Falsos, Apócrifos ou Adulterados?
Quando as pessoas ouvem falar de “documentos falsos”, o primeiro que aparece na mente é um conjunto de outros produtos também chamados de falsos ou falsificados. Pensamos em remédios falsos, perfumes falsos, programas de computação falsos (piratas), etc.. Senhores com mais de 45 anos se preocupam pela falsificação do Viagra. Neste caso, o remédio falsificado é aquele que não foi fabricado pela empresa que patenteou a marca, e que, por esse motivo, é suspeito de não ser tão eficiente como o “verdadeiro”. Por exemplo, um Viagra falsificado pode falhar na hora H, obrigando seu autor a usar a conhecida frase “Nunca aconteceu antes comigo”.
Mas, mesmo se o objeto “imitado” fosse idêntico ao original, a mídia continua chamando-o falso, embora, para um conhecedor do português (ou ainda do portunhol), deveria ser chamado “apócrifo”.
No caso da falsificação de documentos, as pessoas imaginam um complicado processo de escolha de papel, imitação de assinaturas, construção de carimbos “falsos”, preparação de tinta especial, e colocação hologramas, aqueles selos mágicos, onde cada pedaço da figura conserva a informação do total, como as vassouras cortadas a machado do Aprendiz de Feiticeiro.
Embora a oficina de um geek com algumas notas de 100 dólares seja suficiente para montar “falsificações” deste tipo, as pessoas imaginam em seguida grandes organizações criminosas com toneladas de equipamento. Este efeito é aproveitado pela mídia, para sugerir que alguém que anda com um passaporte “falso” (apócrifo, irregular, etc.) é um perigoso terrorista equipado pelas poderosas oficinas que Al-Qaida mantém, com bilhões de euros, em cidades subterrâneas do Paquistão.
Esta ignorância, unida ao ódio nutrido pela classe média contra aqueles que perturbam sua aliança morganática com as elites (que lhes dão algumas migalhas), é alimentada para aumentar o terror e a sede de sangue contra aqueles que só fogem da perseguição, vingança e loucura assassina. Em geral, quase toda a mídia explora essa imagem, mas algumas calibram suas baterias para que a confusão seja total. Por exemplo:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u702876.shtml
O que é aqui “passaporte falso”:
1) Um que foi desenhado por criminosos artistas, reproduzido em gráficas clandestinas, e que nada tem a ver com o governo da França???
2) Ou um passaporte emitido pelo governo, mas que foi adulterado, por exemplo, alterando uma firma ou uma foto???
3) Ou um passaporte integramente autêntico, mas que é utilizado por outra pessoa que não é o titular? Assim, João da Silva, de 17 anos, usa o RG de seu irmãozinho José, de 19 anos, para entrar num prostíbulo de luxo.
A imprensa confunde os três conceitos não apenas pela ignorância de seus colunistas (a que não deve ser subestimada… digo a ignorância, não os colunistas), mas também para exacerbar o temor ao perigoso foragido.
As pessoas têm este terror aos falsificadores a partir de sua idéia da falsificação do dinheiro. Todos ouviram falar que as infrequentes falsificações de dinheiro são feitas por organizações internacionais. Isto é verdade: o papel das notas é muito sofisticado e sua produção requer processadoras de celulose gigantescas que não qualquer gangue possui. Então, quando se diz que um perseguido político fugiu com um passaporte falso (que talvez seja o passaporte de um amigo com idade e aspecto similares), a população imagina que ele está vinculado com uma poderosa organização internacional. É a tática do terror mediático, usada milhares de vezes nos últimos 100 anos. O caso de Battisti foi um dos mais patologicamente exagerados. A intensidade do ódio investido pela mídia brasileira e italiana foi maior que a que investiu a americana contra Bin Laden, embora a extensão da propaganda anti Bin Laden tenha sido, obviamente, maior.
Refugiados Irregulares
A entrada de um perseguido num país com o objetivo de obter asilo sugere que a vítima não necessariamente possui os documentos que o estado exigiria de um turista, visitante ou imigrante normal. Geralmente, o refugiado não tem tempo, nem condições nem segurança, para obter um documento normal.
Pode acontecer que o perseguido possua entre seus documentos um passaporte válido, ou outros documentos que seus perseguidores não tenham ainda anulado. Isto é frequente em países cujos pontos de fronteira não estão totalmente informatizados. Foi meu caso, por exemplo, quando fugi da Argentina. Meu passaporte estava vencido, mas eu tinha uma cédula de identidade válida, que o Brasil reconhece para trânsito. Atravessei a fronteira por um deserto e remoto ponto, uns meses antes do golpe, quando a lista dos milhares de suspeitos (que o governo democrático tinha começado a fazer) ainda não estava completa. Entrei no Brasil, compareci à Polícia Federal e não despertei suspeitas até muito depois.
Mas, em outros casos, como o de Battisti, foi diferente: depois de 26 anos de perseguição era improvável que ele tivesse um passaporte perfeitamente próprio.
Entretanto, a Convenção de Genebra de 1951 sobre refugiados, em seu artigo 31, estabelece uma condição que foi incorporada depois a todos os tratados sobre refúgio.
OS ESTADOS NÃO PODEM IMPOR PENALIDADE POR CAUSA DA ENTRADA OU PRESENÇA ILEGAL DOS REFUGIADOS QUE ENTRAM NO PAÍS SAINDO DIREITAMENTE DE PAÍSES ONDE FORAM PERSEGUIDOS […]
http://www2.ohchr.org/english/law/refugees.htm
Isto concorda perfeitamente como o caso de Battisti. Ele chegou ao Brasil diretamente da França, onde estava sendo perseguido naquele momento, mesmo que a punição final fosse reservada para a Itália.
Para quem não sabe, é necessário lembrar que ATÉ A DITADURA MILITAR BRASILEIRA (em sua segunda etapa, aberta com Geisel) respeitou o fato de não punir refugiados com documentos irregulares ou sem documentos.
Em 1977, eu ainda não pertencia a AI. Mas, mesmo assim, como era desde muito antes ativista de DH, idealizei em Campinas uma rede informal de proteção semiclandestina, para dar assistência aos refugiados do Cone Sul, os encaminhar para o ACNUR, e agitar o máximo possível quando alguém era reprimido.
Na época, existia uma dependência da polícia de São Paulo chamada DELEGACIA ESPECIALIZADA DE ESTRANGEIROS, que dependia do DEOPS. Uma noite fui informado por telefone de que dois garotos (um uruguaio e um chileno) tinham sido detidos pela PM nas ruas centrais de SP e entregues à Polícia Especializada.
Quando me identifiquei como professor da UNICAMP, um delegado me recebeu e me disse que ambos jovens estavam com “documentos falsos”. Esses documentos eram passaportes de outras pessoas, mas não tinham sido falsificados. Depois de uma breve conversa, o delegado admitiu que eles tinham medo de perseguição e que estaria disposto a libertá-los sem abrir ocorrência, desde que o ACNUR se responsabilizasse por eles.
(PENSE QUE ESTAMOS FALANDO DE UMA DITADURA CONSIDERADA TERRÍVEL!)
Na época, o chefe do alto comissionado era o francês GUY PRIMM, uma figura única dentro da burocracia internacional. Guy era uma mistura de grande humanista, um herói de sua própria causa, e um amigo e irmão dos refugiados. Em seguida, o ACNUR pediu ao delegado que soltasse os garotos. O assunto dos passaportes foi esquecido. Tempo depois, soube que o rapaz uruguaio tinha sido refugiado na Suécia e estudava medicina. O chileno conseguiu ficar no Brasil e montou uma loja. Depois da mudança de representante de ACNUR, talvez as coisas não teriam sido tão fáceis. Quem sabe?!
O STF e os Juízes Federais: Descompasso
Voltando ao caso de Battisti, é interessante observar o descompasso entre a sanha do STF e as oscilações da justiça federal no Rio de Janeiro.
Para os padrões draconianos com que a justiça brasileira pune perseguidos políticos (embora premie grandes genocidas, como o finado Stroessner), dois anos de prisão em aberto, com uma tarefa de colaboração com a comunidade, é um castigo simbólico. Pensem que Battisti ganhou amigos (e amigos talentosos e importantes) em todos os lugares onde esteve. Sem dúvida, dois anos fazendo tarefas sociais (que ele já fez em muitos outros lados sem ordem judicial) reforçarão sua imagem de pessoa corajosa e humana, e contribuirá a desmentir as calúnias construídas por um bando de miseráveis.
Isto mostra que a justiça e a polícia federal do Rio foram hesitantes. Primeiro, aceitaram investigar denúncias mirabolantes da Itália sobre atividades terroristas de Battisti no Brasil, algo que deveria ter sido arquivado imediatamente por absurdo. Mas, depois tiveram a honestidade de reconhecer que era tudo uma bufonada. Agora, como tem enfatizado o advogado de Cesare, o lendário Luiz Eduardo Greenhalgh, a polícia federal brasileira chegou a reconhecer a participação da polícia francesa na detenção de Battisti, mostrando um caso típico de sequestro criminoso internacional (semelhante aos que a CIA faz com os islâmicos), que antes tinha sido negado.
Esta conduta é bem diferente da sistemática, coerente e calculada corrente de falsidades, truques e manobras que o relatório do STF utilizou para distorcer todas e cada uma das fases do processo para que o perseguido pudesse ser crucificado.
Um Exemplo Útil para as Excelências Togadas
Quero contribuir a esta caçada de bruxas da justiça com mais um caso, o meu: EU TAMBÉM USEI, EM 1979, UM PASSAPORTE ADULTERADO.
Não tenho o corpo do delito, porque, quando a ditadura argentina caiu, queimei esse passaporte e pedi outro ao consulado do novo governo. Mas, acredito que a justiça brasileira confia no que se chama “confissão de parte”. Ninguém declara falsamente contra si mesmo se não for torturado. Aliás, se passaram apenas 30 anos, e o exímio relator não terá problemas para fazer outra acrobacia numérica que mostre que meu caso não está prescrito. Como o crime foi cometido no Brasil, não precisa de pedido de extradição da Argentina.
Vou resumir alguns dados, mas a história completa se encontrará num futuro livro.
Desde que entrei na UNICAMP fui vigiado por alguns professores argentinos e chilenos que eram espiões vocacionais de seus governos. Os quatro mais próximos de mim (CSF, m. 2007; EdO, m. 1995; ARR, m. e RCK, m. 1995) não eram, naquele momento, informantes contratados. Sua afinidade com a ditadura era ideológica e estava reforçada por laços de amizade com os principais ditadores. Eles tinham sido bem recebidos por nosso chefe, que achava promissora a colaboração científica com governos fascistas que não permitiam o “alvoroço” dos subversivos.
Em 1979, formou-se um acúmulo de denúncias contra mi (unido ao fato de que eu tinha publicado algumas notas no Estadão) e aumentou a pressão de meu chefe para deixar o país. Decidi acatar esse “conselho”, bem como uma ameaça telefônica anônima. Todos meus familiares tinham documentos em ordem, mas meu passaporte estava vencido.
No final de 1979, junto com amigos, fiz uma pequena “alteração” do passaporte. Modificamos o ano de vencimento, 1974, pela data “falsa”, 1981. Embora de apenas dois dígitos, essa modificação foi uma FALSIFICAÇÃO e poderia dar alguns anos de cadeia.
Se alguém se interessa, não estou clandestino, vivo normalmente, e sou fácil de ser encontrado. Além disso: não vou fugir nem resistir, mas não posso pagar advogado…