É possível fazer um jornalismo 'à brasileira’ sobre o que acontece no mundo

“Mostrar vários olhares da mesma realidade” ou ”contar o outro lado da história”, essas ações são características que todo veículo de comunicação diz ter. Afinal, apresentar só uma visão dos fatos significa jornalismo sem credibilidade. Para Pedro Aguiar, editor do Opera Mundi, site especializado em cobertura internacional, os meios de comunicação brasileiros apresentam uma cobertura alinhada às potências econômicas e não conseguem “produzir um jornalismo que tenha um olhar brasileiro sobre o mundo”
O Fazendo Media conversou com ele para entender como é trabalhar em um site que apresenta uma leitura dos fatos internacionais de forma menos alinhada e cobrindo assuntos normalmente ‘esquecidos’ pelos meios tradicionais de comunicação. Além disso, Aguiar fala um pouco da sua experiência profissional e analisa o jogo de interesses e desvios da imprensa brasileira ao informar o público sobre o que acontece no mundo.
Como você começou a sua carreira?
Estudei na Escola de Comunicação da UFRJ, no Rio, que é um centro privilegiado de formação de jornalistas e top de linha no pensamento da comunicação no Brasil. A maior parte dos meus colegas foi para grandes redações, não só no país, mas também no exterior. Meu primeiro estágio foi numa editora de revistas segmentadas, e de lá saí para entrar na EFE, a agência de notícias espanhola, que tem redação no Rio para o serviço em português. O terceiro foi no extinto programa de estágio multimídia em parceria do jornal O Globo com a rádio CBN, em que rodávamos editorias e veículos, trabalhando com rádio, impresso e internet. Nesses todos, desenvolvi um gosto maior pela cobertura internacional e, ao mesmo tempo, fui dando os primeiros passos na carreira acadêmica, como monitor da disciplina de Jornalismo Internacional na UFRJ (que depois lecionei, como mestrando).
Depois de formado, trabalhei como redator da editoria Internacional do – agora extinto – Jornal do Brasil e saí de lá para fazer, em Praga, um curso rápido de formação para correspondentes voltado para o Leste Europeu, que é minha área preferida do mundo. Na volta, retornei à EFE (agora já como editor júnior) e depois entrei para o mestrado em Comunicação, também na UFRJ, que concluí este ano. Recebi o convite do Opera no ano passado e vim para São Paulo, onde estou há pouco mais de um ano, como  sub-editor deste que, atualmente, é o único veículo no Brasil exclusivamente dedicado ao jornalismo internacional.
Qual é a linha editorial do OperaMundi? Como surgiu o projeto do site?
A linha editorial do Opera Mundi é progressista e crítica (“de esquerda”, por assim dizer, embora isso seja um tanto limitador; não fazemos propaganda ideológica), atenta às reivindicações de atores sociais marginalizados, de vozes contra-hegemônicas, de intelectuais e profissionais do chamado “pensamento crítico”, de movimentos sociais e de governos comprometidos com estas causas.
Nosso campo de cobertura é o mundo todo, com uma ênfase na América Latina que é natural por causa da inserção do Brasil. Além do noticiário internacional propriamente dito, cobrimos também a política externa brasileira, tanto nas relações politícas quanto comerciais, e casos que envolvam o Brasil em relação a outros países (que, na mídia convencional, nunca são tratados pela editoria de Internacional).
Eu não posso contar como sugiu o projeto do site porque só entrei nele muito depois, quando já tinha quase um ano de existência e consolidação. Mas posso comentar que o Opera preenche um espaço que estava vazio havia alguns anos, desde a extinção da revista Cadernos do Terceiro Mundo. A CTM existiu de 1975 até 2005 e foi, durante essas três décadas, a única publicação brasileira dedicada a assuntos internacionais, com ênfase – como o próprio nome diz – nos países em desenvolvimento. Ela era editada por Neiva Moreira (jornalista maranhense, ligado ao PDT, inimigo histórico da oligarquia Sarney) e sua mulher, a uruguaia Beatriz Bissio, e operava em parceria estreita com a agência de notícias IPS, fundada em Roma por Roberto Savio e Pablo Piacentini, para dar voz à mídia terceiro-mundista. Desde que a CTM faliu, por falta de verba (e de apoio, inclusive do governo Lula), esse vácuo precisava ser preenchido.  Eu considero o Opera Mundi uma espécie de herdeiro da CTM.
Qual a maior dificuldade em produzir conteúdo internacional?
A maior dificuldade é produzir um jornalismo que tenha um olhar brasileiro sobre o mundo. E esse olhar brasileiro é muito mais sério, mais profundo e menos idiotizante que os correspondentes da TV Globo transmitem sobre os mesmos poucos países onde estão estacionados. A China não é só “um gigante misterioso e complexo”, o Oriente Médio não é só “um desafio à paz mundial”, a Rússia não é “a ovelha negra da comunidade internacional”, o Irã não é “a criança-problema” nem os EUA são simplesmente  “a maior potência do mundo”. O mundo é feito de uma relação extremamente imbricada e contraditória de interesses inconstantes, instáveis. E o jornalismo internacional precisa dar conta disso, da melhor maneira que puder, para que o leitor tenha essa noção, e não fique achando que os países são estereótipos.
O fato de dependermos das grandes agências de notícias – que são empresas multinacionais, corporativas, com sede nos países ricos e laços comerciais e de capital muito fortes com outras empresas fora do setor de mídia – também atrapalha, mas isso não é privilégio do Brasil. Quase todos os países do mundo dependem dessas mesmas agências para montar seu noticiário de Inter, e é por isso que a pauta de um jornal na Tailândia não fica muito diferente da de outro na Colômbia. A saída para essa situação de dependência é não só investir em correspondentes (ou stringers, que são free-lancers) espalhados pelo mundo, mas também utilizar os recursos tecnológicos à nossa disposição pra encurtar a distância entre nós e a origem da informação internacional. Por exemplo, acessar um jornal árabe pela web e usar o GoogleTranslator para traduzir o texto, acompanhar o twitter de um presidente latino-americano, entrevistar um analista político na Jordânia usando o Skype, e gerar um mapinha pelo GoogleMaps, ilustrado com um vídeo no YouTube.
Eu escrevi um livrinho justamente sobre isso que está disponível para download em/; http://www.scribd.com/doc/28056680/Cadernos-da-Comunicacao-Jornalismo-Internacional-em-Redes
A grande imprensa brasileira cumpre o papel de informar o público sobre aquilo que acontece fora do Brasil?
Definitivamente, cumpre mal. A cobertura internacional no Brasil já teve muito mais destaque e status do que tem atualmente, o que pode ser comprovado ao se ler edições dos anos 50 e 60 dos grandes jornais brasileiros (quase sempre, a manchete do dia era um assunto de “Inter”). Parte da culpa é do novo jornalismo, que põe gente incapaz de dar conta da miríade de nomes, lugares e fatos que acontecem no planeta (jornalistas cada vez mais jovens na redação, com cada vez menos cultura geral), mas também há o tal do “desinteresse” do público pelos temas internacionais. O Brasil, de alguma forma, passou décadas se sentindo isolado do mundo – inclusive dos países vizinhos – e isso só começou a mudar muito recentemente, no segundo mandato de Lula.
Alguns críticos acusam a grande imprensa de fazer uma leitura de mundo alinhada aos interesses das grandes nações como Estados Unidos, por exemplo. Você concorda com essas críticas?
Concordo totalmente. Isso já foi inclusive comprovado, em medições quantitativas, que analisavam o noticiário ao longo de um período de tempo e contavam quantas notícias eram publicadas sobre cada país, invariavelmente dando destaque maior aos EUA e Europa Ocidental (exceto em épocas de crises em outros lugares do mundo). Isso foi feito em larga escala nos anos 70, quando se debatia a desigualdade entre Norte e Sul (em nível global) e se fazia campanha por uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (NOMIC), com apoio da ONU. Mas, mesmo depois que a NOMIC foi abandonada e “esquecida”, a situação não mudou. E até mesmo com a internet, que dá tantas oportunidades para fugir da mesmice, a configuração estrutural do jornalismo internacional continua a mesma: pega-se material de agência, junta-se com dois ou três correspondentes no “circuito Elizabeth Arden” (Nova York, Londres, Paris) e – voilà! – entrega-se um produto medíocre ao leitor/espectador/ouvinte. Medições mais recentes, como a do pesquisador americano Chris Paterson, comprovaram que a fatia do noticiário internacional na mídia online que vem das grandes agências (Reuters, AP, AFP) é basicamente a mesma que da época pré-internet. Ou seja, nada mudou. E falta muito a mudar.

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