O desparecimento forçado do pedreiro Amarildo é uma síntese do Rio de Janeiro contemporâneo. Foto: Fernando Frazão/ABr

'O Rio de Janeiro mostra seu lado mais agradável'

O desparecimento forçado do pedreiro Amarildo é uma síntese do Rio de Janeiro contemporâneo. Foto: Fernando Frazão/ABr

Está n’O Globo: “Criminosos atacam quatro UPPs e ferem chefe da base de Manguinhos (…) Em nota, Cabral disse que essa é mais uma tentativa da marginalidade de enfraquecer a política vitoriosa da pacificação, que retomou territórios historicamente ocupados por bandidos. Ele afirmou ainda que mantém o firme compromisso assumido com as populações das comunidades e de todo o estado de não sair, em hipótese alguma, desses locais ocupados e manter a política da pacificação.”
O que tem a ver o projeto da UPP — as autoproclamadas “Unidades de Polícia Pacificadora” — com o que está acontecendo hoje no Rio de Janeiro? Nada. Eis o porque:
01. Segundo dezenas de relatos nas comunidades, teve início há algum tempo uma ofensiva do Estado para promover uma “limpeza social” na cidade antes da Copa. Segundo alguns relatos populares, a milícia age onde pode agir, às vezes apoiando. As políticas repressoras são apoiadas pelas remoções em massa — com até 250 mil pessoas ameaçadas — e pela especulação imobiliária. Toda sorte de violações dos direitos humanos foi cometida.

02. Aos poucos, o tráfico reagiu. Com a ofensiva persistindo, as reações se tornaram mais violentas. Não se trata de um FlaxFlu: há milhares de vidas em jogo. As pessoas vivem entre estes interesses. E estão morrendo.
03. Acompanhe o relato: “A ‘limpeza social’ da cidade antes dos Jogos não se resume às remoções. Nas áreas centrais e outras frequentadas pelos turistas, tem se intensificado a perseguição a vendedores ambulantes (“camelôs”), moradores de rua (especialmente as crianças), guardadores de automóveis (“flanelinhas”), etc. A repressão e retirada das ruas dessa “população indesejável” é feita sob o rótulo de campanhas como ‘Operação Zona Sul Legal’ (…).”
Não é de 2014, e sim de 2007, pouco antes Jogos Pan-americanos que aconteceram no Rio de Janeiro.
04. Antes ainda havia no Governo do Estado um ensaio de projeto social das UPPs — a “UPP Social” — que hoje está praticamente inoperante. Perdeu poder político, de mobilização e recursos. Mais uma vez — e às vésperas do fim do segundo mandato — o Governo do Estado esquece os investimentos sociais para dar lugar a uma prioridade pré-megaeventos: a área de segurança. Uma reprise de 2007.
05. Ainda fazendo um paralelo com o Pan 2007: em 2006, o governo federal falava no “Legado Social do Pan” como sua principal preocupação, prometendo que 500 mil moradores de 50 comunidades populares que viviam no entorno das atividades do Pan seriam atendidas através de programas sociais, de cunho esportivo, educacional e cultural.
Posteriormente, foi anunciado o valor de R$ 562 milhões para a segurança do Pan. O então secretário nacional de segurança, Luiz Fernando Corrêa, e o secretário estadual, José Mariano Beltrame, afirmaram que os equipamentos adquiridos eram o legado do Pan para o Rio de Janeiro.
O mesmo acontece agora: o orçamento da Copa era inicialmente de R$ 23,5 bilhões e, atualmente, já passa de R$ 26 bilhões, e subindo. Mesmo assim, apenas 5 das 41 obras de mobilidade urbana foram concluídas. Algumas delas são de baixíssimo custo, como uma passarela entre uma estação de trem e o complexo do Maracanã.
06. Mas o pior legado — e o que explica em parte a revolta nacional — diz respeito ao tipo de investimento: em 2007, anunciou-se que a Copa seria 90% financiada com dinheiro privado. Atualmente, sabe-se que 98% do dinheiro da Copa é público, e sem qualquer contrapartida para a população em geral.
Há quem ganhe? Sim: o setor hoteleiro, os patrocinadores, o Pelé, outros grandes empresários e — numa escala infinitamente menor — alguns poucos comerciantes do entorno dos estádios. E, mesmo assim, só durante os jogos. Não se assuste se eles começarem a se multiplicar nas matérias “jornalísticas” sobre o “legado da Copa”.
Ganham ainda, e sobretudo, os especuladores imobiliários — como aconteceu no Pan com a Vila Pan-Americana.
07. Antes de ficar propondo ‘previsões’, eu resgato um alerta da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência: “(…) O ‘legado do Pan’ deixará um equipamento de alto poder de fogo nas mãos de uma força policial internacionalmente conhecida como uma das mais letais e violentas do mundo. Isso não é apenas uma previsão sombria, os efeitos da mobilização de segurança pelo Pan já estamos sentindo há alguns meses.”
08. É nesse contexto que se encontram as atuais operações policiais. A partir do dia 2 de maio de 2007, sob o pretexto de ‘caçar’ os supostos assassinos de dois policiais mortos, forças das polícias militares e civil passaram a realizar incursões diárias no Complexo do Alemão, resultando em 16 mortos (2 policiais) e 53 feridos a bala, além de promover o terror na comunidade e o fechamento quase que diário do comércio e das escolas.
Um pesquisador da Anistia Internacional visitou a Vila Cruzeiro — a comunidade mais atingida pela operação — e relatou: “Além de intimidar e humilhar a população, atirar indiscriminadamente contra casas, lojas e igrejas dentro da comunidade, destruir pertences da população, a Anistia recebeu relatos de furtos cometidos por policiais, atos de violência e tortura dentro do caveirão [veículo blindado da Polícia Militar] e até relatos de possíveis execuções sumárias”.
09. Sobre as milícias, o jornal O Globo registra em sua edição de 10/12/2006:
“(…) Criticado durante a semana por ter classificado as milícias como Autodefesas Comunitárias, o prefeito Cesar Maia, em entrevista por e-mail ao GLOBO, afirma que o termo não é de sua autoria, mas argumenta que essas milícias são, no mínimo, um mal menor que o tráfico para a realização do Pan. Questionado se essas ocupações seriam um remédio amargo a administrar às vésperas dos jogos, em um momento em que recrudesceram os crimes, principalmente nas vias de acesso do aeroporto aos principais pontos do evento, o prefeito foi enfático:
— A curto prazo, portanto dentro do Pan, as ADCs (Autodefesas Comunitárias) são um problema menor, muito menor, que o tráfico.”
Sobre o mesmo tema, o atual prefeito do Rio, Eduardo Paes — que era, em 2007, secretário de Turismo, Esporte e Lazer do Governo Sergio Cabral, e já foi aliado a Cesar Maia — também havia “elogiado” a ação ‘pacificadora’ das milícias. Paes disse:
“Você tem áreas em que o estado perdeu a soberania por completo. A gente precisa recuperar essa soberania. Eu vou dar um exemplo, pois as pessoas sempre perguntam como recuperar essa soberania. Jacarepaguá é um bairro que a tal da polícia mineira, formada por policiais e bombeiros, trouxe tranqüilidade para a população. O Morro São José Operário era um dos mais violentos desse estado e agora é um dos mais tranquilos. O Morro do Sapê, ali em Curicica. Ou seja, com ação, com inteligência, você tem como fazer com que o estado retome a soberania nessas áreas.”
No vale-tudo da política, durante as eleições de 2008, César Maia “acusou” Paes de apoiar as milícias.
Não é à toa que dois chefes de milícia presos em 2008 — o ex-vereador Jerominho e o deputado estadual Natalino –, integrantes de uma das milícias mais violentas do Rio de Janeiro, são respectivamente do PDMB e do PFL (atual DEM). Os partidos do então governador (Sergio Cabral) e do prefeito (Cesar Maia). Antes de serem um “mal menor”, são braços do poder.
10. Já em 2007, a Rede contra a Violência alertara — e isso bem antes das manifestações de junho de 2013: “Toda essa intensificação da ilegalidade e da violação de direitos na segurança pública do Rio às vésperas do Pan, é sustentada por um discurso militarista, confrontador e estereotipado, que ganha cada vez mais espaço entre os governantes e em boa parte da imprensa.”
É triste ver que este documento da Rede — disponível aqui — quase não sofreu alterações. Mudam-se alguns nomes, alguns dados, e a situação permanece a mesma.
11. Durante a “ECO92”, a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, uma reportagem perguntou a um gari o que ele estava achando do evento. Ele respondeu:
“Eu acho que está bom até agora. Há muitas pessoas e turistas. Muitos estão preocupados com a ecologia e a natureza, mas estão esquecendo o mais importante: as famílias pobres espalhadas pelo mundo, a fome, as favelas do Rio de Janeiro, as pessoas pobres que o governo não cuida.”
A reportagem acrescenta: “Nas favelas, áreas cercadas, e por toda cidade a segurança está afiada para a chegada dos chefes de Estados e de governos.”
No momento em que o repórter entrevista adolescentes na rua, ouve-se um tiro. Um jovem diz: “A lá. Dando tiro no menor”. O câmera se volta para um policial correndo com uma arma na mão.
A matéria conclui: “As ruas foram varridas e limpas. As crianças desabrigadas são levadas para campos. O Rio de Janeiro mostra seu lado mais agradável.”

12. A política do enfrentamento reaparece, por fim, com força total. Não que tivesse sumido algum dia, contudo a cada novo megaevento, o Governo do Estado e o Governo Federal abandonam a publicidade e partem para as guerras de sempre: contra as drogas, contra os pobres, contra o tráfico e quem mais estiver no caminho.

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