João Martins: uma das promessas cariocas do samba de raiz

Uma das imagens do cd “Receita pra amar”, do sambista João Martins. Alfredo Alves.

A nova geração do samba carioca está gerando bons frutos, e um dos nomes da linha de frente é João Martins. Com composições próprias, ele joga nas onze numa roda de bamba. Agora vem se destacando também como cantor, mas seu forte é o cavaquinho, que lhe tornou referência no domínio do instrumento. Já tocou com grandes personalidades da velha guarda, recentemente cartazes do seu show com Monarco da Portela estavam espalhados por toda a cidade, e tem ocupado os lugares mais tradicionais do samba de raiz.
Em entrevista ao Fazendo Media ele conta sua trajetória, como tudo começou há 10 anos e os projetos que estão em curso.  Fala também sobre o que a música representa em sua vida, além de analisar a conjuntura política do país. Assim como utiliza elementos folclóricos em suas letras, defende o funk como patrimônio da cultura popular carioca. Em relação ao samba, para ele muita gente boa está fazendo sua renovação e continuidade, após muitos anos de paralisação cultural e ausência de referências.
Você se meteu no samba através do seu pai, né?
Meu pai [Wanderson Mantins] também é músico de formação, toca com o Martinho da Vila há 25 anos, tocou com a Beth Carvalho, Roberto Ribeiro, Dona Ivone Lara, viajou o mundo todo, tocou com o Paulo Moura. Então, desde pequeno em casa estive próximo de produção. Meu pai produzia muitos discos, não a ponto de ficar rico mas era um mercado mais justo para quem queria viver disso. Vi dentro da minha casa que era possível, além de me interessar pela música em si. Sempre brinquei em casa com instrumento, arranhava um tantãzinho, e depois adolescente comecei a me interessar. Eu toco toda a percussão, mas profissionalmente é cavaquinho e banjo. Na noite e para gravação as pessoas me conhecem por tocar cavaquinho e banjo, além da composição. Agora me chamam também para cantar e eu vou sem instrumento. Canto as minhas músicas e as pessoas estão gostando, já é um reconhecimento.
Como você vê o samba de raiz hoje?
O foco do meu trabalho na verdade não seria um samba de raiz, porque raiz é uma coisa profunda e conota os antigos e as coisas antigas. Claro que durante muito tempo eu pesquisei os antigos, por curiosidade e demanda de trabalho, de repertório, para buscar inspiração. Ouvi muito Nelson Cavaquinho, Cartola, a velha guarda do Império Serrano, Dona Ivone Lara, velha guarda da Portela, Candeia, tive que ouvir isso tudo. Mas hoje em dia o meu trabalho não é reprodução desses grandes mestres: é a criação, não é nem renovação, é a continuidade do que eles ensinaram. Então tem toda uma responsabilidade poética, melódica e temática. Estou em lugares com tradição de ser berço da cultura mostrando uma coisa nova. Acho que o meu trabalho é movimentar um cenário que se não renovar vai morrer.
O que te inspira nas suas letras? Eu vi que tem um pouco de folclore, cultura popular…
As minhas músicas são crônicas das coisas que a gente vive, de sentimentos. Meu segundo disco agora, por exemplo, já é de questões mais sentimentais de uma época em que passei por umas coisas mais afetivas. E as pessoas se identificam com isso, porque todo muito tem problema de relacionamento. É mais atemporal e não tem classe social, você pode falar de algo que todo mundo já sentiu. Mas os temas são variadíssimos, e o principal da música é o tema. O tema chave para começar uma música é o mais difícil, quando já tem escrever o resto é fácil. Ruim é buscar o tema e achar que ele vale a pena ser desenvolvido.
Como você, enquanto artista, vê a relação da arte com a política? O Candeia antigamente era muito engajado, por exemplo.
O Brasil está numa outra realidade, não está demandando como na época deles tanta coisa errada. Muita coisa a gente não concorda, mas politicamente é uma época tranquila, de crescimento, então o samba vai acompanhar isso. A partir do momento que a galera se indignar com certas coisas e reclamar vai tomar outro rumo, porque essa calmaria política não vai se estender por muito tempo. Tomara, porque eu acho que necessita de revolução das coisas, sempre melhorar ao invés de achar que está tudo bom. Tem muita coisa a se questionar ainda. Mas a esperança comum dos sambistas mostra que está bem o cenário. O Zeca Pagodinho, que é o nosso maior representante, porque o maior artista brasileiro é o sambista, a sua filosofia do “Deixa a vida me levar” está muito bem adequada ao momento. O Brasil ainda vive um momento de esperança, não é um momento de indignação e opressão, talvez por isso atualmente as coisas que eu faço não tenham esse cunho político.
João Martins com Dona Ivone Lara, Monarco e companhia no palco do Imperator, no Rio. Foto: Arquivo Pessoal.

Conta um pouco a história de fazer carreira solo e ter uma banda.
Estamos procurando um nome pra banda, se tiver um aí… Eu já fiz parte de alguns grupos,  como o Batuque na Cozinha, o Galocantô, além de grupinhos de pagode com a galera da escola. Grupo é muito complicado, são de 5 a 10 cabeças pensando e acaba com algumas pessoas fazendo esforço demais e acham que têm que ter uma recompensa por isso, então aquele jogo de ego fica uma merda. Segui carreira sozinho porque sou compositor, foi opção seguir carreira solo. Mas independente disso a gente sempre toca em grupo, porque no samba você acaba tocando em roda de samba. Vamos somando pessoas que estão perto dos trabalhos, começa com festa, depois pequenas casas de shows e tem sempre que escalar um time para estar contigo. O Pedrinho [Ferreira] que toca comigo, por exemplo, conheço desde os 10 anos de idade. A gente brincava tocando na Praça do Russel, todo mundo aprendendo. Outras pessoas eu conheci depois, são espalhadas mas a coluna vertebral continua a mesma.
Você já tocou em locais tradicionais do samba no subúrbio, como o Cacique de Ramos, apesar da sua origem na zona sul e já cantou junto com pessoas mais conhecidas.
Comecei minha carreira depois daquela brincadeirinha de escola, a vontade de fazer daquilo profissão era sempre muito grande. Fiz parte da banda do Tonico Ferreira, a primeira banda que eu comecei a tocar era do filho do Martinho da Vila, e logo de cara a gente pegou uma temporada no Teatro Rival só com os “picas”: Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Dona Ivone Lara, Dominguinho do Estácio, Xangô da Mangueira, Noca da Portela, Monarco, Mauro Diniz, geral numa semana de música. Já cheguei benzão. Depois fui tocar no Bar do Juarez, em Santa Teresa, que era um samba de raizaço maneiríssimo e muito cheio. Com o Batuque na Cozinha fomos o primeiro grupo de samba a tocar nas boates, tipo Nuth e Sky Lounge. Muita gente do samba chiou, porque a entrada era R$ 50,00, mas isso depois se tornou comum e as próprias pessoas que reclamavam fizeram eventos até muito mais caros. Outro lugar legal também foi o Santa Luzia, ficava bem cheio, eu fui do primeiro time lá junto com o Moacyr Luz, no samba do trabalhador. Toquei muito no Renascença, Beco do Rato, Cacique de Ramos, Pagode da Tia Ciça, que foi o primeiro samba no subúrbio que eu frequentei e onde mais aprendi. Porque era com os instrumentos desligados, e as pessoas cantavam no gogó. Muito do meio jeito de tocar, compor e cantar vem dessa escola aí do samba desligado. No Cacique também, quando eu fui fazer lá não ligava nem o cavaquinho, eu fazia de banjo, porque era um instrumento apto. O Márcio Vanderlei me botou na função dele, na época era o som da volta do Cacique de Ramos. Foi uma passagem de fase, tinha noção que entrar para tocar no lugar dele estava chegando mais próximo de alguma coisa. Essa coisa que a gente busca mais próxima do sonho. Ontem (22) eu recebi a notícia que minha música entrou na rádio MPB FM, eu imaginava esse momento como um sonho mas tem tanto trabalho envolvido e tanta coisa acontecendo… Você imagina a coisa de uma forma muito lúdica, não que vai ser esse perrengue todo da correria, dos contatos, da tramitação.
No Arcos da Lapa, reduto cultural do Rio de Janeiro, onde o músico se apresenta em algumas casas de show. Foto: Arquivo Pessoal.

Como você lida com a parte comercial, a grana, sua relação com as gravadoras e a produção?
O meu primeiro disco foi lançado com muito apoio, não teve dinheiro. Estúdio, músicos, as pessoas gravaram na amizade, me deram uma força porque gostam de mim e do meu pai. No segundo disco a gente correu atrás e apareceu no caminho amigos que acreditaram no trabalho e botaram um dinheiro, pessoas independentes. Colocaram eu e meu pai como gerentes do dinheiro investido no negócio. Passa por nós desde a composição até a prensagem do disco, acompanhei todas as etapas e tinha autonomia para decidir tudo. Não devo nada a ninguém, nenhuma gravadora, as minhas músicas não são editadas.
Mas como você vê essa relação das gravadoras com os músicos?
Eu não condeno porque não sei como é que funciona, talvez entrar no esquema seria bonzão para mim. Mas do jeito que estou fazendo tenho autonomia, e as pessoas estão ouvindo o disco e gostando. Muitas vezes o disco precisa de um selo para ser visto por alguma mídia, mas acho que tudo tem um tempo. Não adianta, um dia vão ouvir o meu disco e vão gostar ou não. O negócio é estar no lugar certo na hora certa. Música é isso, tem que fazer o seu lance, acreditar com verdade, que uma hora ou não as pessoas vão gostar. E assim a sua carreira vai se espalhando para as pessoas. Eu acho que tenho uma carreira de sucesso, tenho muito orgulho das minhas coisas. É claro que tem pessoas que estão em estágios muito mais avançados financeira e artisticamente, mas me considero um cara que está chegando muito bem. Sabe aquele jogador cheio de vontade de jogar, estou aí com dois filhos e vambora!
Quando falamos de samba lembramos sempre do pessoal da antiga, tipo Cartola, Nelson, Candeia etc, mas essa galera veio 50 anos antes de vocês. E as novas referências no samba?
Tem pessoas que já estão mais preparadas, não para ser sambistas mas artistas porque o baile é uma coisa muito importante numa carreira. Sair de casa e fazer 4 horas de baile, cumpadre, é difícil para caralho. É um monte de coisa que você tem que fazer, cuidar do repertório, etc, e isso é uma preparação muito importante. O Renato Milagres faz um samba no Renascença, o Moyseis Marques, Inácio Rios, Renato da Rocinha, o Mingo, a Marcelle Motta, Juninho Thybau… Estou sentindo muita falta de cantoras, estão muito parecidinhas, a Marcelle do Samba Urbano é a única que difere um pouco das meninas. Além dela tem a Luiza Dionísio, Ana Costa, que é uma geração uma pouco mais velha. Mas daqui a 30 anos não vai dá para você discernir, será uma geração só pelos olhos da história.
Os dois discos lançados por João Martins. Foto: arquivo pessoal.

Tivemos a ascensão do funk, do rap, veio a geração rave, e o samba agoniza mas não morre.
O samba não depende dessas culturas, ele se mistura temporariamente mas nunca vai perder sua essência. Eu sou o maior defensor do funk, acho do caralho, não gosto muito do funk novo mas um charme, um volt mix, uma montagem do proibidão, eu adoro. Eu vejo gente falar que o funk é anti cultura, anti cultura é o caralho, funk é foda: tem personalidades, histórias maravilhosas, bailes, deslocamento de pessoas, de gente que morreu por aquilo, é uma coisa muito presente na nossa cultura e na nossa vida.
O que é a música para você?
A música na minha vida é uma coisa que fica até chato de falar, porque às vezes parece que eu sou mercenário. Mas não, é porque todo o dinheiro que eu ganho na minha vida devo à música. O dinheiro que sustenta as minhas filhas, que eu venho trabalhar ou compro uma roupa, como e pago as contas da minha casa, é proveniente da música. É a minha fonte de renda. Sou casado com a música e deixo ela às vezes de férias, porque tem uma hora que você não aguenta mais. Você vai ao aniversário de um cara e está tocando uma música toda errada ou bem, você não consegue interagir na festa, vai ficar prestando atenção naquilo. Então eu acho que a música para mim é um casamento, faz parte da vida. É orgânico, é do corpo, ela fica sempre na cabeça do músico. Não é uma coisa terceirizada, é algo que está em mim mas eu dependo dela porque não sou eu. Ela foge de mim para os ouvidos dos outros e foge dos outros para os meus ouvidos. É um casamento infindável, impossível de separar.
O governo do PT chegou como uma grande promessa, tinha toda uma expectativa em função do que veio antes com a ditadura e outros governos mais neoliberais. Como você vê o Brasil hoje politicamente?
Eu acho que na política quando você não está dentro da máquina não dá para saber como funciona, e quando você é só contra a sua posição é muito mais cômoda. É muito mais complexo do que dizer que o Lula não sabia de nada, porque o país teve uma melhora do caralho. O social ainda está devendo um pouco, muito na saúde e educação, infraestrutura do país, mas o Brasil está com uma força e um crescimento notável. Era um país de futuro, mas agora está estourando, enquanto a Europa está se fudendo e os EUA na corda bamba. Mas o país está andando com todo mundo perdido: ninguém sabe o que quer, o que está errado e está certo, quem é o pró e o contra, polícia é bandido, bandido é polícia, está todo mundo confuso. Ninguém sabe o que vai acontecer. Há esperança na Copa e Olimpíadas, uma hora terá justiça, o certo. O Brasil está preparado para essa evolução educacional, as pessoas estão bem instruídas para crescer junto com o país?

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