É preciso romper o silêncio, combater a cultura do estupro e legalizar o aborto

Por Jessy Dayane

Desde a semana passada o Brasil foi tomado por uma tristeza que nos revolta. O caso da menina de dez anos que foi violentada sexualmente repetidas vezes pelo tio, por 4 anos, quase metade de toda sua vida gerou diversas reações. De um lado da batalha estavam fanáticos religiosos conservadores, querendo impor uma gestação à criança, colocando sua vida em risco e violando ainda mais seus direitos, sua integridade física e sua saúde mental.

Esse fato infelizmente é uma realidade no nosso país. O sofrimento e a dor dessa menina não podem ficar impunes. É necessário romper o silêncio: precisamos falar da cultura do estupro e da descriminalização e legalização do aborto no Brasil, esse debate diz respeito à vida de milhares de meninas e mulheres.

Esse caso é emblemático e absurdo, porque se tratava de uma das possibilidades de aborto legal. No Brasil já é previsto em lei há 60 anos o aborto em caso de gravidez resultante de estupro ou que ponha em risco a vida da mulher, independente da idade.

Além disso, de acordo com nosso código penal, relações sexuais entre adultos e crianças com menos de 14 anos é considerado estupro de vulnerável, inclusive, essa previsão do código penal é o mínimo de razoabilidade e sensatez que esperamos de qualquer ser humano.

Então nesse caso, o aborto era legal tanto por ser fruto de estupro quanto por colocar em risco a vida de uma criança que não tem o corpo biologicamente preparado para levar adiante uma gravidez, muito menos de assumir as responsabilidades de ser mãe aos dez anos. É uma criança que precisa de cuidado, proteção do estado, afeto e tem o direito de viver a infância com saúde, educação e lazer. Ou seja, a menina foi cruelmente violentada, e ainda por cima, teve outros direitos violado, direitos que foram conquistados há décadas pelo movimento de mulheres no Brasil.

Mas os extremistas conservadores, encorajados diante da onda bolsonarista, e incitados pela Damares, ministra do Estado de Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, acharam pouco todo o sofrimento e violação de direitos e ainda tornaram essa dor pública, expondo a menina e sua família nas redes sociais, violando mais uma vez o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Foram à porta do hospital hostilizar a equipe médica, a menina e a sua família, chamando-as de assassinas, tornando ainda mais agressiva e cruel toda esta situação. A vida da criança foi salva graças aos profissionais de saúde comprometidos e a mobilização do movimento feminista, as mulheres que foram defender a menina na porta do hospital em contraposição aos fundamentalistas.

Fica evidente que a posição antiaborto nada tem a ver com a defesa da vida. Os fundamentalistas foram à porta do hospital pressionar para que a menina de dez anos levasse adiante a gravidez forçada, mesmo que essa gravidez pusesse em risco a vida e também a vida do feto.

Será que é tão difícil entender que essa menina não teve relações sexuais? Criança não faz sexo! Ela foi estuprada! Foi violentada! Ela não engravidou, ela foi vítima de uma violência e foi engravidada à força. Ela não pode ser responsabilizada, hostilizada e sofrer ainda mais violência. Ela precisa ser acolhida e ter seus direitos garantidos pelo estado!

Esse caso traz à tona um tema que precisa deixar de ser tabu na nossa sociedade, muito menos uma questão de ordem particular ou de crença individual. A cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Mais de 70% dos estupros são praticados contra crianças e adolescentes.

Ocorrem em média seis internações por dia no Brasil para garantir os abortos que são frutos de estupro envolvendo meninas de dez a 14 anos. Essa realidade da saúde pública nacional não pode ser hipocritamente ignorada, é necessário assegurar o aborto legal, seguro e gratuito.

Segundo a Pesquisa nacional de Aborto, uma a cada cinco mulheres com idade até 40 anos já realizou um aborto na vida. Além disso, no Brasil, o aborto é a 4º causa de morte materna. Quem são as mulheres que morrem?

Enquanto algumas realizam abortos clandestinos com métodos inseguros e invasivos, outras realizam abortos caríssimos em clínicas clandestinas particulares. A criminalização não inibe a prática do aborto, mas mata as mulheres socioeconomicamente mais vulneráveis.

É evidente a importância de enfrentar na esfera pública e com seriedade o tema da cultura do estupro e da legalização do aborto. Isto diz respeito a vida de milhares de nós, mulheres pobres, negras e indígenas do nosso país.

Também já está provado que a legalização do aborto não aumenta o número de abortos, pelo contrário, os países que descriminalizaram tiveram altas queda nas taxas de abortamento. A legalização do aborto deve vir acompanhada de políticas de educação sexual que previnam e conscientizem sobre a questão do abuso sexual, que enfrentam a cultura machista que controla e violenta os nossos corpos, que permita o conhecimento sobre o nosso corpo e sobre métodos contraceptivos.

É preciso debater e construir uma política de saúde pública que informe e disponibilize o acesso a métodos contraceptivos para evitar gravidez indesejada, e por fim, a garantia do aborto seguro, legal e gratuito para que nenhuma mulher morra em decorrência da interrupção da gravidez indesejada.

É preciso transformar nossa indignação em luta feminista para que outras crianças não sofram essa violência, como a menina capixaba de dez anos. E para que os direitos das nossas meninas e mulheres sejam assegurados.

Não será o fundamentalismo religioso que vai assegurar o direito à vida, mas sim a construção de um projeto feminista, antiracista e popular, que ataque a raiz da questão! É combatendo a cultura do estupro! É desnaturalizando essa situação de violência e controle sobre os nossos corpos! E assegurando o direito das mulheres de decidir descriminalizando e legalizando o aborto que podemos assegurar que nossas meninas vão viver plenamente e que a maternidade não será uma tortura, mas sim uma escolha recheada de amor.

Edição: Rodrigo Chagas

Fonte: Brasil de Fato

 

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