Paulo Sérgio Pinheiro e a raiva de Calibã

Aos 12 anos, na 2ª série ginasial, eu tinha tanta facilidade em solucionar questões matemáticas quanto dificuldade em lidar com a estranha lógica da química e da música.

Então, como uma alfinetada à professora de Canto, copiei certa vez na contracapa do caderno de música o prefácio de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde – cujo significado, aliás, eu estava longe de entender.

Queria apenas que ela lesse a última frase, “toda arte é completamente inútil”, pois eu considerava suas aulas uma completa inutilidade.

Quanto ao livro em si, o que me fascinava mesmo era o tema do pacto com o demônio. Eu tinha fascínio pelo fantástico e o sobrenatural. Nem remotamente imaginava a que Wilde estava querendo aludir com aquela história bizarra.

E, na minha ignorância juvenil, escapava-me também o significado de dois versos que, entretanto, me chamaram a atenção:

“A aversão do século XIX pelo realismo é a raiva de Calibã ao ver seu rosto no espelho.”

“A aversão do século XIX ao romantismo é a raiva de Calibã por não ver seu rosto no espelho.”

Pouco me interessara por Shakespeare e nada sabia de sua Tempestade, na qual aparece o personagem do monstro disforme, filho da bruxa Sicora, que se horroriza ao ver a própria face no espelho.

De certa forma, eu mesmo agia como Calibã, ao considerar inútil o aprendizado musical apenas porque não conseguia diferenciar um dó de um fá. Quebrava o espelho como reação às minhas limitações.

Foi o que me veio à mente, ao ler que o presidente venezuelano Hugo Chávez considerou “lixo puro” o relatório divulgado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, cujo relator foi Paulo Sérgio Pinheiro.

Por que? Porque nele se constata que não existe equilíbrio de poderes na Venezuela, mas sim a ascendência do Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário; e que veículos da imprensa sofrem perseguições.

Ora, isto é tão óbvio quanto a feiúra de Calibã. Quebrar espelhos só coloca em maior evidência esses fatos.

E o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, recentemente eleito pela Comissão de Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça como representante da sociedade civil no grupo de trabalho encarregado de preparar o anteprojeto de lei da Comissão Nacional da Verdade, é um exemplo inatacável de dignidade e idealismo, sempre colocando seu brilho intelectual a serviço das causas justas. Uma unanimidade.

Então, não posso calar quando Chávez trata de maneira tão insultuosa seu relatório e qualifica de “máfia” a Comissão à qual pertence.

Paulo Sérgio Pinheiro fez por merecer o respeito dos melhores brasileiros e deve ser por eles desagravado neste episódio, independentemente de quaisquer outras considerações.

Não vivemos mais nos sinistros tempos da guerra fria, quando tantos calavam a voz de suas consciências por temerem ajudar indiretamente o inimigo.

Rosa Luxemburgo é quem estava certa: “a verdade é revolucionária”. Sempre.

Por último: deixo igualmente registrado meu inconformismo com o tratamento desumano que os presos políticos recebem em Cuba, causa última da morte de Orlando Zapata, e com a frase extremamente infeliz de Marco Aurélio Garcia, ao relativizar o ocorrido alegando que “há problemas de direitos humanos no mundo inteiro”.

2 comentários sobre “Paulo Sérgio Pinheiro e a raiva de Calibã”

  1. Parabéns pelo texto exemplar em termos de lucidez, sensatez, coerência, coragem e conhecimento de causa. Isso é muito raro nos dias que correm…

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