Ofuscados pela visibilidade

Poucos grupos sociais receberam tanta atenção da mídia durante a Rio+20 quanto os índios. A visibilidade conquistada pela exposição quase diária nos meios de comunicação, no entanto, nem sempre se traduziu em participação equânime na conferência ou garantiu que suas reivindicações fossem atendidas. O interesse midiático pelos povos tradicionais brasileiros e estrangeiros refletiu aquilo que se viu no Rio de Janeiro, nos dias que recebeu a conferência: populações indígenas de todo o Brasil — e de outros países — nas ruas da cidade, participando de solenidades, mesas e protestos, vendendo artesanato; sua presença registrada, ao vivo, em exposições de arte, em discussões políticas, debates teóricos e programas de TV.

Há tempos não se viam tantos arcos, flechas e cocares pelas ruas cariocas, fora da época de carnaval. A cobertura jornalística, em geral, se apoiou nos estereótipos, mesmo quando registrou momentos de luta política — a imagem do índio que apontou sua flecha para seguranças do BNDES, durante um protesto, foi amplamente divulgada em jornais, revistas e sites. Para além da repercussão, os indígenas participaram ativamente das discussões, tanto no evento oficial quanto na Cúpula dos Povos.

Na aldeia Kari-Oca 2, montada na colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, cerca de 400 índios de 14 etnias brasileiras, além de 20 representantes de tribos dos Estados Unidos, do Canadá, Japão, México e da Guatemala, acenderam o fogo sagrado e discutiram a Carta Indígena, entregue pelo líder indígena Marcos Terena às autoridades mundiais, no Riocentro. Na entrega do documento — que recomenda a inclusão da cultura como quarto pilar da sustentabilidade —, Terena cobrou a proteção aos direitos e cosmovisões indígenas. “Para se criar um mundo justo, deve-se ouvir a voz indígena sobre equilíbrio e sustentabilidade”.

Bom viver

Na Cúpula dos Povos, o 9º Acampamento Terra Livre se colocou em posição divergente da Kari-Oca, que em documento questionou a legitimidade da liderança de Marcos Terena. O encontro reuniu 1800 líderes indígenas brasileiros e estrangeiros, ligados à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e outras organizações internacionais. Na abertura, dia 15/6, o cacique Raoni conclamou os parentes a serem fortes para lutar contra as ameaças às terras indígenas (desmatamento, barragens e mineração, entre outras), reafirmando seu compromisso político: “Enquanto estiver vivo e forte, continuarei lutando”. Depois de sete dias de intensos debates e discussões, um documento resumiu as reivindicações coletivas, que denunciam “a violação dos direitos fundamentais e coletivos de nossos povos” e as crises decorrentes do modelo neo-desenvolvimentista e depredador, “que aprofunda o processo de mercantilização e financeirização da vida e da Mãe Natureza”.

A declaração, inspirada no modelo do “bom viver e vida plena”, repudia o capitalismo verde e “suas novas formas de apropriação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais”; episódios de violência, prisão e assassinato de líderes tribais; a diminuição dos territórios indígenas e a construção de grandes empreendimentos em seus limites, e a descaracterização da legislação indigenista em vários países. No texto, os índios ainda reivindicam o fortalecimento das áreas demarcadas, o fim da impunidade para assassinos de líderes indígenas, além da garantia do direito à consulta e consentimento livre, prévio e informado, de cada povo indígena, em respeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O documento clama, ainda, pelo monitoramento das bacias hidrográficas, pelo reconhecimento e fortalecimento do papel dos indígenas na proteção dos biomas, pela demarcação das terras dos povos acampados em situações precárias, pela melhoria nas condições de saúde — com aumento no orçamento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a implementação da autonomia financeira, administrativa e política dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) e a garantia dos direitos dos indígenas com deficiência — e pelo respeito à diversidade na educação escolar indígena.

Saúde na pauta

A temática indígena esteve na pauta de diversas outras mesas e encontros da Cúpula dos Povos, como no espaço Saúde e Ambiente, onde aconteceu a 80ª reunião da Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (Cisi) do Conselho Nacional de Saúde, no dia 19. Na discussão proposta sobre saneamento, saúde e nutrição em terras indígenas, o pesquisador Ricardo Ventura (Ensp/Fiocruz) apresentou os dados do 1º Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas (Radis 97). Ele citou o trabalho da antropóloga Alcida Ramos (UnB) para comentar o alto grau de visibilidade das manifestações indígenas no Aterro do Flamengo, em contraste com sua invisibilidade nas políticas públicas.

Ricardo justificou a pertinência do estudo para o ajuste e financiamento das políticas públicas. “Na cultura branca, as coisas acontecem a partir dos números; se não há informação, não há como direcionar as políticas”, assinalou. O inquérito, que avaliou nas aldeias pesquisadas a origem da água e dos alimentos, a gestão do lixo, além da saúde de mulheres e crianças, concluiu que as desigualdades extrapolam as questões de saúde e refletem a luta por terra. “A questão fundiária é preponderante”, afirmou.

Fabiana Vaz de Melo, da Fundação Nacional do Índio (Funai), assegurou que o órgão tem interesse em utilizar as conclusões do Inquérito na formulação de um plano estratégico indigenista, em parceria com os ministérios do Desenvolvimento Social, da Saúde e da Defesa, no sentido de promover segurança alimentar para as populações pesquisadas. A prioridade, segundo ela, são os DSEIs com altas taxas de mortalidade infantil. Ela defendeu ainda a adoção de políticas diferenciadas, “que dialoguem com a diferença” e gestão compartilhada pelo diálogo intercultural.

A antropóloga Carla Costa Teixeira (UnB) destacou que, a partir dos dados que levantou sobre saneamento em áreas indígenas junto a Funasa, é possível perceber que a situação não se resolve apenas com questões técnicas, mas sim com uma abordagem baseada na interculturalidade. Ela citou o manual de trabalho do Agente Indígena de Saneamento (Aisan) como reflexo disso: retrata os índios como sujos, reforçando preconceitos e desigualdades.
Protestos e lutas

A luta contra as desigualdades marcou outras ações organizadas pelos índios durante a Rio+20. Os xavantes promoveram mesa redonda na Cúpula dos Povos, entregaram carta de protesto ao ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República, e levaram a tradicional corrida de tora à marcha global para simbolizar o “peso” da luta que travam pela devolução das terras Marãiwatsédé, no norte do Mato Grosso, invadida há 20 anos; cerca de 2 mil índios participaram da ocupação temporária da sede do BNDES no centro da cidade, exigindo a demarcação de terras indígenas e “o fim das grandes obras catastróficas”, como a usina hidrelétrica de Belo Monte, financiada pelo banco; os moradores do antigo prédio do Museu do Índio, protestaram para que se construísse um centro cultural no lugar.

Ao fim, o que a mídia exibiu, sob a chancela da diversidade, foram muito mais imagens estereotipadas do que discussões sobre uma nova realidade que inclua os povos indígenas; ao invés de aprofundar questões importantes sobre a contribuição que eles podem dar para a construção da sustentabilidade, as lentes e microfones se direcionaram, em sua maioria, para a exibição de trajes típicos e dos comportamentos deslocados dos visitantes à metrópole. De tão visados, tiveram que se esforçar para não saírem da Rio+20 como camelôs da diversidade.

Fonte: Radis

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