Entendendo ponto a ponto alguns pontos do que se chama de ‘cultura do estupro’

Foto: Mídia NINJA
Foto: Mídia NINJA

1. Distanciamento do feminino

Nesse ponto o homem (e a mulher) aprende(m) que a mulher é um objeto e não um sujeito. Frases como “prendam suas cabritas porque meu bode está solto” e outras imbecilidades são repetidas constantemente. É a socialização pedagógica da opressão feminina.

2. Ridicularização do feminino

Alega-se que características como sensibilidade, afetividade, compaixão, delicadeza, amorosidade e outros dentro do mesmo espectro semântico pertencem a um pretenso “universo feminino”, que obviamente, por ser distante (ponto um), é “o outro” e se é “outro” é onde projetarei todos os problemas e todas as debilidades que não quero ver em mim mesmo.

Então, se você é homem e começa a manifestar esse tipo de preocupação ou comportamento mais sensível, condescendente ou pacífico, passa imediatamente a ser ridicularizado e compreendido como “fraco”, “débil”, “inapto” etc. Adjetivos como “mulherzinha” ditos a crianças do sexo masculino são uma das formas mais comuns de reforçar esse padrão.

3. Naturalização da violência contra o feminino

A naturalização ocorre principalmente pela grande mídia, mas é na repetição cotidiana que ela ganha seu ar mais criminoso. Vemos ela nas expressões “ah, deu mole”, “é assim mesmo!”, “tava querendo” etc.

4. Banalização da violência contra o feminino

Obedecendo à lógica do ponto um, só as mulheres próximas valem, as mais distantes valem menos. Então nossas mães, esposas, filhas, primas e irmãs não podem ser estupradas nem ofendidas nem agredidas porque valem mais por estarem mais próximas, o resto, por estar longe, não vale nada, ou menos.

Vemos isso claramente na imprensa, que divulga o distante e salvaguarda o próximo: Mesmo diante de provas contundentes de crimes contra as mulheres – obviamente praticados contra elas pelo fato de serem mulheres – grandes jornais procuram relativizar fatos concretos.

Vídeos comprovando detalhadamente as cenas e os momentos dos crimes são reportados como “suspeita”, “suposto”, “possível”, “provável”, “indício” etc. Isso é banalizar a violência contra a mulher, é reforçar os padrões de socialização machista que permitem que um estupro coletivo aconteça.

5. Choque diante das consequências

Quando a hipocrisia ou a disfunção cognitiva batem à porta. Bate-se palmas para a mídia que incentiva a misoginia (repulsa, desprezo ou ódio contra as mulheres), bate-se palmas para a marca de cerveja que objetifica a mulher e o sexo, para o político que diz que não estupra uma colega parlamentar porque ela “não merece”, para o ator que confessa estupro na televisão. Mas quando 33 homens realizam um estupro coletivo quem bateu as palmas para tudo isso antes fica verdadeiramente perplexo e de fato não entende de onde vem “tanta violência”.

Muitos não estão fazendo esta ligação entre os pontos acima e isso só prova que a cultura existe e está mesmo muito naturalizada. Ou seja: precisamos criar uma nova cultura, baseada em novos valores.

6. Culpabilização da vítima

Como não permite-se que o “outro”, o “diferente”, aquele entendido como “inferior”, “menos digno”, “menos importante”, “menos humano” – seja ele mulher, negro, de outra posicionamento politico, poder aquisitivo ou crença religiosa – possa ser entendido como digno de ser ouvido ou considerado como igualmente válido como ser humano, como digno de vez e voz, tende-se a projetar a culpa nele. Porque ninguém se sente confortável confrontando os próprios padrões e certezas pré-estabelecidas, e, nesse processo, a negação é o primeiro passo.

Nega-se a realidade numa tentativa de reforçar as crenças que levaram essa realidade a acontecer. Afinal, como diz o ponto um: “a vítima é o outro”. Como diz o ponto dois: “o outro é inferior”. Como diz o ponto três: “é natural que o inferior sofra mais”. Como diz o ponto quatro: “isso nem é tão importante mesmo”.

7. Manutenção do foco na punição e não na prevenção.

A sociedade de Mercado nos socializa assim. A pressa faz com que estejamos eternamente “apagando incêndios” e nunca comprando extintores antecipadamente. Porque na pressa gastamos mais, pensamos menos, não planejamos, reagimos. Na pressa procuramos culpados, não damos atenção, cuidado, respeito à vítima.

Usando uma metáfora bem clara: num atropelamento nossa sociedade está mais preocupada em correr atrás do carro para chutar sua placa do que em socorrer à vítima, que vai continuar agonizando até morrer no chão. Sequer prestamos atenção à vítima – a menos que seja para culpá-la por ser uma vítima, claro.

Dessa forma procuramos combater a cultura do estupro não incentivando uma nova cultura – a do respeito, por exemplo, ou da escuta atenta, ou do empoderamento dos historicamente menos favorecidos – mas reforçando o hábito de apagar incêndios, o hábito fácil do “plug and play” das soluções “ready made” instantâneas, que nada mais são do que paliativos, soluções temporárias à espera da próxima tragédia, da próxima chacina, do próximo estupro gravado (porque coletivos infelizmente ainda existem aos montes).

8. Volte ao ponto 1

Cultura também vem da palavra “cultivo” tanto quanto da palavra “culto”, no sentido religioso mesmo. E para cultivar algo é necessário repetir algo, fazê-lo de novo e de novo e outra vez e repetir e reiterar e insistir. A cultura do estupro acontece porque a sociedade volta ao ponto um, que leva ao dois e ao três etc. Até que você comece a “cultuar” essa ideia a ponto de naturalizar ela… percebe?

Se queremos de fato mudar isso o primeiro passo é sem dúvida dar vez e voz às mulheres ao nosso redor. Ouvir mais, respeitar mais, dialogar mais, perguntar mais, nos importar mais. E repetir e insistir e reiterar e perseverar nesse comportamento, até que vire um hábito, que se torne um valor, e então uma crença, um cultivo, uma cultura.

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