Estréia de Haim TABAKMAN em Cannes surpreende

Por Raquel Gandra (*), de Cannes, para a Revista Consciência.Net

Eyes wide open, produção israelense e primeiro longa metragem dirigido pelo jovem cineasta Haim Tabakman é um filme sobre um homem de familia (Aaron), frequentador assíduo da sinagoga, com valores morais e costumes conservadores e cujo o cotidiano é preenchido pelos mesmos movimentos e as mesmas paisagens todos os dias. Até que um jovem misterioso (Ezri) surge inesperadamente na cidade com uma mala nas costas e sem destino certo. Deste encontro improvável nasce uma relação de afeto e carinho, que acaba se desenvolvendo em algo mais profundo e comprometedor, considerada como inaceitável nessa comunidade ultra ortodoxa de Jerusalém.

A ligação entre os dois é desenvolvida em um bom tempo, de forma a podermos observar o crescimento desse sentimento. A produção triunfa na ousadia das cenas amorosas e no clima de tensão, que perpassa a relação dos diferentes personagens, mostrando desejos escondidos, confissões não ditas e o desequilíbrio de poder entre os mesmos. Seja entre os dois amantes, Aaron e sua esposa ou Ezri e a mesma.

Como o filme se baseia bastante na sutileza daquilo que os personagens não dizem, a atuação é especialmente importante e muitas das informações nos são passadas através de gestos, mas principalmente de olhares. Essa atmosfera de explosão em potência preenche quase totalmente os 90 minutos, gerando uma expectativa constante de quem assiste de saber qual será a próxima ação ou reação dos personagens.

Outro trunfo do filme é a maneira com a qual trata a ligação entre os dois. Mais violenta, selvagem e carregada de desejo no início, mas também carinhosa e afetuosa a medida que se desenvolve. As cenas de amor são bonitas, e muitas vezes delicadas, como quando estão ambos deitados na cama apenas fazendo carinho. A naturalidade e a intimidade demonstradas são fatores que fazem falta em muitos filmes que se propõe a retratar relações homossexuais.

EINAYM PKUHOT, título original, é muito interessante por abordar um tema ainda tabu em muitos lugares do mundo. Imagino que seja ainda mais difícil num local dominado e regido pela religião. Religião essa, o judaísmo, que não aceita a homossexualidade e trata de banir qualquer um que tente ser diferente dos seus valores.

Haim Tabakman não se restringe apenas à situação dos dois como forma de crítica a repressão e a injustiça na comunidade, mas mostra também um casal apaixonado que após ser mal falado e maltratado por vizinhos e habitantes, é obrigado pela família da moça e pelo rabino local a se separar. Esse outro caso ajuda também a nos mostrar a hipocrisia existente, já que entre os três que vão pessoalmente a casa do rapaz obrigá-lo a se afastar da moça, se encontra Aaron.

O clima de fofoca e de repressão é construído através ultimatos ao açougueiro para que mande Ezri embora, de conversas com o Rabino local, de um mural cheio de enunciados anônimos dentre os quais encontra-se títulos como “Atenção! Há um pecador entre nós”, de olhares de mal estar, etc.

A cena de uma pedra sendo jogada, quebrando a janela do açougue, lembra muitas outras de filmes anteriores que servem para demonstrar o anônimo como símbolo do todo expulsando o indesejado. Seja em “Faça a coisa certa” de Spike Lee, ou no filme de Chaplin “O Grande Ditador” (irônico por ser uma demonstração anti-judaica durante a segunda guerra mundial). Outra cena também muita bem idealizada por sua sutileza é quando os dois estão tendo uma breve discussão em frente a porta do açougue e, quando um carro passa, vemos no reflexo do vidro um grupo de judeus olhando de forma repreensiva e inquisitiva.

Apesar de todos os meus elogios, reconheço que “Eyes wide open” não é um grande filme. Um dos motivos é por dar peso demasiado ao fato em si, ao amor dos dois como um evento e algo tão chocante que os outros elementos ao redor não são tão bem desenvolvidos. Os personagens, por exemplo, ficam um pouco rasos. Só os sabemos em relação ao que está acontecendo naquele momento. Eles não nos são mostrados fora ou além daquela situação. Há uma tentativa nesse sentido, mas falta informação.

O melhor dentre os personagens, mais completo, é Aaron, pois acompanhamos a mudança na sua vida. Desde uma rotina imutável e repleta de gestos repetidos, como a abertura da loja, colocar o chapéu de seu falecido pai no cabide para evocar sua presença, etc, até começar a fazer coisas mais espontâneas, sorrir e por em questão os ensinamentos de sua religião. Além disso, as últimas três cenas do filme deixam um sentido que pode ser considerado dúbio sobre seu direcionamento ideológico.

Considerando todos o elementos, Eyes wide open é um filme que valhe a pena ser visto e discutido, por trazer, dentre outros, novas formas de mostrar uma questão ainda pouco explorada no cinema.

(*) Raquel Gandra é editora de Cinema e Artes da Revista Consciência.Net. Mora atualmente na França e está cobrindo o Festival de Cannes.

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