medioli para demolir mais de 100 moradias, jogar as famílias na rua, para construir shopping, teleférico e cascata de água artificial, ou seja, roubar o território e as moradias das famílias humildes para repassar o terreno para os empresários lucrar. Inadmissível aceitar uma violência como esta.

Ao ver sete famílias, todos os membros negros, morando em sete casas lado a lado, com quintais produtivos e puxar a história da família, foi fácil concluir e dizer que estávamos diante de uma Comunidade Quilombola típica e tradicional, mas que não tinha informação sobre seus direitos e que, portanto, ainda não tinha se autodeclarado como Comunidade Quilombola Tradicional, como lhe era de direito. Os advogados populares Dr. Ailton Matias e Dr.

A comunidade estava sofrendo um processo cruel de violação em seus direitos mais profundos, tendo a sua memória ancestral e sua história invizibilizadas e apagadas com este processo injusto de despejo e de desterritorialização. Chamamos, assim, a historiadora Ana Cláudia Gomes e Patrícia Brito, que, com experiência na defesa dos bens culturais e patrimoniais históricos e arqueológicos, e iniciamos uma série de reuniões e estudos que desaguou em um Documento técnico com mais de 100 páginas em que são demonstradas todas as características de uma Comunidade Quilombola.

Em seguida aconteceu Assembleia na qual a Comunidade se autodeclarou na presença do advogado da Federação Quilombola de Minas Gerais N’Golo, Dr. Matheus Mendonça. Reuniões com a Defensoria Pública de Minas (DPE-MG), a Defensoria Pública da União (DPU) e com o Ministério Público Federal (MPF) e reivindicação à Fundação Cultural Palmares (FCP) foi o caminho trilhado para conquistarmos a Certificação da Fundação Palmares . Informamos ao juiz de 1ª instância, que tinha determinado o despejo, e, diante da autodeclaração da “Família Araújo” como Comunidade Quilombola, imediatamente ele abriu a mão do processo, pois tinha se tornado “incompetente juridicamente” e remeteu os autos à Justiça Federal, que agora terá que esperar o INCRA [3]titular da comunidade. O Quilombo Araújo poderá inclusive requerer indenização por danos morais e materiais, porque o terror feito pela prefeitura de Betim para despejá-los levou a enormes prejuízos materiais e morais.

Na luta coletiva conquistamos judicialmente, dia 5 de maio de 2022, a suspensão do despejo e da demolição das casas da COMUNIDADE TRADICIONAL QUILOMBOLA FAMÍLIA ARAÚJO. Conquistamos também o envio dos autos (processo) para a JUSTIÇA FEDERAL, a partir da Ação CIVIL COLETIVA – AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE – da Defensoria Pública de MG, da lavra da Dra. Ana Cláudia Alexandre, defensora pública da área de Conflitos Agrários e socioambientais, que peticionou alegando que “a área de 1.851,02m² se trata de área ocupada pela Comunidade Tradicional Quilombola. Exigimos o procedimento administrativo de REURBs.” Escreveu o juiz: “trata-se de ação em que se discute se a área cuja reintegração de posse é pretendida constituiria comunidade quilombola, portanto, afeta a competência da JUSTIÇA FEDERAL. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou que o julgamento de conflitos sobre posse de terra que envolve comunidades quilombolas cabe à Justiça Federal. Ressoa evidente que as demandas judiciais as quais envolvem a posse dessas áreas repercutem, de todo o modo, no processo demarcatório de responsabilidade da autarquia federal agrária. Logo é inarredável o interesse federal em tais demandas, razão pela qual deve ser assegurada a competência da Justiça Federal para o seu processamento e julgamento, sob supervisão do art. 109, I, da Constituição Federal. Declino da competência para o conhecimento, processo e julgamento do presente feito para a SUBSECÇÃO DA JUSTIÇA FEDERAL DE CONTAGEM/MG, para onde determino redistribuição do processo, em caráter de urgência. E que a União seja arrolada no polo passivo do processo.”

O processo judicial que autorizava o Município de Betim a despejar e demolir as casas da Comunidade Quilombola Família Araújo não levou em consideração o caráter coletivo do litigio, nem a condição de pessoas envolvidas – crianças, adolescentes e idosos – o que torna nulo todo o processo, vez que em nenhum momento a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais foi intimada para atuar no processo, conforme determinado a Lei. A decisão de mandar despejar e demolir as casas foi, ainda, proferida sem serem apreciadas provas fundamentais que os membros da Comunidade Quilombola Família Araújo somente obtiveram após o “trânsito em julgado” do processo originário, tais como: a) Termo de doação da área entregue à Família Araújo no ano 2000 pelo então prefeito da cidade Jésus Lima; b) Processo Administrativo, originário do ano de 2002 e não finalizado, que buscava o reassentamento prévio de todas as famílias da comunidade; c) uma autodeclaração enquanto Comunidade Quilombola Família Araújo realizada em fevereiro de 2022.

Gratidão a todos/as que estão se somando nesta luta justa, legítima e necessária. Com luta e com garra conquistamos direitos. Só perde quem não luta de forma coletiva por direitos. Quem luta coletivamente conquista direitos. Esta vitória da Comunidade Quilombola Araújo, de Betim, MG, gera esperança para muitas outras Comunidades injustiçadas no campo e na cidade e encorajará muita gente a seguir na luta por direitos e por tudo o que é justo.

Comunidade Quilombola Família Araújo, um exemplo inspirador, em Betim, MG.

21/03/2023

Obs .: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – 1ª Comunidade Quilombola de Betim, MG: Quilombo Família Araújo: exemplo inspirador. Fé na luta!

2 – Viva a cultura popular! 1ª Comunidade Quilombola de Betim, MG: Quilombo Família Araújo. Que beleza!

3 – Despejo por especulação imobiliária? “Não serão despejados!” Quilombo Araújo, Betim, MG. Vídeo 3

4 – “Despejar Quilombo Araújo p doar terreno p empresário é racismo” Quilombo Araújo, Betim/MG. Vídeo 2

5 – “Éramos quilombolas e não sabíamos.” Ao resgatar nossa história, Quilombo Araújo, Betim/MG. Vídeo 10

6 – “Já moramos até em cemitério. Já cozinhei em empresa do Medioli”. Quilombo Araújo, Betim/MG. Vídeo 9

7 – Muitas ilegalidades da decisão judicial pró despejo do Quilombo Família Araújo, de Betim/MG. Vídeo 8

8 – Apaixonante HISTÓRIA do Quilombo Araújo, Betim/MG. Por Historiadora Ana Cláudia Gomes/UFMG. Vídeo 6

 

 

[1] Frei e padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia Bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail:  gilvanderlm@gmail.com  –  www.gilvander.org.br  –  www.freigilvander.blogspot.com.br       –        www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Sistema Único de Saúde.

[3] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.