POESIA, ENGAJAMENTO E CINEMA: NOTAS SOBRE TRÊS FILMES

Para João, Roberta e Carlos (o poeta), amigos da “casa
azul” em João Pessoa… e ainda para o amigo Hiwkesen,
poeta a seu modo.

Lendo recentemente a coletânea Poetas que pensaram o mundo organizada por Adauto Novaes temos a sensação de que a poesia tem mais do que uma organicidade com o mundo, ela tem um engajamento no mundo e nas suas questões centrais. Poesia é tida como coisa etérea, totalmente romântica, sempre afinada por um “Eu lírico”, alheia as questões concretas do mundo e das pessoas. Acaba-se tendo a impressão de que poesia é uma espécie de “ópio” para situações difíceis. Sabe-se que houve poetas que se engajaram em diversas causas e até morreram por elas, mas mesmo assim, a poesia continua com uma “aura angelical” separada das causas do pão e da liberdade.

No citado livro, essa leitura limitada do fazer poético é dissipada com argumento s bastante sólidos. Há um objetivo deliberado nos autores que escrevem na coletânea que é a de não cair na armadilha de dizer que a poesia não serve para nada, é alienada, tola e definitivamente romântica (no sentido mais conservador do termo). Logo no primeiro ensaio assinado por José Miguel Wisnik onde temos uma reflexão sobre a poesia de Drummond, temos a centralidade da palavra mundo o mote principal da análise e segue nos outros artigos sobre outros poetas espalhados pelo mundo.

O cinema também não ficou alheio a vida e a obra de vários poetas. Destacamos aqui três filmes que tratam de três poetas: O carteiro e o poeta (Michael Radford, 1996); Poucas cinzas (Paul Morrison) e Borboletas negras (Paula Van Der Oest, 2011). Apesar das diferenças óbvias, tempo, espaço, personagens e narrativa, podemos encontrar vários e lementos comuns aos três filmes. Um elemento central é a “poesia engajada” em alguma causa humanista e sempre sendo colocada a favor de algum agrupamento oprimido. Nos três filmes a palavra não tem apenas encantos, mas se compromete “com a minha e tua vida” (Thiago de Melo).

O carteiro e o poeta é um daqueles filmes inesquecíveis. Um roteiro bem amarrado e criativo, um ótimo grupo de atores e atrizes e uma história cativante. Numa remota ilha do Mediterrâneo, Mario Ruoppolo, um tímido e humilde filho de pescador, é contratado como carteiro para fazer a entrega particular do poeta Pablo Neruda que esta exilado na ilha por suas posições comunistas. A relação entre os dois personagens vai crescendo e dando a dimensão lírica do filme. O poeta chileno ajuda Mario na conquista de uma mulher e aos poucos vai revelando o nascimento da dimensão poética em um homem simples e ao mesmo tempo vai despertando a consciência deste mesmo homem para questões políticas nunca antes pensada.

O filme aparece em um momento muito difícil para posições politicas engajadas à esquerda. Era o período de hegemonia ideológica do Neoliberalismo nos anos 90 e no campo da cultura os discursos pós-modernos dominavam o cenário acadêmico e cultural. Vivíamos um anticomunismo virulento e ao mesmo tempo a violenta propaganda do “mantra liberal” na mídia mundial. Era raro uma postura crítica de intelectuais e mais raro ainda no campo cultural. Deixava transparecer o “fim das utopias” e a vitória da vida pragmática e realista. O filme de Michael Radford era uma lufada de inteligência, beleza e de incentivo ao comprometimento político apesar de todas as contrariedades que tal engajamento pode trazer.

No filme a palavra poética tem papel determinante na percepção do mundo do personagem Mario. A descoberta do amor e ao mesmo tempo a descoberta da situação de opressão que sofre o povo pobre da Ilha dominada por um mafioso inescrupuloso e violento. A palavra poética vai abrindo os olhos de Mario e transfigurando tudo a sua volta. Sem sair da ilha e sem ter uma erudita formação política, o personagem vai descobrindo os “males do mundo” e seus efeitos nas pessoas que o cercam pela inspiração poética das palavras de Pablo Neruda, este, “poeta profissional” e reconhecido mundialmente. Era um recado aos navegantes: “o sonho não acabou”.

O filme faz da beleza o remédio necessário contra a vida medíocre e rotineira, contra a “ideologia unidimensional do mercado” que reduz a condição humana a uma guerra absurda por uma satisfação pessoal destrutiva para a vida coletiva. Nos momentos finais do filme vemos o pescador-carteiro-poeta Mario participando ativamente de uma manifestação politica dos comunistas em Roma. De cabeça erguida, consciente de seu papel no mundo junto aos seus camaradas e tudo isso descoberto pela palavra poética. No filme, a poesia é uma espécie de “personagem oculto” que vai transformando tudo e todos por ond e passa.

Poucas cinzas, titulo do filme de Paul Morrison retirado de um poesia de Gabriel Garcia Lorca de 1922. Apesar de a película ter no subtítulo “Salvador Dali” e de ser uma espécie de biografia seleta de Dalí, Lorca rouba a cena desde o inicio em que uma poesia sua entra como epigrafe do filme: “terra quieta, de noites imensas”. O filme nos faz voltar a uma Espanha conservadora e ao mesmo tempo vivendo o inicio de uma efervescência artística que marcaria a Europa dos anos 30. Era o ano de 1922 e o filme nos faz encontrar no começo de suas juventudes: Salvador Dalí, Gabriel Garcia Lorca e Luis Buñuel numa “república estudantil”.

Percebemos que as loucuras e excentricidades de Dali vêm desde a sua mocidade e que só ganhou corpo com o passar do tempo. Vemos ainda que a genialidade de Buñuel já despontava naqueles anos em nem tinha ideia de ser o grande cineasta que foi. Vemos o nascedouro da poesia de Lorca que irá marcar para sempre o destino da poesia espanhola. O filme nos faz perceber que toda a experiência estudantil de juventude é parecida em todo mundo: gestos libertários, vida simples e alegre, desejo de mudar o mundo e engajamento generoso em causas humanitárias.

O filme nos faz ver ainda que a mesma Espanha reacionária de um catolicismo senil e de governo militar autoritário, tem na sua vida subterrânea uma cultura que respira mudanças, respira Jazz, as ideias de Freud e a primeira vanguarda europeia que se espalha. O que mais nos interessa aqui é a maneira como o filme destaca o escritor granadino Frederico Garcia Lorca. A ele caberiam os epítetos de “mago das palavras”, escritor marcado pelos ideais de beleza e também, vitima das atrocidades do regime fascista que assombrará a Espanha após a derrota da república espanhola na guerra civil.

O filme nos remete a uma poesia que “cheira a flor de laranjeira”, onde seu texto poético vasto areal a estampar os rastros da Andaluzia; por ele seguem, a pé, os ciganos, os cegos cantadores, os meninos tagarelas, os peregrinos da Espanha estoica, os pobres desvalidos, os libertários sedentos de justiça, os comunistas libertários encontram no verso de Lorca o abrigo necessário para alimentar a “mística do futuro comunista” do mundo. Lorca tinha uma clara consciência do oficio poético: “Ao contrário, se é verdade que sou poeta pela graça de Deus – ou do demônio -, também é verdade que o sou pela graça da técnica e do esforço, e da minha percepção absoluta do que é um poema”. Perfeita visão do fazer poético e de sua origem na vida de um Ser. Na cena em que Lorca cita um poema seu numa mesa em que estavam militares conservadores e senhoras da sociedade espanhola avidas por bobagens é um momento lapidar.

O rosto dos convivas e as palavras mansas e firmes de Lorca em evocar a liberdade são de beleza rara e exultante e já demonstrava ali qual seria posição do poeta no processo de guerra civil em que marcaria a Espanha anos depois. O filme nos leva a meditar sobre a dura separação entre Dalí e Lorca. O pintor se torna cada vez mais capitalista e avido por dinheiro e fama a qualquer custo (inclusive o custo de atacar amigos de longa data como o fez com Buñuel) e Lorca se engaja cada vez mais na luta contra os fascistas espanhóis, se aliando ao final a Luis Buñuel nos momentos mais trágicos da guerra civil em 1936. Mas uma coisa é certa: a palavra poética foi a grande impulsionadora das opções e decisões de Lorca. Dizia poeticamente: “Como me perco no coração de alguns meninos, perdi-me muitas vezes pelo mar. Ignorante da água vou buscando uma morte de luz que me consuma”.

Borboletas negras narra a história de Ingrid Jonker, poetisa Sul-africana que teve o “azar” de viver durante o brutal regime de apartheid (1948-1994) que consumia a África do Sul e seus negros e ainda ser uma poetisa que tinha coração cosmopolita e mente libertária. Numa sociedade desumana e opressora como a Sul-africana do massacre dos negros, uma mulher destas não teria vida fácil. O filme é fruto de uma paixão. A diretora Paula Van Der Oest tinha visto um documentário sobre a vida da poetisa Sul-Africana e decidiu ler suas obras e segunda a diretora: “foi de impacto fulminante. Era tanta paixão e tanta sede de justiça numa pessoa só, que foi impossível ficar neutra ou passiva diante de tanta grandeza humana e poética”. O filme foi uma consequência desse sentimento.

A jovem escritora inicia seus escritos destacando um certo lirismo juvenil, o que é muito comum em vários escritores em início de carreira. O que fará uma mudança completa em seu estilo um tanto ingênuo é um acontecimento presenciado por Ingrid Jonker e que deixará consequências para toda sua breve vida: o assassinato de uma criança negra por soldados do governo segregacionista da África do Sul e de tal fato brutal nasce o poema: “A criança que foi assassinada pelos soldados de Nyanga”. Este poema fará um corte na obra e na vida da poetisa.

No filme este poema aparece no final numa leitura pausada e dramática de Nelson Mandela que encerra no parlamento o regime de apartheid vivido na África do Sul. Na película percebe-se dois momentos intensos e distintos da produção da poetisa. O mais politico na defesa dos negros e na luta co ntra o apartheid. No momento dessa produção ela tem como aliado um escritor Sul-Africano da cidade do Cabo e seu grupo de intervenção político-cultural a favor da causa negra. Um momento importante no entendimento do significado da palavra engajamento para uma obra poética. Em nenhum momento seu verso é apenas um “panfleto” em defesa de uma causa (o que já seria louvável de um ponto de vista humanista e nas condições de um regime de apartheid como se deu na África do Sul).

Diríamos que ela vive aquela ambiguidade nas palavras que tem na poesia sua predileção e tão bem definida por José Miguel Wisnik num ensaio sobre a poesia de Drummond: “Vem daí que a poesia e mundo, simultaneamente excludentes e includentes, se contenham e se neguem: que o mundo, visto a partir dela, se pertença e não pertença a si próprio” (Poetas que pensaram o mundo, p. 24). Um segundo momento da poesia de Ingrid Jonker no film e é o da “marca erótica”. Há um intenso sentido de corporeidade na sua poesia. O corpo como sentido para os sentidos e o lugar onde os desejos apelam sem piedade. Num de seus poemas intitulados “Eu me repito”, ela fala de seios e mãos como forma de concha. Uma linda metáfora.

Seja no engajamento politico, seja no engajamento erótico, a poesia de Jonker tem aquela “alquimia verbal” tão cara a poesia e tão cara à palavra tecida como sentido de uma vida. O filme, ao ser biográfico, nos apresenta vida os momentos mais dramáticos da vida da personagem. As suas separações violentas, traições e as internações por distúrbio psíquico. Uma vida difícil numa situação politica mais difícil ainda. É preciso uma fortaleza maior do que as adversidades. A poetisa não teve tal amparo. Suicida-se numa praia da cidade do cabo em 1965. Ainda hoje seus versos ecoam pela África do Sul.

Um Pais liberto da segregação racial, mas preso á segregação econômica onde a população negra pobre continua marcada por um “apartheid silencioso” cruel sob a batuta de capitalismo contemporâneo tão brutal como certas segregações raciais.

Romero Venâncio (Departamento de Filosofia – UFS)

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