Democracia, sim! Mas qual?

Em tempos de obscurantismo, parecem mais frequentes ocorrências esdrúxulas. Algo do tipo: Cristianismo sem Jesus, ditadores revestidos de democratas, ecocidas travestidos de defensores de causas sócio-ambientais… O Grito dos Excluídos, que se vem realizando, no Brasil, há 25 anos, na primeira semana de setembro, bem expressa tal estranhamento, a partir mesmo de seu tema: “este sistema não vale: LUTAMOS POR JUSTIÇA, DIREITOS E LIBERDADE. ”. C.f: https://www.gritodosexcluidos.com

Como poucos regimes políticos do mundo contemporâneo a democracia segue sendo alvo frequente de manifestações de ódio e paixão. Ainda recentemente em declaração feita por uma dos membros da família Bolsonaro em mais uma avaliação insana de modo insinuado foi desferida contra a democracia.

Ao parafrasear o Papa Francisco, em sua última viagem apostólica à terra e suas gentes das nações africanas  em missão de reconciliação e de paz, ele se referiu a esta como uma frágil flor. Tomamos a liberdade de também nos servir de semelhante imagem para afirmar ser a democracia uma frágil flor que teima em desabrochar por entre as pedras da violência.

A experiência vivenciada em Atenas segue valiosa à medida que centramos no poder popular a fonte primeira das decisões fundamentais a serem tomadas pela sociedade, compreendida e formada pelo conjunto de seus cidadãos.

Que marcas mais fortes devemos sublinhar na Democracia? Vejamos alguns traços dignos de destaque.

Um primeiro se acha à vista, a partir mesmo de sua etimologia:o povo como fonte maior de poder, tal como se acha inscrito nas Constituições vigentes em tantos países inclusive na Constituição do Brasil: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” (Artigo 1º: Parágrafo único.)

Outro ponto a merecer realce diz respeito à forma como tal poder deve ser exercido: diretamente ou de forma representativa. O que isto quer dizer? Comecemos, pela forma direta com a efetiva participação dos seus cidadãos e cidadãs, nas decisões fundamentais de interesse do conjunto da sociedade.

Desde sua etimologia (“demos”:povo; e “Kratos”: poder), Democracia aponta a Grécia como um berço. Com efeito, a Ágora ateniense constituía o espaço social, no qual se reunia a “Ekklesia” (Assembléia, Igreja). Por outro lado, convém não superestimar a democracia ateniense, por mais que lhe reconheçamos o mérito de sua inventividade. A despeito de sua etimologia, a Democracia não era exercida por todos os seus habitantes. Dela ficavam excluídas as mulheres, além dos escravos e outros segmentos considerados inferiores. Dela só participavam os homens livres. Aí se acha seu pecado original que se expandiria mundo à fora e por séculos ulteriores, até o presente.

Os limites com que nasceu a Democracia, não devem servir de pretexto para sua invalidação. Seria jogar fora a água suja da bacia com o bebê, seus limites devem antes ser entendidos como desafios a serem superados, devemos tratar tal limites como um convite à constante superação e, portanto, como um passo inicial para seu incessante aprimoramento.

Neste sentido, importa ter sempre presentes suas potencialidades e suas lacunas. Dentre suas potencialidades, podemos sublinhar:

  • O efetivo protagonismo do conjunto de cidadãos e cidadãs, na tomada das decisões de interesse geral (atendendo ao significado de sua etimologia: poder popular);
  • Manter viva organização e formação de cidadãos e cidadãs, como condição do exercício consciente de seus direitos e deveres;
  • assegurar o rodízio constante de cidadãos e cidadãs, como delegados e representantes dos núcleos e conselhos, organizados de forma autônoma e interconectada;
  • submeter constantemente ao conjunto de cidadãos e cidadãs as decisões fundamentais, pertinentes à organização econômica, política e cultural do conjunto da sociedade.

Com relação às armadilhas com que se tem deparado o regime democrático no Brasil e alhures, podemos sublinhar as seguintes:

  • tem sido frequente alvo de manipulação, exercida pelos setores dominantes da sociedade (transnacionais, potências centrais do Capitalismo, monopólio financista, grandes empresas mineradoras e do agronegócio, etc.);
  • submissão da maioria da população à mídia comercial, portadora dos interesses dos setores dominantes;
  • fragilização da sociedade civil, como resultado da crise dos movimentos sociais populares e outras organizações de base, refletindo-se na insuficiente ação organizativa e formativa da sociedade civil.

A despeito dos limites da democracia, sobretudo na contemporaneidade não devemos perder de vista que, se o mundo vai mal com ela, será muito pior sem ela. Isto, contudo, não significa que nos conformamos com os seus esdrúxulos limites do presente. Somos interpelados, enquanto cidadãos e cidadãs, comprometidos com o bem comum e com a dignidade dos humanos e do Planeta, a nos empenharmos mais e mais, na direção de um Horizonte capaz de fazer justiça ao gênero humano e a toda a comunidade dos viventes

Neste sentido, permitimos-nos propor alguns questionamentos, a título de provocação.

É verdade que, de todos os modos, teremos que conviver ver com os limites da democracia. Mas, não de maneira passiva. Precisamos avaliar constantemente as causas e os fatores que tem feito retroceder a democracia, no mundo contemporâneo. Por isto, seguem algumas indagações:

Até que ponto modo de produção capitalista, principalmente nesta sua fase de profunda degradação, comandada pelo setor mais parasita deste sistema – o sistema financista -, rima com democracia ?

Em que país a democracia vai bem, quando subordinada aos ditames das transnacionais,das grandes potências, das grandes empresas do ramo financista, etc?

Até  que ponto o Estado, sendo um componente essencial do Capitalismo, tem compromisso com o Bem Comum e com o zelo pela dignidade do Planeta?

Não será hora, para nossas organizações de base, retomarem, em novo estilo, o trabalho de base, priorizando o processo organizativo e formativo, para além das disputas eleitorais?

P.S. Partes deste texto acham-se citadas em caderno especial do jornal A União, de 22.09.2019 recolhidas pelo jornalista Alexandre Nunes, juntamente com outras reflexões sobre a Democracia.

João Pessoa, 26 de setembro de 2019.

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