Futebol é jogo pra mulher também

Ela disse que estava tímida e que só iria assistir. Ao chegar lá, não resistiu e ficou me puxando pela camisa para nos aproximarmos do grupo. Logo se soltou e correu em direção à bola. Era a primeira vez que Kay Alvito, 5 anos, realmente jogava futebol. Já havia outra menina na escolinha de futebol de praia, boa de bola aliás. Por enquanto Kay só chuta com a pontinha do pé, mas já aprendeu o mais importante: futebol também é coisa pra mulher, sim.
Normalmente o futebol funciona como uma máquina de enquadramento ao mundo capitalista e suas divisões. Uma espécie de fábrica de caretas. Seria coisa pra homem e não pra mulheres, vistas como fracas e inábeis para o “rude esporte bretão”. Os xingamentos preferidos das torcidas implicam em sodomizar os adversários. Não há esporte em que “sair do armário” seja um tabu maior. Os estádios estão divididos hierarquicamente segundo o poder de compra de cada um. Os dirigentes são ricos e brancos, a maioria dos meninos que tentam o sonho de ser jogador de futebol são negros e pobres. As camisas viraram painéis publicitários e a mesma coisa os estádios. Os ícones do futebol mundial põem lenha na fogueira do consumo além de simbolizarem a juventude, a vitalidade e o sucesso.
Mas não é preciso ser assim. O futebol pode ser utilizado politicamente como arma de conscientização. A primeira faixa a favor da anistia aos presos políticos foi desfraldada pela Gaviões da Fiel em um jogo com mais de 100 mil pessoas presentes. As torcidas organizadas, aliás, quando surgiram em fi nais da década de 1960 contestavam o status quo dos clubes, protestando contra dirigentes corruptos e fazendo campanhas contra o aumento dos ingressos. Em 1978, logo após a Copa organizada pela ditadura militar argentina e vencida pelos anfitriões, os torcedores argentinos voltaram aos estádios cantando “Se va acabar, se va acabar la ditadura militar”. E em 1986, os moradores das favelas do México, percebendo que a Copa era um grande golpe publicitário, marcharam cantando: “Queremos pão e não gols!”.
Bola de presente
No caso do gênero, a reprodução das estruturas funciona como um crime quase perfeito. Não se estimulam as meninas a jogarem futebol. Alguém já viu uma menina ganhar uma bola de presente de aniversário? Ou seja, elas tendem a não aprender a jogar quando são bem pequenas. Ora, o futebol é um jogo especial, que depende de uma aprendizagem precoce, concomitante ao momento em que a criança está aprendendo a andar, porque é necessário adquirir um equilíbrio especial para correr, equilibrar o corpo e chutar ao mesmo tempo. Não estimulada ou até mesmo desestimulada pelos pais, a menina que mesmo assim quiser jogar terá que enfrentar a hostilidade dos meninos da sua idade.
Quando ela vier a fazer isso já terá passado algum tempo e a diferença técnica dela em relação a eles será gritante. Ou seja, ela acabará se transformando em motivo de chacota e em mais um exemplo de que mulher não sabe jogar futebol… Quando nascer uma menina, já que mulher “não sabe jogar futebol”, ninguém vai lhe dar uma bola de presente e assim o ciclo se completará.
Apesar disso, as mulheres jogam sim, e bastante. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, existe uma associação de futebol feminino extremamente bem organizada e que conta atualmente com 55 equipes que se enfrentam em competições regulares (http://www.futebolfemininorj.com.br). É preciso lembrar que já havia mulheres jogando no Brasil ainda na década de 1930, quando o futebol feminino era proibido por Getúlio Vargas sob a alegação de que era um esporte violento e impróprio para as futuras mães.
O mesmo ocorreu na Inglaterra. Ali, quando da I Guerra Mundial, as operárias montaram equipes e começaram a jogar. Logo o futebol feminino virou uma coqueluche e houve partidas jogadas em grandes estádios para públicos com dezenas de milhares de pessoas. Quando termina a guerra, a Football  Association (a Federação Inglesa de Futebol) praticamente proíbe o futebol feminino ao impedir que elas utilizassem todo e qualquer equipamento esportivo dos clubes associados à federação. Ou seja: se elas quisessem jogar, que o fizessem no parque! Em 1969 as mulheres inglesas revidaram: criaram a Women’s Football Association, cujo sucesso obrigou a Football Association a rever seus conceitos e a incorporar o futebol feminino definitivamente em 1993.
“Revolução do futebol”
O futebol tem refletido o novo papel das mulheres na sociedade, servindo também como elemento catalisador de mudanças. No Irã, por exemplo, as mulheres foram proibidas de assistir futebol, pela televisão ou nos estádios, após a Revolução Islâmica em fins da década de 1970. Inconformadas, continuaram indo aos estádios disfarçadas de homens. Tanto pressionaram que em 1987 o regime permitiu que assistissem futebol pela televisão, mantendo ainda a proibição de frequentar estádios. Dez anos depois, em 1997, as mulheres desencadearam um processo em massa de desobediência civil. Quando o Irã se classifica às duras penas para a Copa do Mundo de 1998, as mulheres saem às ruas desafiando todas as proibições e até mesmo a polícia, encarregada de reprimi-las. Quando os policiais barram a sua entrada no estádio onde os heróis da classificação chegariam de helicóptero, as mulheres começam a cantar: “Não somos parte desta nação? Também queremos comemorar.” Resultado: a polícia teve que achar um jeito para acomodar três mil mulheres no estádio. Este episódio ficou conhecido como “A Revolução do Futebol” e talvez tenha sido ali que o povo iraniano entendeu que podia enfrentar o governo.
No Brasil, o sucesso da seleção feminina de futebol tem feito algumas barreiras caírem, com comentaristas de televisão admitindo abertamente a qualidade do futebol jogado por elas, sobretudo por Marta, eleita cinco vezes a melhor jogadora do planeta. Contraditoriamente, ou melhor, de forma coerente com os preconceitos de gênero, o futebol feminino não tem recebido nenhum incentivo real e as nossas melhores jogadoras são obrigadas a se transferirem para o exterior. No país do futebol inexistem competições de futebol feminino de maior expressão veiculadas pela mídia. Um campeonato brasileiro de futebol feminino forte seria uma arma importante contra o sexismo. Serviria de exemplo para milhares de meninas não só no que diz respeito ao seu direito de gostar de jogar futebol. Porque se o futebol também é coisa pra mulher, haverá algo que não seja?
(*) Marcos Alvito é historiador e antropólogo e um dos fundadores da Associação Nacional dos Torcedores e Torcedoras. Artigo publicado originalmente no Brasil de Fato.

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