“Os juízes têm preconceito e não enxergam nossos direitos”, afirma indígena que lutou contra a multinacional Aracruz e agora luta contra a Samarco

toninhoGovernador Valadares (MG) – Os índios da etnia Guarani, no Espírito Santo, lutaram durante muitos anos contra a multinacional Aracruz Celulose que devastou seus territórios com o monocultivo do eucalipto. Reconquistadas suas terras, enfrentam agora a devastação ambiental provocada pela empresa Samarco/Vale/BHP devido o rompimento da barragem que contaminou o Rio Doce. Embora não comercializem peixes, é das águas doces do Rio que tradicionalmente  retiram parte da sua alimentação.
Segundo Toninho, cacique guarani da Aldeia Boa Esperança, no município de Aracruz (ES), é preciso recorrer à justiça estrangeira pois no país a mídia e o governo não reconhecem os direitos indígenas. Para ele, a Samarco precisa indenizar os nativos por danos ambientais e morais. Toninho também criticou a relação dos juízes e governantes com empresários, fazendeiros e latifundiários, além da discriminação e preconceito desses setores em relação aos povos tradicionais.
A entrevista ao Fazendo Media ocorreu durante a Caravana Territorial da Bacia do Doce, realizada entre os dias 11 e 16 de abril, e percorreu desde a área de rompimento da barragem à foz do Rio Doce. Dezenas de organizações estavam envolvidas para colher os depoimentos dos atingidos e dar visibilidade a luta dos povos afetados pela lama tóxica da empresa.
Como foi essa história de você ficar viajando ao exterior em defesa da sua comunidade contra a empresa Aracruz Celulose?
Fizemos a primeira demarcação na época que começou a identificação da área. Nossa retomada foi em 1979 e em 1983 a primeira demarcação, depois passou por outros presidentes e o FHC fez a demarcação mas nem pela metade: só demarcou 2.571 hectares dos pouco mais de 18 mil. Não concordamos e fomos à luta, o povo tupiniquim guarani se organizou para retomar seu território.
Em 2006 quando a gente estava ocupando a área, a empresa junto à polícia federal, militar e civil conseguiu cumprir o mandato do juiz de reintegração de posse. Entramos em conflito, uns 13 tupiniquim foram atingidos por balas de borracha. O presidente da associação na época, o Vilmar, levou um tiro e o cacique, o Nilson, que hoje está como coordenador local da Funai, também. Só conseguimos quando o Tarso Genro estava no Ministério da Justiça, ele fez a portaria demarcatória e em 2010 foi feita a homologação assinada pelo Lula. Então hoje está demarcado, só que a terra foi toda destruída pela Aracruz Celulose.
A Aracruz chegou quando no território de vocês?
Quando nós estávamos lá era pura mata, não tinha nem coqueiral na época. Eu era muito pequeno, mas quando completei 7 anos estávamos na luta com a própria Funai. Era ditadura militar ainda com o Figueiredo, então conseguiram nos tirar de lá e trazer para Fazenda Guarani (veja reportagem da Pública sobre o “campo de concentração” durante a ditadura), em Minas. Ficamos muito tempo lá e minha avó falou para voltarmos por causa das suas revelações nos sonhos, só que quando voltamos em 1979 a Aracruz já tinha derrubado todas as matas. Só ficou um restinho onde temos nossa aldeia Boa Esperança, Três Palmeiras e Piraquê-Açu. Sem luta seria muito mais difícil demarcar as terras, mas nós guaranis nos organizamos com ONGs e apoiadores. Parecia que estávamos sozinhos contra uma empresa multinacional e que não estávamos lutando somente contra uma empresa, mas também contra o Estado brasileiro. Então a organização Robin Hood tinha recursos para pagar a passagem de pessoas para divulgar toda essa luta, e eu e Paulo Tupiniquim fomos a Europa em 2006. A ministra da Alemanha apoiou a nossa luta, assim como alguns parlamentares da Noruega conseguiram nos ajudar a falar a alguns acionistas que a celulose que eles compravam tinha mancha de sangue indígena. Fomos divulgando a nossa luta e os leitores de alguns jornais perguntavam por que isso era passado lá fora e ninguém sabia aqui.
Então a mídia nem a justiça brasileira ajudavam? Por que essa dificuldade?
Porque eles não têm interesse em resolver os problemas dos povos originários, quilombolas e outros companheiros de luta, como o MST. Encontramos dificuldade porque os próprios juízes são favoráveis aos grandes latifundiários, fazendeiros e empresas. Eles acham que têm como manter a manutenção da terra, mas nós achamos que a soberania do saber, da cultura, da vida, alimentar, sem terra demarcada teria toda essa riqueza ameaçada. O juiz não vê dessa forma, acha que não temos condições de manter nossas terras porque não temos dinheiro e recursos.
Existe uma prática de eles desviarem o direito aos grandes fazendeiros, e não enxergam nossos direitos. Eles têm preconceito com a gente, são os primeiros a discriminar nosso povo. O Estado brasileiro é formado pelos três poderes, que favorecem mais os fazendeiros. Às vezes temos que derramar sangue, nossos parentes morrem, para ver se tem algumas soluções através de grandes lutas. Porque se não lutarmos não conseguimos nada, por isso divulgamos a nossa luta a nível internacional.
Depois de toda essa luta vocês foram atingidos agora pela lama tóxica da Samarco…
Agora nós temos a luta com a Samarco e a Vale, assim como o Jurong, que é um estaleiro. Envolta das nossas aldeias tem essas grandes empresas, que dão continuidade à destruição. Fazem a dragagem e tiram o filtro, que pode trazer prejuízo ao nosso povo até para captar água porque o lençol freático está sendo atingido. O próprio sal está penetrando na terra, então estamos lutando contra a dragagem também.
Em novembro do ano passado ficamos sabendo que a barragem da Samarco estourou, e ficamos alertas divulgando para quando atingisse a praia já estivéssemos preparados para luta. A Samarco foi lá oferecer medidas emergenciais querendo passar um salário mínimo e água potável, ofereceram 20% às pessoas que são dependentes mais o vale alimentação. E nos desrespeitando dizendo que ali não havia nada de tóxico, que os peixes não estavam morrendo por causa da lama tóxica. Mês passado morreu um golfinho e eles tiraram escondido sem autorização do cacique.
Vocês viviam de pesca também?
Sim, sempre pescamos. E os meus meninos hoje têm medo de pescar ali na praia. A gente pega mais para comer mesmo, nós guarani não temos o costume de vender. A própria tradição não permite, então isso violou mais um direito. É uma agressão contra a segurança alimentar do nosso povo.

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