Portas fechadas, Presença inesperada

 2º Domingo da Páscoa – Jo 20, 19-31

Neste 2o Domingo da Páscoa, o evangelho lido hoje nas Igrejas (João 20, 19- 31) revela que todas as vezes que nos reunimos no nome de Jesus, refazemos e atualizamos aquele encontro dos discípulos com o Ressuscitado. Eles estavam reunidos em uma sala de portas fechadas, com medo dos sacerdotes e doutores da Bíblia.

Conforme este evangelho, naquele domingo, a pequena comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus estava reunida de portas fechadas. Hoje, é o mundo inteiro que vive de portas fechadas. Nossas cidades são marcadas pelos muros altos dos edifícios nos quais as pessoas se aprisionam com chaves e senhas de portões eletrificados e nos bairros de periferia, as portas fechadas com medo de milícias e gangues. Cada país fecha de mais a mais suas fronteiras contra migrantes e refugiados. Diante deste cenário, vivemos em um mundo  sob o domínio do medo e do desamor.

O nosso mundo está dominado por guerras. A sociedade é organizada para, sistematicamente, impedir milhões de pessoas a viverem uma vida digna, com seus direitos humanos reconhecidos. Para triplicarem lucros e ampliarem sempre mais o seu luxo, a elite de menos de 1% da humanidade mantém bilhões de pessoas em situação de semiescravidão.

A boa notícia deste evangelho é que mesmo com todas as portas fechadas, Jesus Ressuscitado se deixa ver pelos discípulos e lhes traz a Paz, a alegria e a reconciliação para iniciar uma nova missão. O Cristo  vem e se insere em nossa realidade. Não há portas fechadas que impeçam a sua presença. Ele se deixa ver.

Neste evangelho, o que, em primeiro lugar, o Ressuscitado mostra aos seus amigos e amigas são suas chagas. Não mostra um corpo glorioso e etéreo e sim as chagas da cruz. É o curador ferido. Ele ressuscita desse modo: revelando as feridas que têm no corpo e na alma. Assim, nos ensina o caminho da ressurreição. Pede que vençamos o medo e a vergonha e aceitemos revelar nossas feridas interiores.

Só quando aceitamos tocar nas feridas do Ressuscitado, que, hoje, se manifesta em todo um povo chagado pela crueldade da injustiça estrutural e pela cultura desumana que esta sociedade propaga. Só quando nos solidarizamos com as pessoas feridas, nas quais o Ressuscitado aparece hoje para nós, podemos ter a experiência feliz que foi a de Tomé.

Tocar nas chagas de Jesus é tocar nas chagas da humanidade hoje. Precisamos reconhecer a presença do Espírito nas vítimas da sociedade atual. E são tantas pessoas. As pessoas que, neste momento, nos diversos serviços, vivem a solidariedade e cuidam dos outros tocam nas chagas de Jesus e testemunham ressurreição.   Deixemos que os povos originários, cuja semana celebramos neste mês de abril, entrem na sala onde estamos fechados e nos mostrem suas feridas. São ressuscitados porque resistem há mais de 500 anos e nos ensinam lições de resistência. Suas feridas são provocadas pela mesma doença que atinge toda nossa sociedade: ambição e o desamor.

Deixemos que os amigos e amigas possam tocar e cuidar de nossas feridas. Só quando assumimos nossas chagas  e aceitamos que os amigos/as cuidem delas, é que podemos viver a experiência da ressurreição. Só assim, podemos anunciar um modo novo de viver ressuscitados. Assim, as chagas, do Ressuscitado e as nossas, se tornam como que chagas luminosas. É ao reconhecer Jesus vivo nas pessoas feridas, que os discípulos se enchem de uma imensa alegria, como a alegria que Jesus havia prometido na ceia quando disse: “Hei de ver vocês outra vez e vocês se encherão de uma alegria tal que ninguém poderá tirar de vocês essa alegria” (Jo 16, 20).

Este domingo é o oitavo dia da ressurreição. Assim como Tomé era discípulo, mas não estava com o grupo no primeiro domingo, também nós não estávamos. Tomé nunca aceitou Jesus ter vindo a Jerusalém e deixou claro no capítulo 11 que ele estava ali forçado. Acreditava em um Jesus, enviado de Deus, mas sem cruz…. E agora não acreditava mais. Os outros tinham medo, tinham dúvidas, não sabiam se acreditavam ou não, mas seja como for, ficaram juntos em uma sala fechada… Tomé, não. A fé dele era individualista, era eu e Deus… Queria ser discípulo de Jesus, mas sem comunidade. Com os outros, ele não se dava. E não previa cruz, chagas. (Só se eu tocar nas chagas dele, vou crer que isso é assim, é real).

No oitavo dia da ressurreição, portanto, no domingo de hoje, Jesus se deixa ver e se deixa tocar… Ao se mostrar aos discípulos, mesmo com portas fechadas, não mostra nenhuma luz especial. Não fala de vitória nenhuma. Não voa, nem parece ter nada de especial… Mostra as chagas e pede que Tomé toque e veja o sangue ainda correndo na ferida que tem no peito nu. Só quando a gente tem coragem de mostrar as nossas feridas interiores e sociais), parece que a vida pode se recompor e – se tornar nova…

Jesus ressuscitado ressuscita os discípulos. Faz eles passarem do medo à liberdade, à paz, à alegria e ao perdão. Hoje, Ele nos convida para reconstruir as nossas vidas, através do perdão a nós mesmos e aos outros. A ressurreição de Jesus se renova para nós hoje. Como Tomé, podemos tocar nas chagas do Ressuscitado nas pessoas feridas pelas injustiças da vida.

Tanto na época em que o evangelho de João foi escrito, como nas Igrejas e no mundo de hoje, muitas pessoas creem em um Cristo aéreo, celestial e pouco humano. Precisamos crer e testemunhar um Jesus histórico, real, com corpo e com chagas. É diante do ser humano meio nu, ferido e sangrando, que fazemos como Tomé. Nós nos prostramos e dizemos: Meu Senhor e meu Deus. Se não formos capazes de fazer isso diante das pessoas concretas, cada uma com suas feridas, não testemunhamos a ressurreição de Jesus.

Acolhendo-nos uns aos outros/umas às outras como presença do Cristo Ressuscitado, podemos experimentar, mesmo em meio às dores e aos medos justificados de cada dia, uma imensa alegria, a mesma alegria que os discípulos sentiram ao ver o Ressuscitado e a plena reconciliação conosco mesmos, uns com os outros e com Deus.

Neste sábado à tarde, vigília do domingo que fecha a oitava pascal, no Recife, um grupo de cristãos e cristãs de várias Igrejas e também alguns irmãos e irmãs de outras religiões, principalmente de tradições negras e indígenas vão refazer e atualizar o chamado Pacto das Catacumbas, compromisso que há quase 60 anos, Dom Helder Camara e mais 42 bispos assinaram em Roma, durante o Concílio Vaticano II. Em 2019, no mesmo lugar (As catacumbas de Domitila), bispos, missionários, pessoas indígenas e alguns pastores evangélicos reafirmaram o Pacto incluindo o cuidado com a Amazônia e a Mãe-Terra. Agora, no Recife, a atualização deste pacto, hoje, lança para o Brasil todo a proposta de um Mutirão da Profecia, ou seja, até o dia 7 de setembro, dia do grito dos excluídos, reafirmar para o Brasil inteiro o que acreditamos: a fé cristã tem de ser profética, como comunhão com as comunidades e organizações populares e contra a pobreza injusta.

Toquemos nas chagas não apenas das pessoas mas das estruturas do nosso país para mudarmos o mundo. Façamos nossa a oração de um velho índio iroquês no Canadá:

 “A Ti me curvo na força do vento, a ti bebo nos raios do sol. 

Aos montes, proclamo tua majestade e contemplo tua imagem refletida no lago. 

Escuto tuas palavras na voz dos passarinhos e recebo de ti a tranquilidade 

                 para conviver em paz com todas as criaturas”                

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