Museu da Maré completa 9 anos de criação e enfrenta ameaça de despejo

Por Miriane da Costa Peregrino

 

Diante da ameaça de despejo, moradores se pronunciam em defesa do Museu da Maré

O Museu da Maré, que completa 9 anos de existência nesta sexta-feira, 8 de maio, enfrenta desde setembro do ano passado uma ameaça de despejo pela empresa proprietária do imóvel onde está instalado desde 2003, quando era conhecido como Casa de Cultura da Maré. Iniciativa ímpar na área de museologia social e preservação da memória das favelas, o museu foi criado em 2006 por um grupo de moradores do conjunto de favelas da Maré como um dos projetos da ONG Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), e ocupa um imóvel cedido pelo Grupo Libra de Navegações que, com a entrada das tropas federais, solicitou a devolução do imóvel.

Intervenção do Coletivo Projetação no Ato em defesa do Museu da Maré em 18 de outubro do ano passado. Foto: Terezinha Lanzellotti.

No dia 18 de outubro do ano passado, equipe, apoiadores e moradores da Maré saíram em ato pela Avenida Brasil em protesto contra o despejo do Museu da Maré. De lá pra cá, a ameaça de despejo continua. O Conselho Municipal de Cultura aprovou o tombamento do acervo do Museu da Maré em setembro do ano passado, mas até hoje o prefeito Eduardo Paes não sancionou o decreto.

Thamires Ribeiro, moradora da Maré e estudante de Conservação e Restauração na UFRJ, 24 anos, afirma que o despejo do museu “seria uma perda terrível pra comunidade que tem no Museu da Maré não somente um espaço para teatro, dança e leitura, mas um lugar de memória que cumpre um papel fundamental de guardar e contar a história da Maré”. A estudante afirma que “isso é feito através da ajuda de seus moradores que vão ao museu e se identificam, diferentemente do que acontece na maioria dos museus no Rio de Janeiro, em que as pessoas não se sentem representadas naquele espaço, principalmente os moradores de favela”.

Luiz Lourenço, 29 anos, morador da Maré e estudante de Geografia da UFRJ, afirma que se identifica museu como um espaço de preservação da memória da Maré e defende a permanência do museu: “Por ser um dispositivo cultural, o Museu da Maré não deve ser despejado e isso para mim é um fato! O Museu da Maré nasce da mesma lógica das favelas, a autoconstrução, e é por isso me identifico com ele, fazendo uma ruptura cultural de dentro para fora”.

 Já a moradora e estudante de Direito da UERJ, Lídia Felix, 24 anos, fala de sua relação com o Museu da Maré: “Treino Capoeira no Museu da Maré e recebi essa notícia [do despejo] com muita tristeza. Não estou acompanhando o caso de perto, mas compartilho petições online e coletei assinatura de vizinhos e amigos para o abaixo assinado. O Museu da Maré é fundamental para os mareenses, ele conta a nossa história. É um espaço feito de moradores para moradores. O Museu resgata a identidade do favelado e a nossa resistência. Além disso, são realizadas inúmeras atividades neste espaço (capoeira, zumba, ballet, entre outras).

Quando soube da ameaça de despejo do museu, a moradora e jornalista, Renata Souza, 32 anos, promoveu uma Panela de Pressão contra o despejo do Museu da Maré: “Eu procurei o Meu Rio que é uma ONG e que faz a Panela de Pressão pra pressionar os órgãos, pra não deixar que o museu seja despejado. A gente conseguiu umas duas mil pessoas pressionando, enviando e-mails direto pras secretarias de cultura” – explicou Renata Souza.

Apesar da iniciativa da moradora e da própria equipe do museu junto às secretarias de cultura, naquele primeiro momento, a secretaria que surgiu em apoio ao museu foi a secretaria de turismo do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

“No final do ano passado, o governo do Estado do Rio de Janeiro, por meio da SETUR (Secretaria de Turismo) e do ITERJ (Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro) apoiou o Museu. O secretário de turismo, Cláudio Magnavita, criou a Resolução SETUR n° 93 de 24 de novembro de 2014, que foi publicada no DOERJ em 25 de novembro de 2014, constituindo o Grupo Especial de Trabalho. Com isso, conseguimos prorrogar o prazo inicial da notificação enviada pela Libra do dia 10 de dezembro de 2014 para 10 de março de 2015. Além disso, o Museu foi reconhecido pelo Conselho Estadual de Turismo como destino Turístico Prioritário do Estado do Rio de Janeiro, em 10 de dezembro de 2014” – informou Cláudia Rose Ribeiro da Silva, coordenadora do Museu da Maré – “Com a saída do secretário Magnavita, quem assumiu a defesa do Museu pelo governo do estado foi a SEC (Secretaria de Cultura), que, juntamente com o IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus) e a Secretaria de Cultura do Município, criou um novo grupo de trabalho para discutir as ações que vão garantir a permanência do Museu no espaço. A Resolução SEC nº 594, que estabeleceu o Grupo Especial de Trabalho foi criada pela secretária Eva Doris e publicada no DOERJ em 20 de fevereiro de 2015. O GT já fez duas reuniões e conseguiu marcar uma conversa com a diretoria do Grupo Libra.  A secretária Eva Doris levou para essa reunião carta de apoio ao Museu assinada por ela, pelo secretário de cultura do município, Marcelo Calero e pelo presidente do IBRAM, Carlos Roberto Brandão. Além disso, o CEASM protocolou na sede da Libra, carta solicitando nova prorrogação para que tenhamos mais tempo de articular as ações que visem nossa permanência no espaço”.

Segurança pública, especulação mobiliária, despejos e turismo: a ciranda das políticas públicas para os megaeventos na Maré

Para os moradores que acompanham a situação de outras favelas no Rio de Janeiro onde foram instaladas as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) está claro que as políticas públicas, tanto municipal, estadual e federal, beneficiam quem é de fora da favela e não os moradores dali. Lídia Fêlix é uma das que afirmam que “o despejo do Museu está vinculado a especulação imobiliária e ao desejo do Estado de invisibilizar a cultura favelada”. De fato, em todas as favelas que sofreram o processo de pacificação, podemos observar que a política de segurança pública é seguida por uma supervalorização dos imóveis das áreas ocupadas, despejos e projetos de exploração turística.

Embora o principal objetivo da ocupação militar da Maré seja garantir o controle das principais vias de acesso à cidade do Rio de Janeiro e a segurança dos megaeventos, as faces da especulação imobiliária e turística da região também se mostram presentes, ainda que não com a mesma força com que aparece nas favelas da zona sul como Vidigal, Santa Marta e Rocinha, por exemplo. O próprio discurso da secretaria de turismo do Governo do Estado reforçou esse temor nos moradores da Maré, uma vez que, em entrevistas, o então secretário relacionou sempre a importância do museu como um atrativo para o turista estrangeiro sem fazer qualquer menção a relevância do espaço para o morador da própria favela, invertendo assim a lógica que norteou a criação do espaço.

O morador Luiz Lourenço observa que a atividade de turismo cresce em todo mundo como setor econômico lucrativo, mas chama a atenção para o público-alvo desse ramo: “O turismo é atualmente o terceiro ramo econômico mais lucrativo do mundo, perdendo somente para o setor petrolífero e de automóveis, e pode ser utilizado como uma forma de desenvolvimento social e geração de renda para a favela desde que agregue em seus quadros de atuação os residentes locais. A memória da favela precisa ser preservada e difundida, as memórias positivas e também as memórias negativas, em um contexto pós-ocupação acredito que os índices de visitação irão aumentar, porém, que público é esse que frequenta? Para a construção da memória verdadeira da favela é preciso que essa visitação não seja apenas incrementada por gente de fora da favela, mas que favelados da própria Maré que ainda não conhecem o Museu, por favelados do Alemão, Providência, e que possam, a partir da experiência do Museu da Maré, criar seus próprios Museus”.

Para a moradora Renata Souza a ameaça de despejo que o Museu da Maré está sofrendo é uma das consequências da especulação imobiliária pós-ocupação militar: “Não tem nada desgarrado, né? Então, quando a militarização chega aqui e o Museu da Maré sofre uma ação de despejo a gente não tem como não relacionar uma coisa com a outra. As favelas onde estão sendo instaladas UPPs estão passando por um processo de valorização fundiária. Aí seu terreno fica mais caro porque tem mais polícia e os serviços básicos ficam mais caros, o custo de vida mais caro. Então, nesse processo, desalojar o museu que está num lugar super estratégico… O museu está há uns 100, 200 metros da Avenida Brasil, é um lugar muito estratégico para eles fazerem o que eles quiserem tanto colocar uma Unidade de Polícia Pacificadora, quanto para abrir outros espaços ali, de comércio mesmo, dentro da favela. A gente tem um processo de turismo dentro das favelas e não é a toa que você tem como principal obra do governo no Complexo do Alemão o teleférico. O teleférico é pra quem? É pro morador do Alemão? Não, é pro turismo no Alemão. Ninguém perguntou, ou se perguntou fez de má vontade, se os moradores queriam um teleférico ou saneamento básico. Ou seja, hoje você tem um teleférico gigantesco, mas na primeira chuva tem alagamento, tem esgoto a céu aberto. Os serviços básicos continuam precarizados, mas o governo prefere fazer outras coisas que chamam a atenção dos turistas”.

Renata Souza lembra ainda que a Maré é um território muito visado pelas autoridades por cortar as principais vias rodoviárias da cidade: “O exército vem pra cá com o objetivo claro de dar uma sensação de segurança pra quem vem pros jogos. Quando o exército chegou aqui foi às vésperas da Copa do Mundo de 2014… 50 anos do golpe a gente tem ocupação militar na Maré, exatamente em abril. Eles tão aqui no contexto de que: ‘Estamos dominando esse espaço pra quem está vindo de fora pra que se sinta seguro na nossa cidade maravilhosa’. Que de maravilhosa ela pode ter seus cartões postais, mas em termos de vida na favela é muito questionável isso porque eu posso considerar maravilhoso, dentro da favela, o domingo que eu posso sentar na porta da minha casa, tomar minha cerveja e ligar o meu som. Isso pra mim é maravilhoso! Mas a partir do momento que vem um militar e diz que não posso fazer isso… que maravilha é essa?”

É importante lembrar que em 22 de julho do ano passado cerca de 30 famílias tiveram suas casas demolidas na favela Salsa e Merengue que faz parte do conjunto de favelas da Maré e nenhuma nota saiu nos jornais sobre isso. A área era de interesse da prefeitura para a construção das Fábricas de Escolas do Amanhã. Por outro lado, as mais de 30 famílias que vivem em condições precárias na MacLaren continuam desassistidas pelo Estado. Elas já estão cadastradas na prefeitura há mais de 5 anos, querem ser removidas, mas continuam lá, entre o viaduto da Linha Amarela e o valão, escondidas pelo Muro da Vergonha, afinal, a área que ocupam não é de interesse do poder público nem privado.

Os leitores que não sabem ou não lembram onde é a MacLaren devem recordar a manhã de 30 de março de 2014, quando a primeira leva de militares entraram no maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro e astearam a bandeira nacional ao lado de um valão – o valão próximo a comunidade da Maclaren, onde cerca de 30 famílias residem em barracos, sem saneamento básico e com apenas uma bica de água numa das áreas mais pobres da Maré.

 

O legado das forças de pacificação: mais armas e menos cultura, saúde, educação…

Entre os estandartes do museu e as armas da força de pacificação, o ato em defesa do Museu da Maré sai em direção à Avenida Brasil. 18.10.2014. Foto: Fernando Frazão

A imagem da saída do ato em defesa do Museu da Maré, em outubro passado, com ativistas dividindo a rua com a força de pacificação figura como uma balança onde os pesos da cultura e da segurança pública se revelam. Antonio Carlos Vieira, diretor do museu, comenta a situação do conjunto de favelas da Maré após a ocupação militar e atual processo de implantação da UPP:

“A situação atual da Maré é de permanente tensão.  A ocupação que está sendo feita em minha opinião é equivocada, pois transfere para as forças armadas, portanto forças preparadas para situação de guerra, uma questão que é de segurança pública.  Isso acaba por gerar como consequência as agressões que temos testemunhado, com abordagens violentas que acabam resultando na morte de pessoas inocentes.   Vejo também que há um forte fator psicológico com a presença de pessoas armadas em posturas defensivas, mesmo em relação aos moradores, o que é agravado pelo pesado armamento e pela constante movimentação de tanques de guerra.  Essa situação gera sem dúvida, um trauma coletivo, com consequências desconhecidas para as crianças da comunidade.  Em termos de violência atualmente vivemos na Maré um dos períodos mais difíceis para os moradores e todos os que circulam pela Maré.  Por outro lado, o custo altíssimo de manutenção do atual contingente poderia ser utilizado em projetos sociais que podem de fato promover mudanças na consciência e visão de mundo dos jovens da comunidade” – afirma o diretor.

No clima tenso em que vivem os moradores da Maré, e também não moradores que ali circulam e trabalham. Marilene Nunes, moradora da Maré e coordenadora da biblioteca do Museu da Maré, conta como o espaço, muitas vezes, é também um refugio durante confrontos e tiroteios nas imediações do museu: “Há algumas semanas eu estava aqui na biblioteca e, de repente, começou um tiroteio. Eu sai correndo e bati o portão da frente. Era tiro comendo. A gente ia se esconder na reserva. Outro dia, eram umas 17h30, começou outro tiroteio. Eu sai para fechar o portão, mas dessa vez, não consegui porque a medida de que eu tentava fechar o portão o povo que passava na rua também tava empurrando pra entrar aqui. Eram alunos da Escola Bahia, moradores… Uma mulher que veio correndo de carro, jogou o carro na porta do museu e entrou também, desesperada. E o tiro comendo. Era exército, polícia, os meninos. Foi mais de meia hora de tiroteio. A gente dentro do arquivo e o tiroteio comendo aqui na Guilherme Maxwell”.

Militares na porta de morador da Maré: “na favela a ditadura não acabou”. Foto: Miriane Peregrino

Um morador, que preferiu não se identificar, afirmou que a circulação dos tanques das forças de pacificação tem causado danos na já frágil infraestrutura da favela: “Quebra encanamento e é a gente que vai lá consertar depois”. Além disso, os tanques deixam marcas de desgaste nas ruas e calçadas da Maré. “Essas são as marcas da democracia para a favela” – conclui o morador.

Marcas de tanques em calçada da Maré. Foto: Miriane Peregrino

Pelo menos desde o inicio desse ano, foi noticiada saída das tropas federais no conjunto de favelas da Maré até o mês de julho de 2015 e entrada gradual da PMERJ para implantação da UPP. A primeira de leva de PMs entrou há uma mês nas favelas de Roquete Pinto e Praia de Ramos e a segunda entrou no último dia 1o de maio nas favelas da Nova Holanda, Nova Maré, Rubem Vaz e Parque União. As recentes manifestações contra a UPP, destacando o ato do dia 23 de fevereiro que ocorreu após uma série de casos de abusos das forças de pacificação e mortes na Maré durante o período de carnaval e a necessidade de “reocupação” do Complexo do Alemão em abril apontam, mais uma vez, para a falência da UPP enquanto política de segurança pública e o autoritarismo do Estado em suas ações de intervenção nas favelas.

Memórias de ontem, lutas de hoje

Enfim, é nesse cenário de intensa disputa pelo território e seus bens simbólicos que a ameaça de despejo do Museu da Maré está inserida e é uma disputa norteada por interesses que certamente estão para além da visível especulação imobiliária. As prorrogações do prazo de despejo não resolvem a situação do Museu da Maré. Surgem como são doses de um remédio que ameniza a dor do doente mas não o cura.

É importante lembrar que receber visitantes é a premissa de qualquer museu, seja comunitário ou não, mas a genealogia do Museu da Maré está para além disso: um museu dos moradores para os moradores da Maré, um museu que impôs a favela no conjunto da cidade e subverteu a lógica da classe dominante incentivando, inclusive, a criação de museus comunitários em outras favelas e inspirando a elaboração de uma política pública voltada para a preservação da memória das classes populares, conhecida como o Programa Pontos de Memória do Ministério da Cultura.

Quem já visitou o Museu da Maré sabe que sua exposição permanente está dividida em 12 tempos temáticos. Um deles chama-se TEMPO DO FUTURO, o tempo daquilo que está sendo escrito no presente.

Programação do 9º Aniversário do Museu da Maré

Dia 4, das 15h às 17h – Oficina Criando e Recriando Memórias com Marcelo Pinto Vieira, artista plástico e cenógrafo do Museu (construção de brinquedos com material reciclável, a partir dos contos e lendas da Maré)

 

Dia 5, das 14h às 16h – Lançamento dos livros das escritoras Ana Maria e Aline Melo, das 14h às 16h

Dia 7, das 16h às 21h – Apresentação do grupo MaréMoto (resultado da oficina do Teatro do Oprimido desenvolvida no Museu), das 16h às 18h;

Roda de capoeira do Mestre Martins, das 18h às 21h

Dia 8, das 10h às 17h – Exposição itinerante Memórias da Maré e intervenções artísticas do grupo Maré de Histórias ao longo do dia

Dia 9, das 10h às 12h – Bazar da biblioteca Elias José

 

Serviço

Local: Museu da Maré

Endereço: Avenida Guilherme Maxwell, 26 – Maré / CEP: 21.042-110 / Rio de Janeiro

Telefone:(21)3868-6748/3976-8779

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