Milão, 3 de setembro de 2014. Pai, me disseste, brincando, que tenho que me adaptar ao pouco que nos reserva a política e socialmente a Itália atualmente. Hoje veio uma mulher da prefeitura [de Milão] – super gentil. Ela passou varias vezes e acabou me ligando e marcando encontro [depois dizem que os funcionários não prestam] para verificar se eu sou, realmente, residente em via Fontanelli.
Os pais dela viviam no ‘castelo’ [prédio medieval adaptado para moradia]. Ela foi concebida aqui, em 1946, quando a cidade era ainda uma ruína após os bombardeamentos estadunidenses. Ela é historiadora como tu, mas trabalhou a vida toda como funcionaria comunal. Tem tua idade e ganha menos de 1500 euros ao mês [4.500 reais]. Conversamos e conversamos. Ela me contou a historia do bairro, do ‘castelo’, da família (verdadeira família milanesa e proletária). Me contou a situação social do bairro -como outros bairros em que governam máfia e traficantes- etc.
Ela é comunista, ainda inscrita à Rifondazione e ANPI [Associação Nacional dos Partigiani de Itália], participa a todas as reuniões do circulo de bairro, há quase 50 anos (desde que era adolescente) com pais – antes – e hoje com marido e filhos. Me disse que de mais de 100 inscritos, passaram para 12. E a prefeitura – quando governava a direita – vendeu a sede deles, um edifício lindíssimo de três andares, do século XIX, com um enorme jardim (onde faziam a festa da Unità de bairro no após guerra) que foi sede do PCI e de Democrazia Proletaria do bairro, e que, agora, Rifondazione divide com o PD [ex-PC, hoje social-liberal].
A prefeitura vende por 200 mil euros (um prédio -inteiro- ao lado de um lindo parque, ou seja, estão “dando” aos privados os bens públicos). O PD vai comprar a parte dele (frente para a rua) e os comunistas – todos proletários ou funcionários, pobres – gostariam de comprar também, fazendo um empréstimo de 10 mil cada um, mas ninguém consegue. Portanto, daqui há um ano ou menos, vão ter que ir embora, depois de meio século. Me disse que, de qualquer forma, Rifondazione vai provavelmente desaparecer oficialmente daqui um ano.
Já teve dois derrames, mas me disse que não tem medo da morte e que sinceramente não está triste de ir-se. Os filhos estão crescidos e felizes, são comunistas (o mais importante), e ela teve uma vida feliz, também. Sempre olhou ao futuro construindo um presente melhor, com os camaradas, fazendo o trabalho dela com orgulho. Mas me disse que essa Itália, sem comunistas, simplesmente, não é a Itália, e que está feliz de, um dia, ir-se embora, porque não quer assistir à barbárie. Sente pena só dos filhos, que, em todo o bairro, e em toda a vida, não conheceram um único amigo -sequer- de esquerda.
Foi embora dando-me “ordem” de me apresentar ao círculo de Rifondazione depois de eu terminar a tese e foi continuar o trabalho dela, na maioria dos casos – disse ela -, visitando apartamentos sub-alugados por preços absurdos para 4-5-6 imigrantes por uma/duas peças.
Não sei quem dos dois estava mais deprimido depois dessa linda conversa entre companheiros. Se ela -que, aos 15 de idade, pintou o enorme Che que se vê ainda hoje na parede daquela sede do Partido Refundação Comunista – ou eu, que nunca vou conhecer a Itália (e o mundo) que ela viveu, mas que vou ter que viver este mundo de merda.
Sim, me acostumo com pouco.