Respeitem nossos valores – e cabelos! por Henrique França

Jornal A União.

Francisco César Gonçalves é um sertanejo destemido e sensível. O cara cresceu no burburinho cultural brasileiro-nordestino, tornou-se um irreverente e talentoso cantor, encantou o mundo com suas canções e acabou na vida administrativa. Hoje, secretário de Cultura da Paraíba, Chico César mostra que, apesar das assinaturas e burocracia necessárias ao cargo que exerce, permanece um dom Quixote da cultura do Nordeste, sua terra, sua gente, seu valor.

Negro, de família humilde, sertaneja, fora dos padrões emburrecidos de “beleza”, Chico tem na palavra sua espada. E com ela vence batalhas, apesar de fazê-lo diante da impossibilidade de ferir um ou outro. Esses dias, o nome de Chico César voltou a provocar reações positivas e negativas, depois que o secretário declarou que grupos musicais que destoantes da tradição musical nordestina – as bandas de forró de plástico ou as duplas sertanejas – não serão contratados pelo Governo da Paraíba para a programação do São João local.

Com a polêmica nos principais sites de notícias da Paraíba e do Brasil, com seu nome entre os dez assuntos mais comentados do twitter, Chico César foi vítima e vilão, ganhou mais respeito por alguns e insultos por outros. E, pasmem, ganhou um bom número de internautas que declararam sequer conhecer esse “tal Chico César”! Os argumentos contrários à declaração do cantor se baseiam na vontade popular: se o povo gosta, dê a ele todo lixo em forma de canção, dancinhas e gritinhos.

O argumento é frágil e pouco convincente. Se assim fosse, que tal ampliarmos a discussão para outras áreas. Se o povo gosta de fumar, libera o cigarro; se o povo gosta de acelerar, libera essa besteira de limite de velocidade nas ruas; se há pais que não acham necessário matricular seus filhos em uma escola (melhor levá-los para pedir um trocado nos semáforos), deixe que eles, como pais decidam. Parece exagero? Sim, mas não é. A música é, sim, um instrumento de mudança social. Aliás, qualquer forma de arte possui essa capacidade.

Então, quando eu relego a décimo plano uma música que nos identifica como povo, que fala a língua do Nordeste, que nos remete a memórias ancestrais dos nosso pais, avós, que valoriza as pessoas, as relações, mesmo os embates históricos, as lembranças de uma trajetória nordestina – seja cantando um pássaro ou um lamento do homem sertanejo, seja narrando o despertar da adolescência da menina do interior ou uma disputa engraçada de embolada -, estou lançando toda essa carga de história aos resíduos memoriais.

Não, não se trata de alienação ou de direcionamento do que eu devo ou não ouvir. Trata-se, sim, de respeitar o povo a quem ele – Chico César – serve. Caso contrário, há quem concorde em pagar caro por artistas que elevem em suas canções o machismo exacerbado, o xingamento gratuito, a insinuação de pedofilia, a exposição de mulheres como pedaços de carne rebolando sobre um palco, sendo desejadas de forma tão obscena que se torna vergonhoso por se dar em espaço público, que traz em suas letras refrões do tipo “vem molhar o meu corpo, quero ver se vai resistir o que tenho aqui”, “o meu bolso é minha guia, a bebida é a razão”, “eu juro não vou sossegar – se você não me der, desculpa, eu vou roubar”? Tem mais: “Vai começando na cabeça/ Vai descendo pro queixinho/ Menina gostosinha, eu sou o seu neguinho/ Alisando, alisando, esse lindo umbiguinho/ Se você não aguenta fale assim pra mim: Ai painho, a-a-ai painho.”

Atenção, críticos e suas metralhadoras giratórias. É isso que vocês estão defendendo? Não se trata, aqui, simplesmente de arte. Trata-se de comportamento, respeito, o mínimo de coerência. Porque quando um “painho” estupra a própria filha ficamos todos revoltados. Porém, quando um “artista” canta isso, insere uma voz de criança para cantar “a-a-ai painho” ninguém se constrange ou se indigna? É isso mesmo? Chico César é um artista que está secretário. Não cabe aqui avaliar sua atuação administrativa, mas esse é o mesmo homem que escreveu, na canção-desabafo “Odeio Rodeio”: Me tira a calma, me fere a alma, me corta o coração. É bom pro mercado de disco e de gato, laranja e trator / Mas quem corta a cana não pega na grana, não vê nem a cor.

Palavras de Chico, como secretário: “Nunca nos passou pela cabeça proibir ou sugerir a proibição de quaisquer tendências. Quem quiser tê-los que os pague, apenas isso. São muitas as distorções, admitamos. Não faz muito tempo vaiaram Sivuca em festa junina paga com dinheiro público aqui na Paraíba porque ele, já velhinho, tocava sanfona em vez de teclado e não tinha moças seminuas dançando em seu palco. Vaias também recebeu Geraldo Azevedo porque ele cantava Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em festa junina financiada pelo governo aqui na Paraíba, enquanto o público, esperando a dupla sertaneja, gritava “Zezé cadê você? Eu vim aqui só pra te ver”.”

Dizem que Chico César está sendo intolerante. Talvez devêssemos nós, como “baluartes” da dignidade, nos colocarmos de forma a não tolerar mais certas manifestações “culturais” que nos enfiam goela abaixo valores distorcidos em forma de canções “divertidas”. Não sou preto na pele, não sou musicalmente talentoso como nosso secretário de Cultura, mas aproveito alguns poucos fios de cabelo que agrisalham minha cabeça para cantar com Chico:

Respeitem meus cabelos, brancos
Chegou a hora de falar
Vamos ser francos
Pois quando um preto fala
O branco cala ou deixa a sala
Com veludo nos tamancos.


Henrique França [@RiqueFranca] Texto publicado na coluna #CotidianaMente, do Jornal A União, em 20/04/2011

7 comentários sobre “Respeitem nossos valores – e cabelos! por Henrique França”

  1. Parabéns a Chico César. Minhas filhas que moram nos States adoram ele. Concordo plenamente que para resgatar nossas raízes o povo tem que ser educado, ou seja, oferecer oportunidade de conhecer nossa arte que é vasta e bela.
    Quem quer outro típo de música, importada ou sem sentido, que pague.
    Espero que a nova gestão da cultura salve manifestaçães folclóricas comoa s que existem em nosso estado, especialemte a Nau Catarineta, Cirandas, Cocos de Roda, Grupo de Pífanos, . Sei que em Santa Luzia ( e só lá), o Camaleão.
    Há muitas faces da cultura: música, folclore, teatro, cinema, artes plásticas, circo, etc
    Deus o ilumine sempre, Chico Cesar
    Magdala Cavalcanti de Melo

  2. Chico César também fez música preconceitusa e de incitação à violência. Vejam a letra de “Feriado” do disco “Francisco, forró e frevo”:

    “Estou pensando em viajar no feriado
    Mas se eu souber que uma vadia ou um viado dormiu com você
    Não quero saber pode ser um novo amor ou ex-namorado
    Não quero saber. Você vai desejar não ter acordado”

    Então todo marido que bate em mulher é vitima das letras do nosso secretário de cultura.

  3. Ótima defesa. Está mais do que correta em todos os sentidos a atitude do secretário. Se quiser escutar coisa ruim, pague por ela. Se não puder pagar melhor ainda, fica só com a parte boa.

  4. Toda boa cultura, toda burrice e ignorância tem sua razão de ser, assim como todo eleitor tem o governo que merece. É controverso criticar o gosto do povão, julgar os problemas da cultura alheia. Chico Cesar, enquanto secretário (fato novo) na Paraíba , está corretíssimo no uso de suas atribuições, isso é que é política pública, e por favor não contrate o Durval Lélis e o Asa de Aguia só porque estavam num out-dor segurando uma sanfona no peito. Além do mais, não se pode aplicar censura prévia nesse monte de bobagem que somos obrigados a ouvir, infelizmente, poderia até fazê-lo, mas muito desse lixo cultural tem origem dos seus guetos e becos que se expandem como um deboche a questão social, então, mais um problema de cultura local, o que podemos dizer “comprem e consumam a gosto, ou, não comprem desaprovando-o sob protesto”. Ser ou não ser eis a questão.
    O pagode “trash” de origem baiana, o forro eletrônico que de romântico nada diz, são piratas sonoros que não pagam impostos, exageram no apelo sexual visual e na pobreza das letras, desvirtuando completamente as suas origens, não contratem esses caras. Essa juventude de hoje não imagina que o samba de roda, a ciranda, o forró e o maracatu que surgiram da pisada do barro do chão, é o nosso maior patrimônio musical. Que juventude é essa? Do discurso de um poeta baiano em 1968 e sob vaias do auditório (TUCA) ficou dito que “É proibido proibir”, mas acho que não quero ouvir. Lamentavelmente Caetano, Djavan, Gil e outros não criam mais como antigamente, as fontes de inspirações secaram, mas existe uma geração de músicos novos, de diferente ritmos, muito ávida para obter seu espaço, para mostrar o seus estilos musicais, porém, em contra tempo, existe uma máquina pesada e manipuladora da cultura que ditam as regras do mercado musical. Na Bahia por exemplo, O império ditador Chicleteano que cresceu pelo método “Jabarista”, detém as rédeas desse segmento em Salvador. Nada passa sem a aprovação desse grupo, são empresas que fazem o círculo envolta das festas populares que rezam pela cartilha desse poderoso império e agora se expandem aos outros eventos regionais do interior do estado como as Festas Juninas, uma disputa desleal com os trios de forro nato do nordeste que precisam nessa época ganhar o seu mísero sustento. Esse grupo não pára de ganhar dinheiro o ano todo, pelo o Brasil a fora. Cuidado! Tomem muito cuidado.
    Louvável! A comissão do carnaval do estado de Pernambuco tomou esse devido cuidado. Atenta e preocupada com sua cultura local proibiu a divulgação de músicas que são tocadas pelas bandas que participam desse grupo. O fato de eu ser baiano não impede de dizer que achei nobre essa medida. Que seja Paraíba, Pernambuco o nordeste inteiro, contratem se quiserem, mais não permitam que divulguem esse monte de bobagem.

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