“Precisamos de outra proposta de reforma agrária, porque a atual é inviável”

), Aroldo José da Silva, da direção nacional do MPA em Sergipe. Foto: Eduardo Sá.

O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) nasceu em 1996 num acampamento realizado no Rio Grande do Sul, após uma grande seca. É um movimento camponês, de caráter nacional e popular, integra a Via Campesina e outros movimentos, e atualmente está organizado em 17 estados do Brasil. Seu principal objetivo é a produção de comida saudável para o povo brasileiro, e resgata a identidade e cultura camponesa com respeito às diversidades regionais.
Em entrevista à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Aroldo José da Silva, da direção nacional do MPA em Sergipe, fala sobre a importância das sementes crioulas na produção agrícola nacional e as barreiras enfrentadas pelos pequenos agricultores na comercialização de seus produtos. Segundo ele, é preciso criar políticas públicas para garantir a permanência dos jovens no campo e elaborar outra proposta de reforma agrária para viabilizar um novo modelo de desenvolvimento no Brasil.
O que o MPA vem discutindo nos últimos anos?
Outro sistema e modelo de produção. Para nós é dentro do modelo de produção agroecológico, orgânico, sistema camponês de produção, que avançaremos . A gente acredita que a agroecologia não é uma alternativa e sim uma coisa concreta. Propomos outro modelo de sociedade e um desenvolvimento no campo pensando também nos recursos naturais para as futuras gerações. Precisamos da agricultura sustentável, pois alguns elementos do meio ambiente são essenciais para a agricultura. É um debate forte no movimento a questão da agroecologia, é a única saída que podemos de fato discutir hoje.
Quando você fala de uma proposta concreta, há números sobre as experiências da agroecologia?
Não temos dados de quantas famílias temos na base do MPA fazendo agroecologia, mas tem muita gente. Não tem mais por influência do próprio governo, e políticas de incentivo a esse modelo de produção convencional baseado nos produtos químicos. Sabemos o quanto é difícil executar essa proposta, porque é um debate político, teórico, que acontece lá na ponta na prática. Precisa de muito investimento, de muita dedicação por parte do governo e organizações, para que as pessoas que estão dentro desse sistema de produção façam gradativamente a transição para uma produção agroecológica.
Houve grande investimento na desconstrução do modelo agroecológico por conta do mercado, da influência das grandes multinacionais e do próprio latifundiário para estabelecer esse padrão. Talvez não tenha muita gente fazendo esse debate, mas muitas estão desenvolvendo a agricultura ecológica em várias regiões do Brasil. Principalmente nas que o chamado desenvolvimento ainda não chegou, porque aonde ele chegou veio com esse modelo atropelando. Se tivéssemos políticas públicas de valorização e incentivo à agroecologia, com certeza essas regiões sem desenvolvimento sairiam muito na frente. Estudos dizem que aonde foi destruído vai levar no mínimo 10 anos para fazer uma produção agroecológica, porque o solo já foi desgastado.
O agricultor perdeu hoje o que é mais essencial na agricultura: as sementes. Por conta de programas de governo, de incentivo às multinacionais, incentivo dos produtos químicos, etc. Você cria uma semente, mas junto com ela já pesquisa quais são os venenos indicados para combater determinada praga ou o adubo químico que vai ajudar a ela se desenvolver. Em algumas regiões no Brasil você não encontra mais um camponês que tenha semente, e isso é um problema sério. Você torna a agricultura muito dependente do que é mais essencial para realizá-la. Ficamos refém do mercado, das multinacionais. Sem terra você consegue produzir nas terras do vizinho, fazer um contrato de arrendatário, mas se ninguém tem semente não consegue nada. Esse é um debate essencial, principalmente para a agricultura familiar, que com todas as dificuldades ainda produz 70% dos alimentos de consumo do povo brasileiro.
Você falou sobre barreiras na comercialização, e deu o exemplo de um acordo com a Venezuela.
O Brasil, por conta da legislação vigente, tem estados que não só as sementes, como outros produtos da agricultura familiar, estão impedidas de ser comercializadas diretamente com o consumidor. Tem uma exigência da Anvisa, e acreditamos que temos de avançar no processo de higienização do nosso produto. Mas entendemos que o grande debate é o controle do mercado. Porque quando você cobra a qualidade melhor do produto, tem que criar condições para que essas pessoas sejam inseridas no processo. A semente está sendo controlada pelas grandes empresas que, segundo elas, se especializaram nessa produção: transgênicas, híbridas, etc. O agricultor fica refém desse mercado, porque a semente não tem capacidade de gerar outras sementes e todo ano você tem que comprá-la.
Unidade de Beneficiamento de Sementes do MPA em Santa Catarina. Foto: Arquivo MPA.

Temos feito um grande trabalho a nível nacional de resgate das variedades crioulas. Alguns agricultores preservam ainda 15 variedades de sementes, que vêm sendo passadas de pai para filho. O local que mais avançamos nesse processo, um dos que mais perdeu também, foi Santa Catarina. Estamos há mais de 10 anos discutindo, e trabalhamos mais de 27 variedades de milho e muitas variedades de feijão. Como o governo compra das multinacionais para distribuir aos estados onde eles estão distribuindo, poderia comprar as sementes e variedades crioulas que os camponeses estão resgatando e cultivando.
Vamos realizar a 3 Festa Nacional das Sementes Crioulas, de 18 a 22 de abril, que tomou uma dimensão internacional. Vai ter gente de 6 países diferentes, eles ajudam no debate das experiências que outros países estão desenvolvendo e olham as nossas. O governo diz que ainda não estamos no estágio de elaborar pesquisa e discutir as variedades, mas de fato ele não quer que os agricultores entrem nesse mercado porque vamos concorrer diretamente com as empresas. Nossa proposta não é uma produção de sementes para deixar os agricultores reféns, e sim fazer com que eles tenham autonomia.
Em 2011 fizemos uma visita à Venezuela e conhecemos suas experiências de produção.  Conversamos com o presidente Hugo Chávez, porque eles importam mais de 80% dos alimentos consumidos. Isso é um dilema, num país com uma proposta revolucionária. Eles vieram conhecer nossas experiências e sementes, e foi feito um acordo com o MPA de produzirmos lá 12 mil hectares de feijão nesse ano. Conseguimos negociar 270 mil toneladas, isso não é pouca coisa. Mandar legalmente essas sementes para fora, e não negociar com seu próprio estado é complicado. Negociamos aqui ilegalmente, sem o reconhecimento da produção e da valorização que essas sementes significam para nós.
Em que estágio está essa negociação com a Venezuela?
Além de vender as sementes, vamos mandar uns 15 técnicos agricultores para ajudar. Já tem gente lá, e conforme o processo vai andando, escolha de solo, preparação da área, o estágio da produção e a necessidade, e vai um grupo maior para ajudar. A tarefa é ajudar, porque eles têm técnicos e daqui a dois anos, quem sabe, eles tocam sem precisar da gente. Se tiverem uma boa produtividade no próximo ano, talvez não seja mais necessário adquirir sementes. Não queremos que eles fiquem refém do Brasil, e depois podemos inserir outras variedades, como o milho. Futuramente outras entidades podem estar indo também para a Venezuela, e ajudar àquele país se tornar sustentável não só no petróleo.
Avançamos agora na indústria de beneficiamento de sementes. A presidente Dilma tem tudo para ir à festa em Santa Catarina inaugurá-la, pois foi financiada com recursos federais. É um dos primeiros passos que os movimentos sociais têm para avançar na recuperação das sementes crioulas. Temos um debate nacional, acho que o estado mais forte é a Paraíba, com as sementes da paixão. São experiências práticas, mas entendemos que sozinhos não vamos dar conta disso. E acreditamos que vamos dar conta, porque muita gente está buscando organizar e recuperar aquilo que foi destruído e tirado dos agricultores. Mas não é uma coisa fácil, porque precisa de todo um apoio do estado, de assessorias técnicas, de incentivo, valorização dessa produção. Entendemos que temos grãos e sementes, e o quilo de grão é muito mais caro. Uma das dificuldades para a agricultura familiar se sustentar é a falta de uma política pública de agregação de valor na sua produção, porque ela simplesmente produz matéria prima.
Unidade de Beneficiamento de Sementes do MPA em Santa Catarina. Foto: Arquivo MPA.

E a perda do conhecimento da produção agroecológica nas novas gerações, como é vista no MPA?
Estamos discutindo a importância de resgatar isso. Temos vários problemas acontecendo no campo que vão refletir diretamente na cidade, como a perda do incentivo à juventude ficar na roça. O modelo de produção convencional está aí há 30 anos, desde a revolução verde, e aquele que era criança vem plantando baseado na produção química e destruição do meio ambiente. Foram criados em outro sistema, por isso estamos vivendo um dilema no Brasil na questão do êxodo rural. Saiu uma pesquisa de Santa Catarina que em cada 5 famílias, se amanhã os velhos morrerem a terra não vai ser mais passada para nenhum filho porque todos já saíram. Está ficando um campo velho, com pessoas que têm muita vontade de trabalhar mas sem força. E aqueles que têm força, que também querem trabalhar, não conseguem por falta de condições. Todos partem para os grandes centros urbanos, que não crescem, incham. Crescimento é quando cresce a população com dignidade na educação, trabalho, saúde e moradia. Com isso os problemas de drogas e prostituição, dentre outros, vão se alastrando. Quando tem um fim de semana, por exemplo, a juventude da cidade vem para cá porque há menos violência. Uma das garantias de permanência da juventude é ter acesso à universidade próxima. Hoje 90% dos filhos dos agricultores não chegam à universidade, e todos querem chegar ao nível superior. Tem a questão de gênero também, das mulheres, a valorização e importância do seu trabalho na agricultura.
No nordeste, 90% da juventude está nas grandes obras do PAC e da Copa do Mundo, das hidroelétricas e ferrovias. Mas a gente sabe que todo o investimento nessa estruturação, que é também para a escoação da produção do agronegócio, depois não vai ter mais. Os jovens não saem profissionais, então é um caminho quase sem volta porque você vai perder uma cultura e vivência com a roça. Os problemas vão ser colhidos daqui a uns 20 anos. Tem cidades pequenas que estão despejando 20 mil homens para trabalhar, imagina a desgraceira que não vai ficar? Precisamos estar conscientes, porque temos um desenvolvimento temporário, mas não sustentável. Pode ser um desenvolvimento para meia dúzia de pessoas, porque os trabalhadores constroem mas quem ganha dinheiro depois são os outros. Os meninos vão para barragem e as meninas para as cidades trabalhar de doméstica, sempre empregos temporários que não lhes dão garantias trabalhistas. Para a permanência da juventude no campo precisamos de várias ações políticas voltadas para essa realidade.
Não dá para falar em agricultura sem falar de terra. Como o MPA vê a reforma agrária atualmente?
Não pode se falar de agricultura sem falar nos meios de produção, que é a terra, semente, água, tudo que é essencial para isso. Nós estamos vivendo o inverso da reforma agrária em algumas regiões do Brasil. Nos últimos 20 anos avançamos muito com as lutas do MST, que foi o movimento mais forte junto a outros, mas sabemos quanto o governo e os próprios fazendeiros têm tentado desconstruir e desvirtuar a luta pela terra. Nos últimos anos não vimos um grande latifundiário ser desapropriado. Quantos programas de reforma agrária ocorreram nos últimos 15 anos? Muitos. Então tudo isso na verdade tem o objetivo de desmobilizar a luta pela terra. Houve avanço, mas, principalmente no governo Lula, ficou muito distante da proposta. Nos últimos 6 anos o governo conseguiu legalizar muitos assentamentos que já existiam, mas para o povo ele dá dados de novas famílias assentadas. Nos últimos três anos, a política, principalmente da agricultura familiar, gerou um índice de inadimplência quase generalizado. Saiu uns dados na semana passada que a gente tem no nordeste uma média de 200 mil pequenas propriedades no processo de hipoteca. É a reforma agrária ao inverso: ao invés de desapropriar os latifúndios, cria as condições para o latifúndio comprar as terras dos agricultores.
Você assenta duas famílias, mas uma vai ficar sem terra depois. Precisamos de outra proposta de reforma agrária no Brasil, porque a que está sendo executada não é viável. Porque a gente não come terra, ela é para trabalhar e gerar produção, mas jogam uma família lá para o resto da vida sem nenhuma perspectiva de desenvolvimento e sustentabilidade. O próprio êxodo rural já passa pelos assentamentos, então a gente acredita que a reforma agrária tem que ser feita, mas com outra conotação. Não é fácil, nem normal, passar 10 anos debaixo de uma lona e dois anos depois a família sair. Pode ter certeza que tem alguma coisa errada, pois o sofrimento é grande.
Só existe uma saída para a permanência da juventude no campo: a reforma agrária com distribuição dos meios de produção. Muita gente está na roça porque não tem nem condição de sair do campo. Temos que avançar nas pesquisas, nas tecnologias apropriadas para cara região, porque temos um país continental e muito diverso. Se não for assim, não vamos avançar. O nordeste, por exemplo, é uma região que foi desconsiderada até hoje, só querem sua força de trabalho. As obras estão cheias de nordestinos, e estão em todos os centros. Precisamos de outra proposta para o Brasil, pensada para cada região e sua diversidade. Essa luta que canaliza a possibilidade de mudança, porque tem muita gente descontente. E tem gente querendo que continue, porque do jeito que está uma minoria se dá muito bem. A maioria está sendo expulsa da roça, inchando as cidades, e os problemas se refletindo para toda a sociedade. Faltam políticas de incentivo e pagamos por isso. É uma luta de toda a sociedade.
(*) Entrevista reproduzida da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

Diário fundado em 13 de maio de 2000