Ninguém duvida mais do potencial ideológico do cinema desde que D. W. Griffith lançou em 1915 o seu filme “O nascimento de uma Nação”. Película claramente racista, em que brancos atores pintados de negros são difamados como violentos contra brancos e ainda que os negros são destituídos de inteligência. O filme dava um reforço aos escravistas americanos ainda descontentes com a libertação dos escravos. Os rumos do filme e as reações que sofreu mesmo nos EUA e as mudanças de Griffith não vem ao caso, o que nos importa é que ele abriu um portal que não se fechará jamais na arte cinematográfica: a “sétima arte” tem poder ideológico de manipulação coletiva das massas. Como bem afirmava Walter Benjamin, o cinema pode tornar-se um “poderoso aparelho publicitário”. C hegamos a isto, também. A mais recente noticia deste papel a que pode se prestar a imagem cinematográfica foi nos apresentado esta semana (setembro de 2012) no You tube com trechos do filme: Innocence of Muslims do estreante “diretor” Sam Bacile. Ele mesmo se intitula de judeu israelense que mora nos Estados Unidos.
Em algumas palavras que encontramos em sites de jornais pronunciadas pelo próprio, o filme foi financiado por 100 judeus ricos e custou o equivalente a 5 milhões de dólares. Pouco para os grandes filmes Norte-americanos, mas muito para se fazer um filme de propaganda contra a religião árabe em um momento difícil e de grandes tensões no Oriente Médio e nos EUA. Em trechos relativamente longos que encontramos na internet do filme, podemos ver claramente a intenção do “diretor”: difamar a figura histórica de Maomé. Em vários momentos do filme o fundador da religião islâmica é apresentado como a d últero, pedófilo, bissexual e um instigador de violência gratuita. O problema de tais informações é que não encontram respaldo histórico algum. Lendo o trabalho acadêmico do historiador francês especialista em história Árabe Dominique Sourdel, intitulado: História do povo Árabe, não encontramos jamais indícios desse comportamento de Maomé ou dos seus seguidores. Então, de onde vem a “licença poética” para a “arte” do ilustre desconhecido Sam Bacile? Sem dúvida, dos debates ideológicos bem rebaixados e incentivados diariamente pela mídia e pela direita Norte-americanas.
Desde o lamentável “11 de setembro” de 2001 e um pouco antes dele, se criou nos EUA da América uma “cultura contra os árabes e sua religião Islâmica”. Obviamente, capitaneada pela “era Busch” de triste memória. Isto não significa uma posição totalmente acrítica em relação à religião Muçulmana de nossa parte. Destacamos o livro virulento do filósofo Michel Onfray Traité d´Athéologuie, publicado em 2005 pela editora francesa Grasset. O livro é uma tentativa de fundamentar o ateísmo a partir do histórico e das práticas politicas das religiões monoteístas (cristã, judia e islâmica). O filósofo francês faz duras críticas às práticas históricas das religiões monoteístas a ponto de defender a tese de que o mundo estaria mais seguro sem elas. Nas suas críticas, em nenhum momento o autor faz acusações do tipo podofilia ou bissexualidade dos fundadores de cada uma das religiões. A questão para ele não é de alguma “fofoca moral”, mas de caráter politico.
Ele usa fontes de obras das próprias religiões e assume sua postura ateia. Independente de concordarmos ou não com Onfray, temos uma obra séria e de argumentos fundamentados em bases sólidas, o que falta hoje aos opositores mais delirantes do Islã nos Es ta dos Unidos e Europa. Não temos dúvida alguma das contradições do Islã ou de qualquer religião existente. Uma religião como fenômeno histórico é tão contraditória como qualquer instituição, por mais que seus fiéis digam o contrário. Existe no Islã fundamentalistas, como existem liberais. Existe no Islã regras morais como existe em toda religião que mereça o nome. Por fundamentalismos e moralismos, boa parte dos cristãos e judeus Norte-americanos não tem a menor razão de criticar os muçulmanos. São tão reacionários quanto qualquer “Talibã” do Afeganistão. Chegam a ser patéticos se não fossem poderosos em termos políticos nos EUA.
O filme Innocence of Muslims vem em péssima hora e da maneira mais infeliz possível. O saldo atual: morte do embaixador americano na Líbia e mais três funcionários da embaixada Norte-americana como reação ao filme e à politica dos Estados Unidos no mundo Árabe. Por enquanto. O apoio do Estado de Israel ao filme é desastroso e só coloca mias lenha na fogueira dos conflitos Árabe/Judeu. O irônico nessa história de cinema e ideologia religiosa é o fato do Estado de Israel ser crítico violento dos filmes de Amos Gitai por considerá-los ofensivo ao povo judeu que vive em Israel. Gitai é um judeu e profundamente critico da politica de Israel contra os Palestinos e nos seus filmes também faz críticas ao fundamentalismo judaico e da condição da mulher nesses guetos ortodoxos. Merece citar aqui um a obra prima do cineasta israelense intitulada: Kadosh (1999). Em nada Gitai cai em antissemitismo ou preconceito racial. Seus filmes são uma espécie de “documento” do mundo Árabe e da posição de Israel nesse contexto. Filme com caráter ideológico sim, mas sem serem panfletários.
Não há interesse de Gitai em fazer campanha contra judeus, mas desmistificar as politicas do Estado de Israel no mundo Árabe. Há em seus filmes as periferias de Israel, a condição contraditória das mulheres, o fundamentalismo judaico tão danoso quanto o islâmico, a situação da juventude pobre, os rituais repetitivos e vazios de mística. Diferente do que fez Sam Bacile. O filme do israelita/americano ínsita o ódio gratuito a Maomé e aos Árabes e reforça a política equivocada dos Estados Unidos no mundo Árabe. Pouco sabemos do cinema produzido no Oriente Médio . Sal vo os filmes iranianos sempre premiados fora do Irã, sabemos pouco do que se produz naquela região, mas o que vemos do cinema do Oriente Médio no Ocidente é de encher os olhos. São filmes delicados, simples e de narrativa que primam pela memória, muito diferente desses panfletos idiotas feitos por alguns Norte-americanos com a intenção nitidamente de macular a imagem do povo Árabe. Não é assim que se faz “geopolítica internacional” com o cinema e não ajuda em nada a suposta liberdade e democracia que defendem tão ardorosamente os mesmos Norte-americanos.
O autor é docente no Depto. de Filosofia da UFS