"O Estado brasileiro se estruturou contra a nação"

Por Bárbara Mengardo, Débora Prado, Gabriela Moncau, Gershon Knispel, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Otávio Nagoya, Paulo Barbosa, Renato Pompeu, Wagner Nabuco. 
O jornalista e professor José Arbex Jr. é conhecido pela profunda formação cultural, capacidade intelectual e por defender com veemência as suas posições. É colaborador antigo da revista Caros Amigos, tem vários livros escritos e uma militância política e social intensa, de muitos anos, desde as batalhas da “Libelu” (organização trotskista) no movimento estudantil dos anos 70, durante a construção do PT nos anos 80 e, posteriormente, no apoio firme e dedicado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Atualmente é professor de jornalismo na PUC-SP, colaborador do jornal Brasil de Fato e presidente da Associação dos Amigos da Escola Nacional Florestan Fernandes. Mais do que isso: Arbex é um intelectual ousado, coerente e instigante. Vale a pena conhecer as suas posições – e provocações.
Lúcia Rodrigues – Eu queria que você definisse quem é você?
Arbex – (Risos) Eu proponho que seja essa a definição. Próxima questão.
Lúcia Rodrigues – Arbex por Arbex.
Não tem. Acho que é impossível responder isso. As coisas mudam, né? Você faz uma projeção de quem você é, e a partir dos acontecimentos na tua vida e do intercâmbio com o mundo, aquilo que você achava que você era não é exatamente igual. Então, acho que é um processo de autoconhecimento, se é realmente de autoconhecimento não é um processo ancorado em estereótipos e medo de mudança, e necessariamente é um processo refratário, multifacetado, caleidoscópico. Vamos dizer assim.
Renato Pompeu – Onde você nasceu?
Eu nasci em Marília, no dia 18 de maio de 1957.
Renato Pompeu – Seus pais eram o que?
Meus pais eram imigrantes da Síria. Como todo imigrante árabe tinha uma lojinha.
Gershon Knispel – De que cidade era seu pai?
De uma cidadezinha perto de Damasco, mas a origem mais longínqua da minha família é a Palestina.
Lúcia Rodrigues – Seus pais já chegaram casados da Síria?
Não, meu pai construiu a primeira casa de alvenaria em Marília em 1929. Conheceu minha mãe aqui, embora ela também seja da mesma cidade que ele na Síria.
Lúcia Rodrigues – Você veio de Marília para São Paulo com quantos anos?
Eu saí de Marília e fui pros Estados Unidos completar o colegial com 17 anos.
Lúcia Rodrigues – Por que para os Estados Unidos?
Porque pintou um concurso em Marília.
Renato Pompeu – Mas como foi sua formação antes disso? Seu pai tinha alguma posição política, sua mãe?
Meu pai? Nacionalista nasserista [Nasser], terceiro mundista. Totalmente anti-imperialista.
Renato Pompeu – Você foi influenciado por causa desses parâmetros?
Fui. Só que foi meio atípico, porque aos nove ou dez anos de idade eu ganhei a República do Platão. Aí eu ficava lendo, a bibliotecária pública lá de Marília ligou pra minha mãe pedindo pra proibir que eu entrasse na biblioteca. Porque ela achava um absurdo a quantidade de livros que eu lia e não saía da biblioteca. E lia de uma forma desordenada, né? Completamente caótica, porque Marília não tinha nenhuma espécie de referência intelectual. Então eu lia Platão num dia, no dia seguinte lia um romance do Kafka, no outro dia Hermann Hesse, O lobo da estepe, que foi um livro que me influenciou bastante. Misturava tudo. Anarquismo com existencialismo, com todo tipo de leitura. Então a referência do meu pai foi muito importante, mas foi fraca nesse sentido. Não foi determinante.
Lúcia Rodrigues – E a sua ida para os Estados Unidos te ajudou a ser de esquerda?
Não, ela ajudou a criar o caos. Porque você sai de Marília, uma cidadezinha absolutamente provinciana, preconceituosa, de uma classe média ridícula, de novos ricos. E aí você vai cair em outro país, eu mal sabia falar inglês. Isso cria um choque evidentemente existencial, cultural, muito profundo. E isso ajudou a me desestruturar completamente. E essa desestruturação é que me empurrou pra esquerda. Quando comecei a procurar respostas, não tinha nenhum intelectual de direita que me desse respostas.
Renato Pompeu – Ainda nos Estados Unidos?
Nos Estados Unidos foi outra coisa. Eu fiquei na casa de uma família protestante que queria me obrigar a ir ao culto (risos). Eu falei não. Isso deu uma zona lá. Eu fiquei perto do lugar onde nasceu a Ku Klux Klan.
Lúcia Rodrigues – Em que Estado você estava?
Indiana. Na minha cidade não entrava negro. Era uma cidade completamente reacionária.
Lúcia Rodrigues – Quanto tempo você ficou nos Estados Unidos?
Um ano, dessa vez. Eu voltei depois, em 1987, pra ser correspondente da Folha.
Otávio Nagoya – Como começa a sua militância? Você volta para Brasil no movimento estudantil?
Anarquista. Eu fiz três meses de cursinho e nesses três meses de cursinho houve o assassinato do Herzog e foi convocada a missa para o Herzog. Aí eu fui, ajudei…
Lúcia Rodrigues – Você foi diretor do DCE?
Não, era levantar dinheiro pra anarquista ser diretor do DCE… Era um negócio clandestino ainda, mas era engraçado porque quando as tendências iam falar era: Refazendo, aí ia o cara lá e falava; Libelu, ía o cara e falava; Caminhando, ía lá o Celsinho ; e aí Kissinger, que era meu apelido lá, e ía eu. Aí eu comecei a formular um negócio que eu chamei de Revolução Permanente. Revolução tem que ser permanente, mas nos termos que eu colocava, intuitivamente, mais ou menos. E aí o pessoal chegou pra mim, de uma certa tendência, e falou: “Olha, tem um cara que fala da Revolução Permanente, um livro histórico sobre a Revolução Permanente. Falei sério, quem é? Trotsky. Eu falei nunca li Trotsky e aí os caras me despejaram um pilha de livros do Trotsky, que eu devorei. E a partir daí me tornei trotskista.
Otávio Nagoya – E esse apelido?
Kissinger? Entrei na Poli. Fui fazer Engenharia Química. E aí os caras fizeram o miss bicho e eu fui apresentar e como eu tinha chegado dos Estados Unidos, tava falando inglês fluentemente. Eu apresentei o miss bicho em inglês, aí me botaram o apelido de Kissinger.
Lúcia Rodrigues – E o que você achava desse apelido?
Engraçado.
Lúcia Rodrigues – Não ficava ofendido?
Não. Era engraçado.
Lúcia Rodrigues: E a tua trajetória dentro da Libelu, como é que foi? Você foi quadro da Libelu?
Fui. Eu participei do Comitê Central. Foi tumultuada, porque eu não concordava muito, pra variar um pouco. Sempre tinha muita discussão. A Libelu é uma organização fantástica. Ela formou quadros absolutamente fantásticos. Não é a toa que os quadros da Libelu, hoje, são os quadros que dirigem o Estado brasileiro. Eu não tô entrando no mérito da posição ideológica, eu tô falando da formação de quadros. E a Libelu tinha uma disciplina, que eu qualificaria como uma disciplina perfeita do ponto de vista da organização de quadros. Por exemplo, pra você entrar na Libelu, que era o braço estudantil da organização trotskista OSI (Organização Socialista Internacionalista), você tinha que participar de um negócio chamado GER (Grupo de Estudos Revolucionários), que eram oito encontros quinzenais, para os quais a gente tinha que ler livros inteiros. Então se marcava: daqui a 15 dias a gente vai discutir o volume I de O Capital. Você vai ter de ler o volume I do Capital, bicho. Porque os capítulos referentes ao fetichismo da mercadoria, você vai ter que ler isso. Se você vai lá e fala: “Eu não li, não tive tempo, tô com dor de cabeça”; você tá fora. E dentro da Libelu a gente respeitava de uma forma muito disciplinar a ideia do Centralismo Democrático. Nunca houve um episódio em que dois militantes da Libelu falaram duas coisas diferentes numa mesma assembleia, nunca. Mesmo que eles discordassem internamente. Internamente, se quebrava o maior pau. Fechava o tempo, quase saía tapa, mas na hora de intervir na assembleia, era intervenção em bloco, todo mundo falando exatamente a mesma coisa. Nunca se ouviu falar de uma dissensão. A gente respeitava os princípios do Centralismo Democrático, da formação teórica, uma exigência permanente, e da cotização. Militante que não pagava a cotização, tava fora, não tinha conversa, a gente respeitava isso de uma forma muito rígida.
Bárbara Mengardo – Em que ano você entrou para a Libelu?
1977.
Bárbara Mengardo – Quando você desistiu de fazer Engenharia?
Eu fui levando, eu fui levando. Pra mim era tranquilo cálculo, análise vetorial. Não tinha nenhuma dificuldade nisso aí. Então, eu fui levando. Mas aí comecei a militar, fazer imprensa clandestina, jornal O Trabalho, imprensa do PT, imprensa da CUT, comecei a ser atraído pelo Jornalismo. E acho que em 1978 eu entrei na ECA e me formei
em 1982. Por um tempo levei os dois juntos.
Otávio Nagoya – Você se formou em Engenharia?
Não. Minha tática foi… meus pais moravam em Marília e toda vez que eu ia pra Marília eu ficava falando de jornalismo, jornalismo, jornalismo, jornalismo e não falava nada de engenharia. Um dia meu pai virou pra mim e falou: “Você largou Engenharia, né?” Eu falei: “Sim, senhor.” Ele falou: “Você ta fazendo Jornalismo?” “Sim senhor.”
Ele falou: “Você virou delinquente?” Eu falei: “Sim, senhor (risos)”. Porque, pra ele, jornalista e delinquente eram a mesma coisa.
Lúcia Rodrigues – Mas foi uma gozação que ele fez?
Não. Era o que ele achava.
Renato Pompeu – Você acha que estava equivocado?
Claro que depois que começou a aparecer meu nome no jornal, ele ficou orgulhoso. Ele colecionava meus artigos. Mas eu não discutia com ele, porque cada vez que a gente discutia era uma briga interminável, que não ia levar a absolutamente nada. E hoje se você perguntar pra mim o que eu acho do meu pai, se eu tivesse que escolher uma pessoa como referência, seria exatamente ele, apesar de ideologicamente a gente ter uma série de discordâncias. Mas era um sujeito que levava ao extremo a ideia de honra, de ética, de dignidade. Ele levava isso a um grau extremado. Eu não conheci outra pessoa tão íntegra, quanto meu pai, até hoje.
Lúcia Rodrigues – Você destacou a questão da cotização, do Centralismo Democrático e da formação teórica. O Centralismo Democrático existe em várias organizações e a cotização também, porém a formação teórica, hoje, deixa muito a desejar…
O Centralismo Democrático não é uma fórmula. Tem gente que acha que Centralismo Democrático se resume a uma fórmula: ampla discussão interna e unidade na ação. O importante é saber até que ponto você está disposto a levar isso até as últimas consequências. E muita gente confunde Centralismo Democrático com a obediência a uma ordem que vem de cima. E isso na Libelu nunca existiu. Não havia a ideia que alguém de cima fosse dar uma ordem. Mesmo porque os militantes da Libelu jamais aceitariam esse tipo de coisa. Então, quando você diz que existem várias organizações com Centralismo Democrático, eu tenho minhas dúvidas sobre isso. Eu acho que existe autoritarismo, com discurso de esquerda, que se veste de Centralismo Democrático. Às vezes, as pessoas acham que eu tenho o tom meio duro pra discutir, pra falar as coisas. Na verdade, isso é uma herança do Centralismo Democrático. Você expõe as coisas claramente. Você vai até as últimas consequências com aquilo que você acha, sem ficar com papas na língua, sem ficar com medo de ferir suscetibilidades e se dispõe também a ouvir. E, a partir dessa discussão, é que surge um consenso eficaz pra ação. Porque uma coisa é estar namorando, outra é eu discutir o que vou fazer que vai comprometer a vida das pessoas. E aí eu acho que não pode ter clemência, leniência cumplicidade, afagar a cabeça. Você falou uma coisa que está errada, tem que dizer: “ É um absurdo o que você acabou de falar, não tem o menor sentido.” Você tem que destruir a posição do cara. Por que? Porque se está num coletivo em que a decisão errada pode conduzir pessoas à morte. Você tem que quebrar o pau, tem que arrebentar, falar o que você acha. O Lênin quando achou que tinha que tomar o poder na Rússia em 1917 e a maioria do Comitê Central não quis, votou contra o Lênin, ele foi pras bases, levantou as bases contra o Comitê Central. E pau no cu do Comitê Central. Isso é Centralismo Democrático. Não é isso que existe na maioria das organizações. Então, não é verdade que a maioria das organizações tenha Centralismo Democrático.
Hamilton Octavio de Souza – Como é que você começou no jornalismo?
Na Libelu, no jornal O Trabalho, jornalismo clandestino. Depois fui fazer jornalismo na universidade, com mimeógrafo a álcool. A gente rodava no mimeógrafo e amanhecia com as mãos sujas de azul. Então a gente imprimia os panfletos. Na época tinha uma tática, você imprimia o panfleto e deixava a tinta secar, se molhava as folhas com álcool pra grudar uma folha na outra e deixava num lugar que ventava. Aí o álcool secava e as folhas soltavam e o vento levava os panfletos, pra ditadura não pegar.
(*) Para ler a entrevista completa e outras matérias confira a edição de setembro da revista Caros Amigos, já nas bancas.

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