Por mar, por terra ou por trilhos, o caos

Em 1998, último ano da administração Marcello Alencar (PSDB) no governo carioca, e do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o país estava imerso em grave crise econômica. Ainda assim, o pensamento neoliberal, causador das turbulências, conservava seu vigor. Para o setor de transportes do Rio de Janeiro, em situação muito problemática, o diagnóstico dado pelo Estado foi o mesmo de todo esse período, a privatização. Os chamados três modais – aquaviário, ferroviário e metroviário –, foram vendidos à iniciativa privada. Saindo do controle público, dizia-se, a gestão fatalmente melhoraria.
Onze anos depois, o que era problemático tornou-se caótico. O volume de passageiros mais que dobrou – de 500 mil passou a 1,1 milhão. Os compromissos assumidos pelas empresas que administram os modais são desrespeitados em uma infinidade de aspectos. A Supervia, que administra os 225 quilômetros de ferrovias, não ganhou sequer um novo trem. O metrô também opera com os mesmos 33 carros. Regiões como as avenidas Brasil e Presidente Vargas têm congestionamento crescente.
O quadro de funcionários foi extremamente reduzido nos primeiros anos da privatização, e a incidência de acidentes cresceu. “Não há qualquer projeto para o sistema de transportes do Rio”, denuncia Valmir Lemos, o Índio, presidente do Sindicato dos Ferroviários. Os gastos do Estado permanecem. Se antes da privatização eram de R$ 400 milhões, hoje são de R$ 126 milhões. O valor seria suficiente para construir uma nova estação de metrô a cada dois anos, ou comprar 60 veículos novos para a Supervia, que opera os trens.
Evidentemente, o governo não conta mais com o lucro das bilheterias para arcar com essas despesas. Esse dinheiro agora cabe às concessionárias, além de novas fontes de receita – a publicidade ostensiva nos sucateados veículos, e o arrendamento dos pontos de embarque para lojas. “A Central do Brasil [de onde partem os trens] virou um shopping. A nossa impressão é que eles nem querem que os passageiros embarquem”, diz Índio.
As empresas concessionárias ambicionavam, no início do processo, controlar todos os três modais. Apenas um grupo participou da licitação de 1998, pagando o preço mínimo. Entre outras empresas, o grupo era composto pela companhia 1001, do setor rodoviário, e a construtora Andrade Gutierrez. A 1001 é, hoje, a maior acionista das Barcas S/A. O metrô é controlado por fundos de pensão e pela OAS – construtora que forneceu dinheiro para campanha de todos os candidatos a prefeitura em 2008, exceto os contrários ao financiamento privado. Segundo Índio, não se sabe hoje que empresas controlam a Supervia.
Segundo estudo do movimento social Direito pra Quem (DPQ), o aumento do preço das passagens cresce, a cada ano, acima da inflação. No transporte ferroviário, o mais popular (os passageiros ganham entre 1,5 e 2 salários mínimos), as tarifas aumentaram acima da média dos três modais. “A política de transportes na cidade deixa bem claro quem são os desejáveis e quem são os indesejáveis. Para o carioca, os que são de uma classe social inferior só servem para trabalhar”, resume Guilherme Pimenttel, do DPQ. Os dados também revelaram que o metrô do Rio é o mais caro do país.
Guilherme e Índio denunciam que trabalhadores estão, frequentemente, dormindo nas ruas e nas praças durante os dias úteis, e voltando para suas casas apenas nos finais de semana, para diminuir os custos. “E ainda são reprimidos pelo choque de ordem”, ironiza Índio. O sindicalista denuncia que a sociabilidade dos trabalhadores termina completamente alterada, com perda de referências familiares e religiosas.
Cada vez mais sucateados, os ônibus passaram a contar já há alguns anos com uma novidade. Algumas empresas abdicaram de trocador em seus veículos. Os motoristas cobram a passagem com o ônibus em movimento, e as tarifas se mantém. Parar fora do ponto, e andar a toda velocidade, são características dos ônibus que já fazem parte do cotidiano carioca há mais tempo.
Os problemas seguem. Há um mês, o Sindicato da Empresas de Ônibus do Rio (Rio Ônibus) chegou a enviar uma correspondência aos idosos da cidade afirmando que existia uso abusivo do RioCard, cartão que possibilita a gratuidade no transporte a maiores de 65 anos. Após denúncias na mídia, terminaram intimados pelo Ministério Público a enviar nova carta, desconsiderando a anterior.
Quanto aos táxis, existem cerca de 30 mil, submetidos ao controle das cooperativas e das máfias da Polícia – em alguns trechos, paga-se R$ 15,00 diários aos policiais. Um comentário freqüente entre os taxistas é o de que os dois últimos prefeitos da cidade, César Maia (DEM) e Eduardo Paes (PMDB), teriam parentes ou sócios no controle de táxis, em determinadas regiões.
O transporte de vans, legais ou não, surgiu para desafogar parcialmente o trânsito carioca, o segundo mais congestionado do país. Entretanto, muitos veículos estão subordinados a máfias ligadas a estruturas da política institucional, e outros são controlados por milícias. Segundo o relatório da CPI das Milícias, de dezembro de 2008, as organizações paramilitares já controlavam 250 rotas de vans na cidade. As taxas, por motorista, seriam de cerca de R$ 45,00 diários. O sistema gera um lucro estimado em R$ 60 milhões por ano.
No metrô, previa-se no contrato de privatização que os passageiros teriam, na linha 1, um trem a cada três minutos, índice muito distante da realidade em 2009. Mesmo assim, teve sua concessão renovada, no ano passado, por mais 20 anos.
As concessionárias inventam regras curiosas para alavancar seus lucros. Os cartões-bilhete passaram a ter prazo de validade. Após dois dias, deixam de valer. As bilheterias podem recomprá-los por um preço menor – de R$ 2,80 por R$ 1,50. Um projeto do deputado estadual Alessando Molon (PT), tenta derrubar essa incrível regra. “A lógica do metrô parece feita para obrigar o passageiro a comprar o cartão que dá direito a várias viagens. Diminui o número de vezes que se compra, diminuindo naturalmente o número de bilheteiros”, conclui o passageiro Anderson Salles Júnior.
O fato mais comentado na mídia, entretanto, ocorreu em abril. Um dia após o Jornal do Brasil denunciar que os trens estavam andando de portas abertas, a TV Globo filmou um flagrante. Funcionários da Supervia obrigavam os passageiros a entrar nos veículos utilizando chicotes. As chicotadas chocaram a cidade. O jornal O Globo publicou extensas reportagens denunciando os prejuízos da privatização que há onze anos ele defendia.
Índio denuncia que, após a privatização, passaram a haver acidentes na Supervia dos quais ninguém fica sabendo. O Sindicato dos Ferroviários fez uma greve no período, cuja reivindicação eram as melhorias das relações de trabalho. “Teve uma funcionária demitida, por exemplo, porque deixou muita gente passar com gratuidade. No dia do ocorrido, tinha havido no Centro uma manifestação de aposentados. A culpa foi dela?” denuncia.
O sindicalista comenta que a lógica que rege os transportes do Rio é a da criminalização da pobreza. O transporte mais sucateado é sempre o destinado às populações mais pobres, mas as tarifas não são menores. “A única linha que tem um trem diferente, melhor e com ar condicionado, é a que vai pra Deodoro. Não por acaso é a única região rica”, comenta.
Revolta das barcas comemora meio século sem mudanças significativas
Em maio de 1959, a moeda nacional era o Cruzeiro, e o presidente da República, Juscelino. A Bossa Nova e o Cinema Novo começavam a encantar a elite brasileira. O craque da seleção campeã mundial era Didi, mas já despontava no time um garoto de nome Edson. No dia 22, em Niterói, capital do estado do Rio de Janeiro, oito mil pessoas tentavam embarcar para a cidade do Rio de Janeiro, capital do país. Um militar tentou conter o agito desferindo alguns golpes, e a população se enfureceu. O saldo foi de seis mortos, 118 feridos, e muito vandalismo.
A Revolta das Barcas completou 50 anos no último dia 22, e os problemas hoje relatados, e cuidadosamente investigados por uma CPI na Assembléia Legislativa (Alerj), são exatamente os mesmos da época. Nos dois atos organizados para lembrar a data, uma iniciativa se repetiu. Manifestantes compararam notícias dos jornais da época com as dos periódicos contemporâneos. As semelhanças impressionam.
O deputado estadual Gilberto Palmares (PT) decidiu abrir a CPI quando, em audiência pública da agência reguladora, deparou-se com demandas estranhas da empresa Barcas S/A, administradora do transporte aquaviário. Queriam extinguir o funcionamento em alguns horários, aumentar as tarifas em certos trechos, pedir isenção de ICMS, e mexer no roteiro das embarcações. A iniciativa era justificada por estudos da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a partir de dados fornecidos pela própria empresa. Outro estudo, da Coppe/UFRJ, resultou em propostas semelhantes, mas com o indicativo de que os dados não eram confiáveis.
Com as investigações, provou-se que inúmeros itens do contrato de concessão não são respeitados. A empresa alega que teve prejuízo, pois não atingiu o volume de passageiros previsto no texto (argumento usado também pelas outras concessionárias dos três modais). Palmares desconfia que o número de passageiros já teria sido superestimado no início, por malandragem.
A empresa 1001, que no setor de transportes rodoviários concorre com as Barcas S/A em alguns trechos, hoje controla 53% das ações. Seu presidente Amauri de Barros, controla outros 7% como pessoa física. “Eles alegam que acumularam prejuízo ao longo dos anos. Como um grande grupo empresarial como a 1001 acumula prejuízos, e compra ações de outros para se tornar acionista majoritário?”, questiona Palmares.
A Capitania dos Portos já multou a empresa por superlotação, por tripulação inferior ao mínimo estabelecido, e por documentação de embarcação vencida. Existe atualmente um déficit de dez mil lugares na hora do rush. Nos onze anos que sucederam a privatização, o aumento de tarifas, de 324%, é maior que o dobro da inflação no período. A viagem é feita em tempo maior do que o estabelecido – em três trechos onde se previa uma hora e dez minutos, viaja-se pelo menos duas horas.
Houve também precarização do trabalho. A empresa está contratando marinheiros auxiliares para substituir funcionários mais experientes. Tem usado muito trabalhador cooperativado, trabalhando em jornadas escorchantes. Há indícios claros de má gestão na manutenção e na construção da grade de horários.
“Estamos pedindo para ser feita uma auditoria nos onze anos de concessão”, diz Palmares, sobre o relatório da CPI, que termina em junho. Após a Revolta das Barcas de 1959, o poder público assumiu as operações do transporte de passageiros, só abandonando no processo de privatização de 1998. Repetir a solução de 2009 talvez não seja má idéia.

2 comentários sobre “Por mar, por terra ou por trilhos, o caos”

  1. Caro Leandro,
    Excelente e oportuno o seu artigo! Nos jornais locais não se houve qualquer questionamento sobre o tranposrte público do Rio, que é, disparado, um dos mais caros e piores do país. A população usuária sequer sabe que ele foi todo privatizado justamente na era iluminada de FHC, capitaneada aqui pela sumidade César Maia. As empresas fazem o que querem, desde que preservem seus lucros, e a população não sabe a quem recorer, nem mesmo sabe da CPI. Os trens do Metrô são verdadeiras latas de sardinha, mas a propaganda é das mais sedutoras, prometendo melhoras para o futuro, sempre; o aviltamento do direito dos usuários é tamanho e tão impune, que o Metrô Rio se dá ao desrespeito de fazer a seguinte propaganda nos carros: “Retiramos 4 assentos para você viajar com mais conforto”. Onde já se viu isso?? O usuário é obrigado a viajar em pé para caber mais e mais pessoas nos carros, e lhe é dito que é mais confortável? As estações são verdadeiros mercados, feiras, o que concorre para que o metrô esteja quase sempre sujo, com restos de comida e embalagens; as estações são indecentes, quentes, algumas sob o sol; o arcondicionado dos carros não dá conta, quando não está desligado; as 2 linhas nem de longe cobrem o mínimo de demanda da cidade; os pontos de ônibus são inadmissíveis, sem proteção e repleto de vendedores ambulates, que ocupam os lugares de quem espera o transporte; as Vans fazem o que querem, inclusive barbaridades no trânsito, expondo a vida de passageiros e demais cidadãos; ocupam os pontos de ônibus, e os usuários destes é que descem no meio das ruas e avenidas, expondo-se a um intenso perigo; o que dizer dos pontos finais de ônibus em pleno centro da cidade, em avenidas de grande circulação e sem a menor infraestrutura para os motoristas e usuários, inclusive sem banheiros, sem cadeiras, ou bancos? IMPENSÁVEL! A população sequer soube da renovação das concessões. O que fazer, a quem recorrer? A população fica refém dessa máfia empresarial que tem a plena concessão dos transportes públicos no Rio e faz o que lhe convém. Nas ruas do centro, ônibus, vans e tzxis fazem o que querem, e o pedestre é quem tem que fazer malabarismos. É nesse clima de irresponsabilidade com o transporte público, com a população, que o Rio se diz preparado para uma Copa do Mundo, uma Olimpíada? Só pode ser falta de vergonha dos dirigentes que se arvoram nesse delírio alucinante! Pergunto, então: a quem nós podemos recorrer, denunciar e exigir o cumprimento mínimo daquilo que é direito do usuário? Depois de tudo isso muito bem relato por você, Leandro, as próprias autoridades se dizem preocupadas com o aumento de veículos individuais na cidade. Só pode ser hipocrisia…

  2. O transporte público é fator essencial à qualidade de vida. As más condições em que a maioria da população é transportada são causadoras de grandes perdas de produtividade no trabalho. Levar duas horas para chegar ao trabalho e outras duas para retornar a casa, frequentemente em pé, é degradante. Que motivação, que ânimo se pode ter para trabalhar quando se precisa conviver com tal situação a cada dia?
    O mais inacreditável é os governos estadual e municipal serem sistematicamente coniventes. Não governam para a população, mas para as oligarquias dos transportes públicos que financiaram suas campanhas e adquiriram suas consciências.

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