Na farmácia do Evaristo

Por Fernando Pessoa

Era uma tarde de domingo. Acabara, na manhã desse dia, o movimento militar de 18 de Abril. Estava restaurada a ordem visível. Em todas as caras se via o aborrecimento e o mal-estar que a imprensa do dia seguinte havia de chamar “a alegria que se lia em todos os rostos”, o que é possível num país onde tão pouca gente sabe ler.

A farmácia do Evaristo, que estivera sempre aberta, começou a receber os seus estacionários do costume. A conversa misturou-se, simultânea e prolixa. A voz alta do Mendes, republicano democrático, erguia-se congratulatória. Nisto assomaram à porta os dois habituais que ainda faltavam. Um saudação geral os acolheu.

O José Gomes, mais conhecido por o Gomes Pipa, entrou lentamente na farmácia. Das duas razões da sua alcunha, uma estava à vista no bojo formidável da sua corpulência. A outra, se alguém a quisesse saber, sabê-la-ia logo nas palavras que vinha dizendo, Acompanhava-o o Justino dos coiros. O Gomes vinha limpando a boca.

— Já tenho bebido melhor…

— Pois sim, mas não é mau…

— Não, mau, mau não é… — Aqui este tipo defronte — pena é estar fechado — é que tem um vinho branco…! Então já está tudo sossegado?

—Tudo, disse o Mendes.

— E o amigo Mendes contente com o restabelecimento da ordem, ham?

— Pois é claro…

— E com a conduta das tropas fiéis — isto é, fiéis àquilo a que foram fiéis?…

— Àquilo a que foram fiéis? Ao governo, que é a quem tinham obrigações de ser fiéis. Ao governo, a ordem, à disciplina, às instituições! Portaram-se bem. mas não fizeram senão a sua obrigação.

— Folgo muito, Sr. Mendes, disse o Gomes sentando-se num banco e puxando pela bolsa do tabaco; folgo muito, como amigo da ordem, em vê-lo apreciar devidamente a fidelidade ao dever jurado e à obrigação militar.

— Não vejo razão para folgar tanto! Como não pode haver dúvida que eles fizeram bem cumprindo o seu dever de militares, e até de cidadãos, não é de estranhar que se ache bem que eles o cumprissem…

– Sim, senhor, respondeu o Gomes Pipa. Mas não é só por isso que eu folgo com o seu aplauso a eles e com o seu justo apreço da fé jurada e do dever militar. Folgo sobretudo, como monárquico, com a condenação, que com isso o sr. fez, da revolução e dos revolucionários do 5 de Outubro.

— Hem? O quê? Do 5 de Outubro?

O Gomes enrolou lentamente o seu cigarro vulgar.

— Sim, do 5 de Outubro. Os militares e marinheiros, que no 5 de Outubro se revoltaram, tinham jurado, como estes, manter a ordem e defender as instituições, que eram então as monárquicas. E como estes fizeram bem mantendo-se firmes ao seu juramento e ao seu dever militar, aqueles fizeram mal faltando ao deles. É com esta sua opinião que eu folgo. Estimo-a pela imparcialidade, vindocomo vem, de um republicano.

— Perdão… Não é nada disso… O 5 de Outubro é um caso diferente..

— Diferente? Diferente em quê? — E o Gomes suspendeu calmamente o acendimento do seu cigarro.

— No de Outubro a revolução nasceu de um impulso nacional, correspondeu, por assim dizer, a um mandato imperativo da nação inteira, ou, pelo menos, da sua enorme maioria. Tanto assim que o movimento venceu com facilidade, e com torças aparentemente insuficientes…

— O ter vencido com forças aparentemente insuficientes não é argumento, meu amigo. Num país que não está numa situação brilhante de disciplina e de ordem, corno então acontecia, e com um governo fraco ainda por cima, um movimento revolucionário, desde que passe de uni simples motim, facilmente vencerá, pela repugnância que há em combater compatriotas, e pela falta de hábito em fazê-lo, para que se vença essa repugnância. Deixemos isso da vitória fácil… Ou o sr. pretende basear na facilidade dessa vitória o único argumento a favor do carácter nacional do 5 de Outubro? Se vamos a isso, com muito mais facilidade venceu o chamado “movimento das espadas”, com que foi ao poder o Pimenta de Castro, sendo portanto consideravelmente mais nacional.

— O movimento das espadas foi um movimento exclusivamente militar, tomou toda a gente de surpresa…

— Exactamente. É isso que eu digo… Basta tomar de surpresa, apanhar os outros sem preparação condigna para vencer, sem que a vitória representa mais que os outros não estarem prontos…

— Espera lá: não é só isso… O movimento das espadas, repito, foi exclusivamente militar; no 5 de Outubro entraram muitos civis…

— Isso quer dizer simplesmente que havia civis que estavam na conspiração, e, se estavam, é natural que viessem para a revolução também. E quanto a outros quaisquer, logo que os armassem, porque não entrariam?… Mas eu não nego que o partido republicano tivesse em 1910 partidários bastantes para poderem entrar bastantes civis na revolução… O que nego

é aquilo em que o sr. pretende basear a sua justificação da traição e da aleivosia dos militares e marinheiros (para não falar nos civis) que entraram na revolução de 5 de Outubro. O sr. diz que essa traição se justifica pelo facto de o 5 de Outubro ser um movimento nacional, uma espécie de mandato imperativo da nação. E o sr. não me citou argumento nenhum que provasse esse carácter nacional do movimento, nenhum argumente pelo qual esse movimento se distinga de qualquer outro movimento em que entrem militares, faltando à sua obrigação e ao seu juramento, e civis, porque estavam combinados para entrar ou foram armados para que entrassem. O próprio facto, que o sr. citou, de o movimento ter tido poucas forças — de aí, diz o sr. o ser de pasmar que ele vencesse, mas eu já lhe expliquei isso —, o próprio facto, repito, de o sr. dizer que o movimento se fez com

pouca gente não é com certeza a melhor maneira de provar que ele representasse um mandato imperativo da nação, ou uma aspiração nacional a realizar-se.

— Talvez, Sr. Gomes, eu me exprimisse mal… Exprimi-me mal, com certeza… É atmosfera, o ambiente, do movimento que provaram bem o seu carácter nacional…

– Oh, amigo Mendes, isso não serve… Reduza lá isso das atmosferas e dos ambientes a qualquer coisa mais visível. Há-de haver por força sinais evidentes, distintivos, de se um movimento é nacional ou não. Essa atmosfera, esse ambiente, hão-de reflectir-se em qualquer coisa de concreto, de palpável… Refere-se o sr. por acaso à circunstância, que na verdade se deu,

de o movimento ter sido acolhido, em geral, com uma certa simpatia?

— Sim, isso, por exemplo… O que é que isso prova senão que…

— Prova que toda a gente tinha um medo medonho da revolução republicana, julgando, pela falta de prática de revoluções, que caíam este mundo e o outro quando uma revolução viesse… Em comparação com o que as imaginações aterrorizadas se figuravam do que fosse uma revolução, o 5 de Outubro, que realmente foi brando e limpo, foi um alívio, como o é sempre a realidade, ainda que má, quando a imaginação a figurava muito pior.. Essa própria sensação de alívio deve ter despertado em muita gente uma certa hesitação esperançosa… Mas isso tudo, amigo Mendes, são fenómenos posteriores à revolução, ambiente sobrevindo mas não preexistente… Os mandatos, salvo erro, precedem o acto a que compelem… Um ambiente que se segue não é um ambiente que precede… Continuo, pois, a não achar aceitáveis as razões que alega para considerar o 5 de Outubro um movimento nacional…

— É difícil de explicar, realmente, mas…

— Vamos lá a ver se com o meu auxílio o sr. consegue desencaixotar a sua lógica… Vamos a um facto concreto, que realmente pode alegar-se como justificação de se chamar nacional à revolução de 5 de Outubro… Esse facto é o de ter ficado e durado a República…

— Ora exactamente, é isso mesmo.

— Não é, amigo Mendes, não é… A República tem durado, sim; mas tem durado de uma maneira irregular, cortada constantemente por movimentos vários, monárquicos e outros, e em perpétua atitude de sobressalto, de defesa e de confusão. E como esses vários movimentos não têm sido motins vulgares, de rua, mas revoluções em forma, algumas vitoriosas, em que entram regiões inteiras do país (como na restauração monárquica no Norte) e grandes forças do exército e numerosos civis, tem havido, ao que parece, ambiente e atmosfera para os dois lados. De modo que nada autoriza a que afirmemos que o 5 de Outubro teve mais “carácter nacional” que qualquer outra revolução ou revolta. O impulso nacional seria indubitável se, proclamada a República, caíssemos em paz, sem mais agitações nem revoluções, ou, quando muito, com meros pequenos motins, episódicos e incaracterísticos… Mas agora reparo que nos afastámos do nosso caso original… Mesmo que o 5 de Outubro fosse um movimento classificável de “nacional”, isso nada tinha com a questão da traição e da deslealdade dos militares e dos marinheiros que o fizeram… É esse, creio eu, o ponto que estávamos discutindo

— Perdão, alguma coisa tem…

— Que coisa?

— A fidelidade ao juramento é realmente uma coisa importante. Mas há casos em que não é a mais importante de todas. Os interesses supremos da Pátria, que são o mais importante de tudo, podem prevalecer, se for preciso, sobre todos os juramentos e sobre todos os compromissos de fidelidade!

— Ah, sim… É verdade: o Sr. foi germanófilo?

— Eu?!… Eu germanófilo?!… Mas a que propósito?…

— É que esse é o argumento de que se serviu von Bethmann Hollweg naquela célebre declaração em que chamou aos tratados “farrapos de papel”. Os interesses supremos da Alemanha, sua pátria, estavam, disse ele, acima da fé dos tratados, isto é, do compromisso, ou juramento, escrito que um tratado representa…

— Pois sim, pois sim… Mas um tratado é uma coisa diferente…

— É apenas compromisso, ou juramento, escrito. O sr. naturalmente não vai sustentar a teoria de que é legítimo, por exemplo, a gente negar as dívidas de que se não possa apresentar documento?… Mas, enfim, isto não tem nada para o caso. O seu argumento pode ser germânico e válido: a Alemanha não está proibida, depois da guerra, de ter razão… Vamos ao argumento… Se é legitimo faltar ao juramento e é obrigação em favor e defesa dos interesses supremos da Pátria — e por interesses supremos da Pátria entende o sr. sem dúvida aquilo que os revolucionários pensavam ser os interesses supremos da Pátria porque não é legítimo nos actuais revoltosos, e em todos os outros que se têm revoltado durante a República, invocar o mesmo argumento? O sr. vê neste movimento, por exemplo, homens sérios e que se mantiveram sempre fiéis à defesa da ordem e do cumprimento da disciplina. Sirva de exemplo o tenente coronel Raúl Esteves. Para ele ter entrado neste movimento, tendo-se recusado sempre a entrar em qualquer outro dos vários para que constantemente o convidavam, o que sem dúvida pensou que a isso o compeliam os superiores interesses da Pátria. Não há, pelo menos, o direito de pensar o contrário, porque então se pode pensar o mesmo contrário dos revolucionários do 5 de Outubro. Não dou o argumento como legítimo para mim — para mim nada pode prevalecer sobre o juramento prestado —, mas dou-o como legítimo para si, visto que o emprega para defender os revolucionários do 5 de Outubro, pessoas de muito menos categoria e prestígio, aliás, que os chefes desta última revolta.

— Perdão, sr. Gomes… Eu não nego, nem preciso negar, que pudesse ser boa a intenção dos chefes desta revolta. O que afirmo é que, se a sua intenção era boa, era ao mesmo tempo errada. E tanto era errada, tanto o movimento não correspondia a uma aspiração nacional, que se deu com ele, apesar de bem planeado, uma coisa que eu ia ainda agora objectar-lhe, mas que guardei para depois para o não interromper… É que este movimento foi sufocado; falhou… E a verdadeira prova da falta de ambiente é essa: falhar…

— Tem graça: outro argumento germânico!

— Outro argumento germânico?

— Sim. Foi o filósofo alemão Hegel que inventou o argumento de que a própria vitória é a justificação da vitória, e que quem vence é que tinha direito a vencer, por isso mesmo que vence. É um argumento que andou muito em uso nos escritores militares e militaristas da Alemanha, e que tem um certo parentesco moral com aquilo de “a força supera o direito” que o (…) disse, atacando Bismarck, que podia ser a divisa dele. Mas enfim, aqui estamos no mesmo caso de ainda há pouco. Um argumento pode ser de Hegel e ser valido. O caso principal é outro. A vitória é que prova a legitimidade, o “ambiente” de um movimento? Está bem… Ora o Sidónio venceu…

— E quanto tempo durou a situação do Sidónio, Sr. Gomes?

— Durou até ao fim, como todas as coisas. Durou enquanto durou. Não durou tão pouco que isso pese como argumento, nem acabou senão porque, estando concentrada num só homem, uma simples bala, isto é, um só homem pode terminá-la. Mas, afinal, em que é que ficamos? O Sr. tinha-me dito que a vitória de uma revolta é que provava o seu ambiente. Eu já respondi em parte a isso quando respondi à sua alusão à facilidade com que o 5 de Outubro vencera; agora respondo de novo com a vitória do Sidónio. Mas o sr. fala-me agora, já não em simples vitória, mas em duração da situação criada pela vitória, o que é uma coisa diferente… Quanto tempo é que uma situação tem que durar para o sr. a considerar legítima?

— Não é o durar, meu caro senhor, é e maneira de durar…

— Também já respondi a isso… Já lhe disse que se a vida da República tivesse sido de inteira paz, se a vinda da República tivesse eliminado as dissenções importantes, se poderia com efeito considerar de carácter nacional o movimento que a implantou. Mas, como não sucede isso, mas exactamente o contrário. não vejo a que “maneira de durar” o sr. alude…

O Canha das barbas, que, do lado, sentado contra o balcão, tinha estado a ouvir atentamente o decurso da conversa, interveio de repente, depois de tossir.

— Dá-me licença, ó Gomes, o caso não é esse… Não se trata de maneira de durar nesse sentido. Se aqui o Mendes me dá licença que fale por ele, vou ver se ponho o caso mais a claro… Desde que se implantou a República tem havido, com efeito, vários movimentos revolucionários, de parte a parte, e, dos opostos à chamada “normalidade constitucional”, alguns temporariamente vitoriosos. Mas, mais tarde ou mais cedo, tem-se sempre vindo a cair na linha original, isto é, na sucessão legítima dos governos republicanos, saídos de parlamentos que são eleitos, bem ou mal, segundo normas constitucionais assentes, comuns a todos os estados civilizados. Mais tarde ou mais cedo tem-se sempre vindo cair nesta “normalidade” constitucional; por isso se pode afirmar que os movimentos contra essa normalidade constitucional, falhados ou temporariamente vitoriosos, têm sido simples interrupções, sem carácter nacional. E tanto têm sido interrupções, que as situações criadas por eles, mesmo quando plenamente vitoriosos, acabam sempre por se extinguir com uma rapidez espantosa, como a situação dezembrista se sumiu pelo chão abaixo depois da morte do Sidónio. É isto, se me não engano, que o Mendes queria dizer quando se referia à “maneira de durar” dos governos republicanos constitucionalmente legítimos, e à pouca duração do regímen sidonista como prova da sua falta de carácter nacional, em comparação com esses outros governos. É isto ou não é, ó Mendes?

— Exactamente, Sr. Canha, anuiu o Mendes; é isso sem tirar nem pôr. Ainda bem que falou por mim, porque eu não punha as coisas tão certas…

— Está bem, disse o Gomes Pipa. Aquilo a que se chama normalidade governativa, seja ou não constitucional, assenta forçosamente em uma de três coisas ou na continuidade com a governação anterior ou na justificação eleitoral, ou na aceitação espontânea pelo país, haja ou não continuidade e justificação eleitoral. Pode assentar em mais que uma destas três coisas, mas pelo menos em uma tem forçosamente que assentar. E não há quarta coisa em que possa assentar.

Ora agora, meus amigos, vamos lá considerar essas coisas uma a uma. Comecemos pela mais simples, visto que não importa por qual se comece, desde que se considerem todas. A mais simples, para o nosso caso, é a de investigar se há ou não aceitação espontânea, da parte do país, da situação republicana, ou seja dos resultados da revolução do 5 de Outubro. A isso já eu respondi. Se, vinda a República, o país tivesse caído em normalidade constitucional autêntica, isto é, em ausência de revoluções, de contra-revoluções e de pronunciamentos, tão importantes que alguns têm sido vitoriosos, haveria direito a supor a aceitação espontânea, pelo país, da situação republicana. Mas, como se não dá essa circunstância, a aceitação espontânea não só se não pode presumir, mas claramente se vê que não existe. Pode, ainda, alegar-se que esses movimentos vários são golpes de audácia, sem mais sentido que serem golpes de audácia. Para que isso se pudesse alegar com razão era, porém, preciso — primeiro, que essas revoluções e revoltas não fossem constantes, sendo portanto constante o estado de anormalidade, que é o contrário de normalidade, constitucional ou outra; segundo, que essas revoluções não fossem importantes, e muito menos vitoriosas de quando em quando, o que indica que têm consigo a massa ou força suficiente para, pelo menos naquele momento, terem mais massa e força que o governo; terceiro, se se quiser alegar que esses movimentos são simples de audácia felizes, que se não pudesse alegar precisamente a mesma coisa do 5 de Outubro, feito com muito menos forças que a maioria desses outros movimentos. Não há, portanto, aceitação espontânea, pelo país, da situação republicana, nem nada que de longe se pareça com essa aceitação espontânea. Vamos ver, agora, se haverá justificação ou pela continuidade com a situação governativa anterior, ou pela ratificação eleitoral.

Comecemos pela consideração se há ou não justificação eleitoral. Ora as eleições em Portugal ou são uma burla, ou não são uma burla ou são às vezes uma burla e outras vezes não. Se são sempre uma burla, como crê a maioria da gente, desde que não esteja a mentir por obrigação partidária, então não há justificação eleitoral, e o argumento cai pela base. Se não são nunca uma burla, então são tão válidas as eleições do tempo do Sidónio como as dos períodos democráticos, sendo-o especialmente a formidável votação que elegeu o Sidónio, por sufrágio directo, presidente da República, e que foi a maior manifestação eleitoral que tem havido dentro da República. E, neste caso, o povo português é de uma volubilidade extrema e doentia, devendo ter a governá-lo, ou regímen nenhum, para haver correspondência governativa com essa volubilidade, ou um regímen monárquico ou ditatorial absoluto, para a refrear eficazmente. Se as eleições são às vezes uma burla e outras vezes não, como distinguiremos uma coisa da outra? Considerando, não só por observação directa que qualquer de nós pode fazer e tem feito inevitavelmente, mas também pelo número de revoluções de diversos tipos que tem havido, e que têm tido força bastante para se formar e às vezes para vencer, que o país se encontra dividido entre várias correntes políticas, entre as quais algumas bastante fortes, as eleições que foram menos burla serão aquelas em que a representação parlamentar se encontra mais dividida, em que os adversários da situação política se encontrem mais largamente representados, sobretudo se forem adversários do próprio regímen. Ora o único parlamento republicano onde houve uma larga representação monárquica foi o parlamento do Sidónio. Foi portanto esse o parlamento que, sem ser necessariamente eleito com absoluta seriedade, foi o que mais se aproximou dela.

O Canha das barbas interrompeu sacudidamente.

— Ora adeus, ó Gomes! Os monárquicos foram eleitos nessa proporção porque o Sidónio quis…

— Se o Sidónio quis, isso quer dizer que não usou de burlas eleitorais contra eles, e é isso mesmo que eu pretendo provar — que foram essas eleições, sem serem boas, em todo o caso as melhores que tem havido durante a República.

O Mendes interveio, encolhendo os ombros.

— O Sidónio quis, mas não foi por espírito de justiça… Quis porque os monárquicos o apoiavam, e portanto não lhe importava nada que houvesse muitos no parlamento.

— Óptimo, replicou o Gomes. Se os monárquicos não hostilizavam o próprio Sidónio, temos o ideal de um parlamento de “normalidade constitucional”, em que ambas as correntes que o formam, embora entre si adversas, dão ambas apoio ao chefe do Estado. É um parlamento como o inglês, em que todas as grandes correntes, que o constituem estão de acordo na obediência e aceitação do Chefe do Estado, que ali é o Rei.

— V. esquece (disse o Canha) que os velhos partidos republicanos se abstiveram de ir às urnas nessa eleição…

— Exactamente como os monárquicos se abstiveram de ir às urnas nas eleições para as Constituintes republicanas, o que, por esse critério, tira todo o valor a essas Constituintes, que são o início “legal” da tal normalidade constitucional.

Do canto da casa, onde sempre se anichava, o coronel Bastos, reformado e matreiro, meteu a voz suave e um pouco rouca no intervalo rápido da conversa.

— Não sei porque é que o Sr. Gomes gasta tanto tempo com esse argumento, a pôr hipóteses e mais hipóteses…

— Com qual argumento, coronel?

— Com o da justificação eleitoral. Ninguém, que esteja falando inteiramente a sério e com lealdade pode apresentar esse argumento como legítimo. Está sabido e ressabido que as eleições em Portugal são sempre uma burla, e uma burla descaradíssima. Se aqui o Sr. Mendes ou o Sr. Canha viessem objectar esse argumento, equivalia a dizer que não tinham argumento nenhum. Compreendo que se queira justificar a existência da República por qualquer dos outros dois argumentos, que o sr. pôs como hipóteses, e uma das quais já refutou, mas pelo da ratificação eleitoral… francamente!…

O Gomes sorriu e voltou-se para o coronel interruptor.

– Bem vê, coronel, o dever do argumentador é expor e considerar todas as hipóteses, sejam ou não plausíveis. Se não são plausíveis, o argumento o demonstrará. É claro que estou de acordo consigo e que ninguém admite como legítimas as eleições que se fazem em Portugal. A minha obrigação de argumentador era, porém, supor que alguém as pudesse admitir a sério como legítimas e refutar esse hipotético alguém. De resto, deixe-me dizer-lhe, o argumento da justificação eleitoral e refutável de outras maneiras…

— Por exemplo?… perguntou o Evaristo.

— Por exemplo, este… Uma eleição é, ou pretende ser, uma expressão de opinião. Para que uma eleição seja, portanto, válida como expressão de opinião, é preciso que a opinião a reconheça como expressão de opinião. Ora ninguém em Portugal acredita nas eleições políticas como expressão de opinião, ou nos resultados delas como manifestando de alguma maneira a opinião, excepto no caso de alguns deputados das oposições, que têm realmente que ter consigo alguma opinião e apoio legítimo para poderem romper as malhas da rede eleitoral do governo. Ora se as eleições são tidas pela opinião de todos como não representando a opinião de todos, as eleições não são eleições e não há justificação eleitoral porque não há realmente facto eleitoral. E o constante apelo para as revoluções e para os pronunciamentos confirma isto decisivamente. Que querem dizer essas revoluções e esses pronunciamentos, no fundo, senão a falta de confiança na legitimidade dos resultados eleitorais, o reconhecimento, por toda a gente, que esses resultados eleitorais não são realmente válidos? E quando não queiram dizer isso, mas signifiquem simplesmente a vontade de saltar por cima dos resultados eleitorais, que quer isso dizer senão que não há respeito orgânico pelos resultados eleitorais; e que portanto um regímen ou situação política, para se justificar perante todos e ser tido geralmente por válido, tem que buscar outro apoio que não seja o das eleições?

— Não há dúvida, disse o Evaristo.

— Tudo isto, porém, continuou o Gomes, todos estes argumentos são dispensáveis. O verdadeiro argumento contra a justificação eleitoral por eleições das que caracterizam os regimens liberais é que essas eleições, mesmo quando feitas com seriedade moral, são organicamente uma burla política.

— Ora essa! — exclamou o Mendes. — E porquê?

— Em toda a parte, em todos os países civilizados, como disse ali o sr. Canha, as eleições, que custam muito dinheiro, que necessitam de uma propaganda insistente e hábil, de uma organização especializada, só podem ser efectuadas por organismos partidários para isso preparados, para isso habilitados, e dispondo dos fundos para isso. Assim é em Inglaterra, por exemplo, onde as eleições são, ao que dizem, moralmente limpas, e onde há uma antiga tradição representativa.. E se assim é em Inglaterra, onde as eleições são tão moralmente limpas quanto podem ser, em todos os outros países são de aí para pior. O facto é, porém, que, à parte um outro deputado independente, que, em geral, por uma questão de influência local — que pode, aliás, ser puro caciquismo, como se costuma dizer —, só os partidos organizados é que fazem as eleições e elegem os candidatos, dispondo assim, por fim, não da maioria, mas da enorme maioria ou quase totalidade da assembleia representativa resultante. O eleitor não escolhe o candidato; escolhe entre candidatos que lhe apresentam os partidos e, se embirra com todos, não vota, e os partidos ganham da mesma maneira. Ora os partidos são dirigidos e orientados por directórios, ou como quer que se lhes chame, nos quais prepondera a opinião de três ou quatro indivíduos, o máximo, e por vezes de um indivíduo só. No fundo, pois, o resultado de uma eleição política no regímen liberal — mesmo sendo essa eleição séria e moralmente limpa — é a imposição hipócrita da vontade de meia dúzia de indivíduos a uma nação inteira, que por vezes, em casos extremos de auto-sugestão, como na Inglaterra, chega a acreditar que tem vontade própria. E a assembleia “representativa”, uma vez eleita, passa a funcionar sem fiscalização directa da própria “opinião” que a “elegeu”, e a fazer, muitas vezes, exactamente o contrário do que prometeu nos comícios, e, outras vezescoisas que, se não são esse contrário, são coisas que, pelo menos, o eleitorado não sancionaria, se as levassem perante ele. É em virtude disso que os conservadores ingleses — os conservadores, reparem! — chegaram a propor, para o caso de certas medidas graves, surgindo inesperadas, e que não haviam sido objecto das declarações nos comícios, o estabelecimento do princípio, aparentemente tão pouco conservador, do referendum.

O Gomes parou um pouco, e aproveitou a própria paragem para puxar de novo pela bolsa do tabaco.

— Os indivíduos — a tal meia dúzia ou dúzia de indivíduos, se não forem menos — que preponderam nos organismos partidários, e que portanto verdadeiramente governam o país, têm a sua responsabilidade nas situações políticas coberta e dispersa pela massa do partido a que pertencem, do eleitorado que compeliram a votar neles através do partido, e da assembleia “representativa” “eleita” por esse eleitorado. Exercendo realmente uma ditadura, exercem-na hipócrita e cobardemente, cobertos por uma massa partidária que, como é anónima, vem a ser praticamente ninguém; contraem portanto, com a índole despótica do ditador, a obliquidade moral que vem do sentimento da impunidade e alguns, se não todos os vícios que provêm do exercício constante do disfarce e da hipocrisia. E quando a isto se acrescenta que, para subirem nesses partidos até à situação de preponderância que neles têm, esses homens tiveram que servir os ditadores hipócritas que os precederam na direcção real desses mesmos partidos, vê-se que a índole hipócrita e a obliquidade moral, que seria natural que contraíssem no mero exercício da sua ditadura velada, já as haviam realmente adquirido antes, no serviço dessa mesma ditadura, pelo qual conseguiram chegar, por sua vez, a ser ditadores.

Estes factos indubitáveis (continuou o Gomes, com uma certa animação) sofrem um certo paliativo nas nações mais instruídas e educadas, porque a própria hipocrisia do ditador velado lhe impõe limites nas doutrinas e processos que empregue; a relativa lucidez e atenção do espírito público espontaneamente se revoltariam se os ditadores velados quisessem pôr em prática medidas de profunda corrupção — sobretudo de corrupção visível — ou normas de onde derivasse um manifesto perigo para a nação ou para os seus componentes. O hipócrita tem que contemporizar. E de aqui resulta que aquelas vantagens que se costumam atribuir aos regimens liberais — citando a sua acção em países como a Inglaterra — não provêm realmente dos regimens liberais, mas da educação e instrução do povo, do seu activo orgulho nacional, da sua moral social relativamente elevada. A mesma educação, a mesma instrução, o mesmo orgulho e senso moral operariam do mesmo modo qualquer Que fosse o regímen, e não poderia pensar em ir contra ele um rei mais do que um ditador velado, considerando sobretudo que num caso a responsabilidade é directa e visível, no outro dispersa e ocultada.

— Mas essa educação e esse orgulho nacionais, interveio o Canha, não serão, pelo menos em parte, produzidas por esse regímen liberal?

— Não, respondeu o Gomes. Quanto à instrução, ela nasce e desenvolve-se com o desenvolvimento da civilização, que por sua vez promove; qualquer regímen, que reja uma nação civilizada, tem forçosamente que estimular e desenvolver a educação; porque o espírito público assim o exige e espera. Quanto à moral social, nenhum regímen a cria, porque não é essa a esfera de acção dos regimens políticos; a moral social, criam-na a família os indivíduos no seu simples trato social, as influências morais e religiosas. E quanto ao orgulho nacional, cria-o, em parte, o ser uma nação grande; o sentimento da independência, cria-o o ser uma nação ou ameaçada ou constantemente agredida, e assim por aí adiante… Mas, enfim, isto são notas à margem. Voltemos ao seu argumento primitivo. Creio ter demonstrado que, se não há justificação da nossa República pelo assentimento espontâneo do país, também a não há pela ratificação eleitoral.

— Está bem, provou, concedeu o Canha. Mas ainda havia uma outra hipótese, se me não engano…

— Havia… A terceira hipótese, que é a que falta considerar, é de que a República possa ter uma justificação da sua existência na continuidade com o sistema governativo anterior…

O coronel Bastos desatou o riso.

— Aí não é preciso argumento, disse. Se o que estava antes era a Monarquia, basta a República não ser Monarquia para não haver essa continuidade.

— Sem dúvida, coronel… Mas um argumentador hábil complicaria um pouco mais a questão; e o meu dever é pôr as objecções, quando as ponho eu a mim mesmo, como se elas fossem postas por quem soubesse pô-las. A essência do regímen liberal — de qualquer regímen liberal — é a limitação do poder do Chefe do Estado, ou, antes, a sobreposição ao poder do Chefe do Estado, por uma assembleia emanada directamente (por aquele lindo processo que já expus) de um certo número de indivíduos inscritos em cadernos eleitorais, a que, não sei porquê, se chama “a nação”. Dizendo melhor, a essência do regímen liberal é a transferência do poder para a tal “a nação”, quer ela aceite o Chefe do Estado (que é quando, sendo rei, não é eleito por ela), quer ela eleja directamente o Chefe do Estado como no regímen republicano presidencialista, e assim nele delegue esse tal poder que em ela reside, quer eleja uma assembleia qualquer em quem delegue esse seu poder, e que depois, por sua vez, eleja o Chefe do Estado. Ora a República Portuguesa — a tal da normalidade constitucional — pode alegar em seu favor, isto é, em favor do seu carácter nacional, que realmente está em linha de continuidade com a essência do regímen liberal, salvo num pormenor — a chefia do Estado desse regímen. Mas, infelizmente para a República, este argumento também não serve.

O Gomes Pipa parou um pouco, e enrolou o cigarro de cujo pensamento a lógica o afastara.

— O regímen liberal, continuou sem acender o cigarro, é já uma quebra de continuidade governativa. Até 1820, e quaisquer que fossem as vicissitudes da nossa política interna, uma coisa permaneceu firme e contínua — o facto de que o poder todo residia essencialmente no Rei. O regímen liberal manteve o Rei, mas transferiu o poder para a tal “nação”. Propriamente falando isto não é manter o rei, nem manter continuidade nenhuma, pois o Rei não é separável do seu poder, e, não o sendo, não há continuidade desde que se faça a separação. Mas, enfim, isso agora não importa, e é um outro assunto… O regímen liberal, repito, manteve o Rei, e assim, na linha de argumento que nós estamos considerando, poderia alegar como manutenção de continuidade a manutenção da Monarquia. A revolta republicana o que fez? Manteve continuidade com o regímen liberal naquilo que nele, perante este argumento de continuidade (que é o que estamos considerando, e não outro), representa ruptura de continuidade. Como a continuidade tem que ser contínua, para que possa ser invocada como continuidade e chamada continuidade, vem isto a dar em que a República continuou o liberalismo naquele ponto em que ele não continuou nada, Isto é, em que, perante o argumento da continuidade, era ilegítimo. Em outras palavras, a República, perante este argumento da continuidade, não é senão o regímen liberal elevado à injustificação absoluta.

— Bravo! — exclamou o coronel Bastos, quase caindo do seu banco. Isso é que é argumentar!

O Gomes acendeu finalmente o seu cigarro adiado.

Depois voltou-se para o Mendes, e um momento lhe passou nos olhos uma luz subtil de manha irónica.

— Quer dizer, amigo Mendes, disse ele sorrindo, ainda há uma espécie de continuidade que os senhores poderiam invocar, e que não é nem a continuidade do regímen aparente, nem a continuidade do regímen real. Os senhores poderiam invocar a continuidade de maneira de governar.. — Será essa que os senhores quererão invocar?…

— “Maneira de governar” como? interrogou o Mendes.

— Da seguinte forma… Os governos monárquicos eram incompetentes e corruptos, o sistema eleitoral monárquico incompetente e corrupto, o governo do país, sob a Monarquia, era uma oligarquia de partidos governando à parte da nação e contra a nação.

(Estou-me servindo de asserções dos senhores, sem as discutir, porque estou argumentando pelos senhores.) Ora os senhores podem alegar que não representam uma quebra de continuidade porque continuam a governar com incompetência e corrupção, que continuam a fazer eleições com competência e corrupção, e que continuam a ser uma oligarquia de partidos (ou de um só, mas não faço caso dessa pequena falha no seu argumento) que governam à parte da nação e contra ela. Não sei se querem que eu considere também este argumento…

O Mendes, num gesto brusco, pôs em meio-risco um vaso tapado com seringas de diversas espécies.

— Isso é uma brincadeira! exclamou irritado.

— Bem: o caso é consigo… Então abdica do argumento?

— O argumento não é meu; não tenho que abdicar dele…

— Não é seu mas é dum argumentador hábil que falasse por si… Em todo o caso, há para ele uma resposta a sério… Vou refutá-lo.

— Homem, para quê? interpôs o Canha.

— Diga, diga, ó Gomes! pediu o coronel puxando por um charuto e por mais contentamento.

— Vou refutá-lo, amigo Canha, por duro dever de raciocinador. Tenho por obrigação pôr todas as hipóteses possíveis, e refutar as que considere falsas, que neste caso das justificações possíveis da República, são todas. Mas isto vai depressa… O caso é este…

— Ora adeus! — exclamou o Mendes, num gesto parado de quem vai a sair.

— É claro, prosseguiu o Gomes Pipa, que uma legitimação pela imoralidade é impossível, e por isso, realmente, o argumento é improcedente e absurdo. Mas, admitindo mesmo que o não seja, é improcedente até na espécie em que se estabelece. Para continuar a imoralidade convém alterar o menos possível as condições de imoralidade; ora fazer uma revolução é, pelo menos, introduzir uma perturbação no estado, perturbação necessariamente seguida, como foi, de diversas outras perturbações. Ora para comer tranquilamente à mesa do orçamento o essencial é essa mesa não estar em riscos de ser arrancada aos comensais. A perturbação é, portanto, incompatível mesmo com o propósito de imoralidade. Dir-se-á que os republicanos não poderiam facilmente apoderar-se do poder, e comer eles só, sem afastar primeiro os outros que lá estavam. Nesse caso, mandava a boa imoralidade que se juntassem a um partido dos outros, que, dada a força que levariam consigo, de bom grado lhes pagaria a adesão. Ou então formassem um partido à parte, dentro da Monarquia, e, valendo-se, para fins de simples ameaça, da força que puseram em prática na revolução, conquistassem efectivamente o poder para eles só e para o jantar em família. E, se se alegar que não tinham força para essa conquista, sem ser pelo processo revolucionário, resulta que a sua força era fictícia, podendo vencer só com o golpe de audácia e de surpresa, de modo que até aqui, e no meio deste triste argumento, se vê bem que o movimento não tinha carácter nacional, nem mesmo imoral, e que nem a continuidade da corrupção e da

incompetência pode ser invocada, apesar de todas as aparências, pelos republicanos.

— Está bem, homem, está bem, disse, irritado, o Mendes. Para que está V. a perder tempo com essa brincadeira?

— Para disfarçar um sofisma, interveio o Canha. O nosso Gomes, não sei se os senhores repararam? sofismou todo este argumento da continuidade, e por isso convém-lhe acabá-lo numa espécie de desvio de brincadeira…

— Sofismei o argumento?

— Sim senhor, sofismou.

— E em que é que o sofismei?

— No seguinte… A continuidade, que se pode exigir à República que invoque para alegar a sua legitimidade, ou a sua normalidade constitucional ou governativa, não é, amigo Gomes, a continuidade com a monarquia, e muito menos com a monarquia absoluta, etc., etc. A continuidade republicana tem que contar-se desde que se estabeleceu a República; é a continuidade do regímen consigo mesmo e adentro de si mesmo, e não com outros regimens, e fora de si… Lá nos outros argumentos, o da aceitação nacional, e o da justificação eleitoral, foi V. muito bem, mas aqui teve que sofismar, que tirar o problema do seu verdadeiro campo, para simular o triunfo…

O Mendes, o Evaristo e até o Justino, em geral atado ao seu silêncio, sorriram ou riram desta objecção oportuna. Mas o Gomes Pipa, ao contrário do que seria de esperar, sorriu também, uni sorriso vasto e contente. O coronel Bastos, que o fitava atento, carregou a expressão de atenção.

— Contra essa objecção, disse o Gomes, esfregando as mãos, há nada menos de cinco respostas. Em primeiro lugar, não se trata de simples continuidade, mas de continuidade como sinal de legitimidade; ora a continuidade de uma coisa consigo mesma não pode determinar, de si, a legitimidade, porque assim tudo neste mundo era legítimo, visto que tudo, enquanto dura, dura, e é pois contínuo consigo mesmo. — Em segundo lugar, não se trata de continuidade como simples duração, mas, como Os senhores mesmos disseram, de maneira de durar. Se se tratasse de continuidade como simples duração, então é essencial que essa continuidade não fosse nunca interrompida, que não tivesse havido nunca movimento revolucionário algum, com carácter vitorioso, a cortar a vida da “república original”, em outras palavras, que não houvesse descontinuidade. — Em terceiro lugar, reparem que estávamos considerando a justificação irracional da República; a continuidade de que se trate, pois, para esta justificação, é uma continuidade nacional, e não uma continuidade de regímen ou de partido. Ora, como a nacionalidade não começou em 5 de Outubro de 1910, a continuidade nacional também não começa aí. E se há uma continuidade partidária e não nacional, há uma continuidade partidária e anti-nacional, e esse partido está contra a nação. — Em quarto lugar, trata-se de continuidade governativa, e como a essência do governo é dominar, e uma das condições de dominar é reprimir revoltas e movimentos adversos, desde que haja ou movimentos adversos constantes, ou um só vitorioso, não há continuidade de domínio, não há portanto continuidade de governo. — Em quinto lugar, a continuidade constitucional, que é a de que se trata, é uma continuidade de ordem e a “República Constitucional” nem tem mantido a ordem, nem, quando tem retomado o seu curso, o tem sempre retomado por processos de ordem. E aqui tem, amigo Canha, cinco dedos da mão do argumentador a estrangular a sua objecção…

— Magnífico, magnífico! exclamou o coronel, trincando a ponta do charuto como se ele soubesse a raciocínio. — Quanto mais o apertam, mais V. se desembaraça.

O Gomes apontou o seu corpo prolixo. — Quando me enlaçam, caio em cima deles… disse modestamente.

Fez-se uma pausa ligeira na conversa. Entrara um freguês que se devolveu à rua com uma garrafa de água de Vidago. O coronel Bastos acendeu, sorrindo, o seu charuto. Depois, indo o freguês a sair, voltou-se para o Gomes com uma voz interessada: (…)

Da República (1910 – 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

Fonte: Arquivo Pessoa

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