Eu vivo em tempos sombrios […] Que tempos são esses em que falar de
flores é quase um crime, pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
(Bertolt Brecht: Aos que virão depois de nós. 1947)
Assumo publicamente: saí do armário. Não foi assim de repente, da noite pro dia, mas devagarzinho, com idas e vindas. Começou na infância quando fiquei enfeitiçado por uma biba no bairro de Aparecida, em Manaus. Mas agora, na velhice, surpreendentemente, um caso tornou definitiva e sem volta a saída do armário: a morte nos últimos dias de milhares de pássaros no Novo México (EUA). Mais de um milhão, calcula a bióloga Martha Desmond em entrevista à BBC:
– “É devastador. Acho que nunca vi nada tão horrível na minha vida”.
No Brasil, a mídia ignorou a tragédia considerada “menor” diante do coronavírus, que já matou quase 140 mil brasileiros. Numa visão antropocêntrica, se alega – para afirmar uma superioridade – que gente é gente, bicho é bicho. E se fosse para noticiar morte de animais, a prioridade seriam as vítimas de incêndios florestais na Amazônia e no Pantanal. Por isso, uma crônica sobre o número alarmante de andorinhas mortas nos Estados Unidos exige uma justificativa de tal escolha, como fez Gabriel García Márquez, ao expor a relação de bichos com bicha.
Maricón
Na crônica jornalística “Cómo sufrimos las flores” (9/12/1981), o escritor colombiano relatou em sua coluna uma reunião com amigos na qual um deles, que era biólogo, dissertou sobre a alma das plantas que, dentro de casa, passam a fazer parte do núcleo familiar, sofrem com as brigas de casais e podem até morrer aterrorizadas, o que já foi constatado com o uso do galvanômetro – um aparelho que mede a intensidade da corrente elétrica e que, em contato com uma planta, revela suas reações e seus sentimentos mais íntimos.
O escritor afirma aquilo que os índios Guarani já sabem há milênios, fruto da observação e da convivência com bichos e plantas: as flores são gente, elas falam, reagem diante da felicidade, do prazer e da agressão.
– “O centro nervoso das plantas localiza-se na textura das raízes que se dilatam e se contraem como os músculos do coração humano. Além disso, têm memória: são capazes de acumular impressões e de retê-las por longo tempo. Podemos imaginar, portanto, quais recordações históricas armazena uma sequoia, essa árvore fabulosa que chega a crescer até 150 metros e pode viver até três mil anos” – escreveu García Márquez, Gabo para os íntimos.
Ele relata que pesquisadores injetaram em várias plantas forte dose de álcool e, no dia seguinte, elas estavam de ressaca do porre homérico, apresentando quadro de uma “embriaguez triste”. Estudos indicam que a música também interfere no crescimento de seres do reino vegetal – disse seu amigo biólogo na mencionada reunião. No entanto, nem todos os presentes se comoveram com a sensibilidade das plantas e o genocídio das florestas. Dias depois, o escritor recebe telefonema de outro amigo que lhe perguntou qual era o tema da sua próxima crônica.
– Estoy escribiendo sobre el sufrimiento de las plantas y las flores – le contesté. Mi amigo, con una alarma cierta, exclamó:
– Ah, carajo! ¿No te estarás volviendo maricón?
A osga e a bichice
– Florzinha, passarinho, isso é coisa de gayzinho, se levar um couro muda de comportamento – afirmaria também de forma preconceituosa um capitão, desviando o assunto do depósito de 89 mil reais na conta de sua esposa. Tal preconceito, porém, acaba sendo um reconhecimento, ainda que involuntário, da sensibilidade de quem é capaz de compreender o lugar das plantas e bichos no ecossistema e seu papel na reprodução da espécie humana.
Ah! Já ia me esquecendo: e a biba que enfeitiçou minha infância? Foi assim. Em casa, no Beco da Bosta, bairro de Aparecida, todo mundo dormia em rede, uma colada na outra, parecia barco de recreio lotado. De noite, eu ficava olhando a bibinha, que durante o dia ficava escondida, camuflada e à noite passava se requebrando, se exibindo, ameaçando cair na minha rede. Foi namoro à primeira vista.
Canário na mina
Até hoje não resisto à agonia do mundo animal, que está no olhar do quati sedento correndo do fogo, no jacaré esturricado ou na dor da onça com as patas queimadas no incêndio do Pantanal. Quem morre com eles é a nossa humanidade. Nas minas de carvão do Reino Unido – me contou um dia o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro – os mineiros tinham o costume, até 1986, de levar com eles para dentro dos socavões um canário em uma gaiola. O bichinho, muito mais sensível que os humanos aos gases tóxicos acumulados dentro dos túneis, começa a agonizar quando o ar fica envenenado. Sua morte é um sinal para os mineiros, um “aviso” de que devem evacuar as galerias. O grito “Canary in the coal mine” virou um sinal de perigo iminente.
A metáfora do canário tem sido empregada por diferentes pesquisadores para discutir o papel da humanidade na extinção de animais, considerada como presságio de desastres ecológicos. Agora, os canários estão morrendo massivamente, nesse socavão que se transformou o planeta e não temos para onde fugir. Este dado concreto me leva a assumir e cultivar o meu lado
P.S. Agradeço à doutora em filosofia Déborah Danowski o envio, via tweeter, da notícia sobre os pássaros de New Mexico, tema tão relevante e dramático quanto o incêndio no Pantanal que carbonizou as plantações dos índios Guató, ocasionando a perda de 83% do seu território. Ambos estão intimamente relacionados.
Reconforta este texto sensível, que suscita um movimento em direção ao feminino tão agredido neste planeta.