Os feitos de Mem de Sá

Para além das apologias, o poema anchietano tem sobretudo valor histórico, como uma das primeiras obras poéticas escritas e se referindo ao litoral brasílico. Os Feitos de Mem de Sá registra a visão definitiva dos jesuítas, após os primeiros anos de vida no Brasil, sobre o caráter e o destino a ser dado ao homem nativo pela colonização lusitana. Por Mário Maestri (*);

Escrito talvez em 1560-2, o poema épico Os feitos de Mem de Sá foi publicado, anônimo, em Coimbra, pelo tipógrafo régio João Álvares, em 1563, sem despertar maior atenção. Da edição, se conhece apenas um exemplar, depositado na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora. Escrito em versos hexâmeros, cantava os atos heróicos de Mem de Sá, terceiro governador-geral, na submissão das possessões americanas ao colonialismo português e ao cristianismo. A obra, com versos que recordavam Virgílio e Ovídio, fora redigida em latim renascentista, sem a qualidade literária daqueles autores clássicos, em uma época em que o português consolidava-se como língua culta e literária. Os lusíadas, o poema clássico de Luís de Camões, em vulgar, fora concluído talvez em 1556, e veio a lume em 1572.

Do poema anchietano, conhecia-se apenas a edição de 1563, acreditando-se o original perdido para sempre. Em 1928, o jesuíta Florentino Ogara noticiou a descoberta de autógrafo desse e de outros poemas, em um fólio em posse de família aparentada aos Anchietas, residente em Algorta, nas proximidades de Bilbao, na Espanha. Na época, especulou-se que o manuscrito fora levado para a Europa por algum jesuíta após a expulsão da ordem de Portugal e do Brasil, em 1759. A descoberta foi publicada nas revistas católicas Estrela do Mar, do Brasil, de 15 de agosto de 1928, e Civiltà Cattolica, da Itália, de 17 de fevereiro de 1934. Por pedido do Superior dos Jesuítas do Brasil Central, foi feita providencial cópia fotográfica do original, que desapareceu quando do incêndio da moradia dos Zuazolas, em 1938.

Estudos posteriores sugeriram que o suposto original não era o autógrafo de Anchieta, mas cópia possivelmente do século 16 ou 17. Entretanto, o documento permitiu cotejar e acrescer a edição original de 1563 com o desde então denominado “Manuscrito de Algorta”. Em 1958, o Arquivo Nacional publicou o texto completo, em latim, com tradução do jesuíta Armando Cardoso, que preparou para a ocasião “Introdução histórico e literária” e “Anotações ao texto”. Em 1997, foi publicada, no Rio de Janeiro, edição fac-similar, com apresentação de Eduardo Portella e introdução de Paulo Roberto Pereira, pela Fundação Biblioteca Nacional, em associação com o Departamento Nacional do Livro. Reconstituído, Os feitos de Mem de Sá possui 108 versos da “Epístola Nuncupatoria” e 2946 versos do poema propriamente tido, dividido por Armando Cardoso em quatro livros.

Após a dedicatória a Mem de Sá, o livro inaugural refere-se ao combate aos tamoios do Espírito Santo, no qual morre o filho do governador-geral, Fernão de Sá, no comando da expedição. O segundo livro trata da submissão do chefe tupinambá Cururupela, da formação forçada das primeira quatro “aldeias de índios” e dos combates contra os americanos em Ilhéus, na Bahia. A penúltima parte é dedicada aos combates de Paraguaçu, também na Bahia, concluindo-se o poema com a expulsão provisória dos franceses do forte de Coligny, na Guanabara, em março de 1560, por expedição de uma centena de portugueses e pouco menos de dois mil nativos, comandada por Mem de Sá.

José de Anchieta chegou ao Brasil jovem, sem jamais voltar à Europa, não tendo possibilidade de contato sistemático com o mundo da cultura de então. A documentação jesuítica registra a dificuldade na correspondência normal com a Europa e a enorme carência de informações e livros. “Os feitos de Mem de Sá” é obra pouco equilibrada, quanto às suas diversas partes, como se fosse constituída pela agregação de poemas isolados. Empreende narrativa quase circular, retomando eventos diversos, tidos como de mesma qualidade, sob os mesmos ângulos. Dominam os elogios barrocos e rebarbativos do massacre das frágeis comunidades nativas pelos lusitanos na materialização da vontade divina – com a participação direta da mesma.

Para além das apologias, o poema anchietano tem sobretudo valor histórico, como uma das primeiras obras poéticas escritas e se referindo ao litoral brasílico. Os Feitos de Mem de Sá registra a visão definitiva dos jesuítas, após os primeiros anos de vida no Brasil, sobre o caráter e o destino a ser dado ao homem nativo pela colonização lusitana. Um documento que acresce seu valor por constituir a avaliação, a posteriori, da aplicação por Mem de Sá da política proposta por Manuel da Nóbrega, nos anos anteriores, de ocupação horizontal do litoral por homens bons portugueses, capazes de feitorizarem os americanos que não fossem reduzidos em “aldeias de índios”, sob a autoridade jesuítica.

Anteriores

Parte 1 – A derrota jesuítica no litoral do Brasil
Parte 2 – José de Anchieta: O apóstolo da Colonização

A seguir: Elogio ao Genocídio Étnico [Conclusão]

(*) Mário Maestri, 59, é professor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em História da UPF. É autor, entre outros, do livro: Os senhores do litoral: conquista portuguesa e genocídio tupinambá no litoral brasileiro. 2ª. ed. Porto Alegre: UFRGS, 1995. E-mail: maestri@via-rs.net

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