Millôr: Arauto da República de Ipanema

millorPor Andréa Cristina de Barros Queiroz,
O jornalista Millôr Fernandes (1923-2012) disse certa vez em uma entrevista: “eu não vivo no Brasil, eu vivo no Rio de Janeiro”. Isso não quer dizer, porém, que ele era um homem provinciano. Ao contrário. Demonstra apenas que ele enxergava no Rio uma representação em escala menor do Brasil, assim como via em Ipanema uma versão diminuta da “cidade maravilhosa”. Suas crônicas não apenas espelhavam o cotidiano do Rio de Janeiro, como também as discussões sobre a política, a economia e a cultura nacionais.Com seus textos, Millôr ajudou a construir e a divulgar o “modo de ser carioca” para fora do bairro, da cidade e do país.
Existem algumas particularidades entre as narrativas cotidianas deste dramaturgo, tradutor, cartunista, cronista e roteirista, que preferia ser identificado como jornalista, ou melhor, como homem da imprensa, e a narrativa histórica organizada pelo historiador. Segundo Millôr, “a imprensa é a voz de hoje, herdeira e guarda das informações de ontem, prenunciadora e formadora dos acontecimentos de amanhã, antecipa a História, pois é aí que a História vai buscar a maior parte de seus dados – e eis por que a História é cada vez mais confusa, mentirosa e/ou tola”.
Ao ler as crônicas de Millôr podemos encontrar muitos cenários e sujeitos que pertenceram tanto à vida cotidiana quanto aos palanques oficiais do governo no Brasil. Ao aprofundarmos essas leituras acabamos reconhecendo as grandes transformações pelas quais passaram a sociedade brasileira ao longo do século XX e início do século XXI. O Rio de Janeiro, ainda capital federal, começou a ser descrito ainda sob o olhar do menino Milton Fernandes que viveu no subúrbio do Méier até a sua adolescência, quando foi morar no Centro da Cidade, por volta dos anos 1940, perto da redação da revista O Cruzeiro, onde trabalhava, e do Liceu de Artes e Ofícios, onde estudava.
As lembranças do subúrbio de sua infância e do Centro da cidade de sua adolescência ficaram registradas em suas crônicas. Aos 17 anos, nasceu a sua nova identidade, o Millôr Fernandes, uma criação a partir da caligrafia do escrivão em sua certidão de nascimento. Com o sucesso e a valorização profissional, o jornalista foi morar em Copacabana, acompanhando, dessa forma, o percurso da boemia carioca deslocando-se do Centro para a Zona Sul, que se consagrou, no final dos anos 1940 e início dos anos 1950, como a nova territorialidade cultural da cidade. Quando chegou em Ipanema, em 1954, o lugar lhe imprimiu mais uma nova identidade, caracterizando o nascimento do Millôripanemense, definindo outra marca de sua narrativa. O seu estilo passou não apenas a dialogar, mas, sobretudo, foi um ator importante da construção e da disseminação dos símbolos e valores daquele novo cenário boêmio da cidade – a República de Ipanema – e de seus personagens.
Millôr Fernandes começou a trabalhar diariamente nas redações, no final da década de 1930, antes mesmo da profunda modernização da imprensa brasileira nos anos 1950. Diferentemente de outros jornalistas de sua própria geração, logo que Millôr começou a trabalhar na revista O Cruzeiro, ele se profissionalizou, não precisando exercer outra atividade concomitante ao trabalho jornalístico, já que conseguia viver apenas de seu salário, que por sinal com apenas 20 anos de idade era um dos maiores na revistaque o lançou e de onde alcançou notoriedade.
Millôr imprimiu em seu texto um estilo narrativo marcadamente avesso à objetividade dos grandes diários de circulação nacional, fortalecendo, com isso, a sua subjetividade. Assim, a sua maneira de se posicionar no mundo estava sempre demarcada em sua prosa, levando a uma postura de não aceitação a qualquer tipo de interferência em suas criações, principalmente quando esta partia de seus companheiros de profissão.
Cultura do carioquismo
Millôr pertenceu à geração de cronistas que contribuiu para a “fabricação da cultura do carioquismo”, expressão de Cláudia Mesquita, que tinha entre os seus pares Vinicius de Moraes, Sérgio Porto, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria, Fernando Sabino, entre outros. Eles criaram com as suas crônicas um tipo ideal, um cidadão-padrão da cidade do Rio de Janeiro caracterizado por sua dimensão local, mas, ao mesmo tempo, nacional. Isto é, poderia ser carioca de nascença ou de espírito, aquilo que os identificava como “cariocas” era o sentimento de pertencer àquela particular “cidadania”. Isso se tornou tão marcante que a construção da “cidadania carioca” como “estado de espírito” se perpetuou entre diversos cronistas durante décadas. Em uma crônica de 1970, publicada originalmente n’O Pasquim,Millôr Fernandes enfatizou esse “estado de espírito” ao destacar que “o carioca, todos sabem, é um cara nascido dois terços no Rio e outro terço em Minas, Ceará, Bahia e São Paulo, sem falar em todos os outros Estados, sobretudo o maior deles, o estado de espírito”.
Na década de 1960, ao mesmo tempo em que a cidade do Rio de Janeiro deixava de ser a capital federal, transformava-se também em um estado-capital com a criação do Estado da Guanabara. E as crônicas de Millôr Fernandes nos remetem a esse passado da cidade e do país, com personagens que sentiam em seu cotidiano essas mudanças e produziam críticas sociais com relação ao destino da cidade e do novo Estado recém-criado na federação, coincidindo com um período de intensas transformações e tensões políticas.
Millôr consagrou em sua narrativa o mito da “cidade maravilhosa”, tomando a parte pelo todo, exaltando a singularidade de Ipanema como representação do Rio de Janeiro, e este como representação de Brasil. Essa relação metonímica fez com que os hábitos, os costumes e os modismos dos moradores daquele ambiente litorâneo da cidade se projetassem como referencial do cidadão carioca como um todo. Da mesma forma que o Rio de Janeiro representaria o Brasil, por analogia Ipanema representaria o Rio e, por conseguinte, também representaria a nação. Esse espaço carioca com sua rede de sociabilidade representou na narrativa de Millôr e na de muitos cronistas de sua geração o modus vivendi carioca. Ipanema, para os cronistas e intelectuais daquele período, era a vanguarda cultural não só do Rio, mas do Brasil, com o lançamento de sua moda praia, do jogo de frescobol na areia, de seus hábitos transgressores, da contracultura, da Bossa Nova, do Cinema Novo, da esquerda festiva, da Banda de Ipanema. Millôr, talvez o seu maior porta-voz, está imortalizado em sua praia com o largo que leva o seu nome de frente para a praia do Arpoador, no canto extremo de Ipanema, onde, desde as décadas de 1960 e 1970, há o costume de se acompanhar a descida do sol ao mar com aplausos. Porque, como bem notou um dia o próprio Millôr, “o pôr do sol é de quem olha”.
 
Andréa Cristina de Barros Queirozé diretora da Divisão de Memória Institucional – SIBI / UFRJ, professora da Unigranrio e autora da tese Enfim, um escritor com estilo: o jornalista, pasquiniano, ipanemense e sem censura Millôr Fernandes (UFRJ, 2011). Matéria publicada no site da Revista de História da Biblioteca Nacional.
 

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