Da perplexidade à ousadia de ensaios prospectivos: por uma sociabilidade alternativa

Não terá sido a primeira vez na história, nem será a última, que, diante da complexidade e magnitude dos desafios conjunturais/estruturais, experimentamos sensação de perplexidade e impotência. Por mais que nos impacte a conjuntura atual – e ela é, de fato, atípica! -, não nos cabe render-nos ante a complexidade e amplitude de seus desafios, que, aliás, vão bem além da própria conjuntura. Os seres humanos – já lembrava o mais original dos filósofos da práxis  – não sendo meros produtos das circunstâncias, mas também seus protagonistas (Tese III, sobre Feuerbach), não se colocam problemas para os quais não se sintam historicamente instados a superá-los. Entre acertos do passado, ensaios do presente e ousadias prospectivas, haveremos de encontrar pistas de alternatividade.

Colhidos no olho do furacão, com ou sem surpresa (há, sim, vozes que já vêm alertando sobre isso, há um bom tempo), de uma crise gigantesca, que se tem revelado mais própria de uma “mudança de época”, é compreensível aí prevalecer, por certo tempo, o sentimento de perplexidade, quando não de impotência. Bem ou mal, vínhamos regendo-nos, durante décadas e décadas,  por paradigmas hegemônicos, que nos eram relativamente familiares e aos quais estávamos acostumados. Por vezes, até tínhamos a impressão de que, conforme os traços do problema surgido, já contávamos em nossa caixa de ferramentas teóricas com a(s) ferramenta(s) adequada(s) à sua superação, ainda que parcial. Até parecia que tínhamos as respostas dos problemas. Eis que, de repente, mudam as questões, e sentimos fugir terra dos nossos pés. Enfrentamos questões de novo tipo. Por mais forte que seja a tendência a cedermos ao imobilismo, nosso instinto de sobrevivência nos impele a buscar ensaiar passos de alternatividade à atual conjuntura (ou estrutura). Já não contamos ao nosso favor com a eficácia de nossa velha caixa de ferramentas. Por outro lado, alguns/algumas dentre nós já alertavam, há certo tempo, para sinais de esgotamento de paradigmas hegemônicos. E até mostravam possibilidades alternativas em germe, presentes em experiências moleculares recentes e ainda em curso. De modo que hoje percebemos que nem tudo agora deve partir da estaca zero. Por certo, mesmo as micro-experiências bem sucedidas, em sua busca de alternatividade, não são suficientes para dar conta satisfatoriamente dos desafios de monta hoje à nossa frente. Mas, também é verdade que podem e devem ser um bom começo, um aperitivo promissor em nossa busca de pistas mais consistentes que nos ajudem a enfrentar com êxito os desafios do momento, a curto, médio e longo prazos.

As linhas que seguem têm o propósito de continuar contribuindo com o debate sobre a natureza das crises atuais, no Brasil (e fora do Brasil), na perspectiva de superação. Para tanto, cuidamos de 1) registrar e analisar sucessivos sinais de perplexidade, de  uma espécie de estado de choque; 2) apontar experiências grávidas de alternatividade que, pelo fato de serem ainda moleculares, não têm despertado a devida atenção; e 3) ensaiar pistas de alternatividade, a curto, médio e longo prazos.

 

1)      Uma situação que nos deixa perplexos e imobilizados…

Bons tempos, aqueles em que, conjuntura após conjuntura, sempre arranjávamos uma saída “de algibeira”, e, apesar dos obstáculos intervenientes, acabávamos “acertando”, no final das contas. Dentro do próprio sistema, acabávamos encontrando pistas ou remendos intra-sistêmicos“salvadores”. Já então, pelo menos da parte de um pequeno segmento, sucedia a necessidade de não esperar pelas forças do Estado (nem do Mercado, tão pouco), mas, antes, tratava-se de fazer pressão, por meio da articulação partidária, sindical e popular – espécie de tripé da resistência. “Nós, Trabalhadores do campo”, dizia um documento da época (relativo ao III Encontro Nacional de Trabalhadores da CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), “cansamos de pedir Reforma Agrária”, afirmando que, dali em diante, seriam eles próprios a exigir Reforma Agrária e a buscar sua concretização. Isto por volta de 1979, quando nascia o Movimento Pro-PT. Até certa altura dos anos 80, prevalecia tal sentimento entre os movimentos populares, sindicais e partidários de esquerda. Depois, tal convicção seria substituída pela crescente aposta na conquista de espaços governamentais (da esfera municipal ao plano nacional). Desde então, vem prevalecendo a aposta maciça na força transformadora desses espaços, em proporção direta e crescente ao aparecimento de sucessivos obstáculos. Neste caso, a estratégia ia mudando: agora, diante de um problema, bastava uma nova candidatura ou uma convenção mais consistente, capaz de mudar dirigentes e renovar quadros, mantendo-se, porém, a mesma estrutura organizativa (já verticalizada), enquanto se desmantelavam promissores ensaios formativos. Em breve, as saídas eram encontradas ao interno do próprio sistema, desistindo-se, na prática, do sonho de uma nova sociedade.

Se, antes, tanto o plano do PT quanto o da CUT mostravam-se ciosos de sua autonomia relativa, frente ao Mercado e frente ao Estado, bem como do seu amplo investimento organizativo e formativo, sendo seu intento organizar desde a base – sendo esta, palavra de ordem -, tais princípios foram sendo negligenciados, nos anos seguintes. Se, nas origens, por exemplo, fundar núcleos com autonomia e interconectados, cujas decisões fossem tomadas desde baixo, e cujos delegados levassem para as demais instâncias as decisões tomadas pelos núcleos, disto se vai progressivamente distanciando… No plano formativo, é sabido do maciço investimento em iniciativas tais como a do Instituto Cajamar, bem como em iniciativas, no plano popular/sindical, como a da fundação do CENTRU (Centro de Educação dos Trabalhadores Rurais). Tais iniciativas organizativas e formativas correspondiam a uma espécie, digamos, de “cláusulas pétreas” da organização popular/sindical. Conquistas expressivas que, no âmbito eclesial (“Igreja na Base”), eram reforçadas por iniciativas correlatas, tais como o CIMI (Centro Indigenista Missionário), a CPT (Comissão Pastoral da Terra), CPO (Comissão Pastoral Operária), ACR (Ação dos Cristãos no Meio Rural), MER (Movimento de Evangelização Rural, hoje um movimento popular autônomo: o MCP – Movimento das Comunidades Populares), a ACO (Ação Católica Operária), hoje MTC (Movimento de Trabalhadores Cristãos), cuja contribuição ao meio urbano se compara à da ACR, no meio rural, PJMP (Pastoral de Juventude do Meio Popular), entre outras. O próprio MST surge nesse contexto.

Tão ou ainda mais importante do que essa rede de organizações de base era sua forma de organização: pela base, a partir de nucleamentos (mantidos autônomos e interconectados entre si e com as demais instâncias), direção colegiada, rodízio de cargos e funções, autonomia financeira (viviam dos próprios tostões, arrecadados entre seus sócios), compromisso com a formação contínua de seus coordenadores e do pessoal da base, exercício de uma mística revolucionária, com o propósito de preservar e fortalecer seu compromisso de classe, presença atuante nas lutas sociais, entre outras características de sua organização.

Sobretudo a partir dos anos 90, essas iniciativas foram empalidecendo, quando não abandonadas. Em troca, prevalecia a corrida desvairada aos espaços governamentais. “Por razões táticas”, dizia-se. Tática que não tardaria a virar estratégia. Seus melhores dirigentes e militantes qualificados – centenas, milhares de homens e mulheres –, instados a compor um vasto leque de gestores, assessores em um sem-número de cargos e funções governamentais, nas diferentes esferas de poder, foram trocando a atuação nas ruas e nas lutas populares do campo e da cidade pelos espaços estatais. Foram seduzidos rapidamente pelos sucessivos êxitos eleitorais: câmaras de vereadores, prefeituras, assembleias legislativas, secretarias estaduais e órgãos correlatos, câmara de deputados, senado, presidência, ministérios, cargos do alto escalão… O mal, a essa época, não era que também fizessem política partidária, mas o fato de reduzirem às atividades partidárias e governamentais seu agir político, em desfavor do fortalecimento das lutas sociais do campo e das periferias urbanas. Uma sangria enorme para os movimentos populares, além de sobre eles exercerem uma influência danosa. Daí por diante, não poucos dirigentes/coordenadores de movimentos de referência foram também deixando-se cooptar, seduzidos pelos espaços palacianos. Esses dirigentes , por sua vez, antes zelosos pela sua autonomia frente ao Mercado, frente ao Estado e seus aparelhos, agora desfalcados de aliados históricos, iriam refletir essa sangria, sob várias formas. Uma delas: sob a influência dos antigos companheiros de lutas – agora, companheiros de Governo -, não apenas refrearam sua utopia e suas lutas, como também foram deixando cooptar-se, pela corrida de parte de seus dirigentes aos espaços governamentais. Opção que se revelaria gravíssima, no transcorrer dos anos, sobretudo por afetar sua visão de mundo, seu estilo de vida, seu compromisso de classe, este agora reduzido a mero discurso, já que suas práticas não conseguiram esconder a lição da sabedoria popular, de que “Quem come do meu pirão, prova do meu cinturão”. Ante situações fortemente contraditórias num governo de composição interclassista, como seguir assumindo posições de relativa autonomia? Impossível. O trágico disto é sabermos que ninguém com formação política, como é o caso de tantos dirigentes de movimentos populares e sindicais, faz este caminho inocentemente… Pior: com argumentos falaciosos (por ex.: confundindo origem de classe com posição de classe), arrastam atrás de si um número considerável de militantes de base.

Colhendo o que foi plantado…

Em se tratando de opções graves, suas consequências não tardam a aparecer: alargamento do arco de alianças com todo tipo de agremiação partidária, sob a alegação da “necessidade” de ganhar a eleição e, após o pleito, de garantir governabilidade, fingindo para si não ter, tal opção, consequências  graves: aliancismo, financiamento pelo Mercado e pelo Estado de suas ações, negligenciamento e abandono dos núcleos, verticalização das relações, abandono do processo formativo, distanciamento das bases, aceitação de financiamento empresarial, submissão a decisões de poucas pessoas ou pequenos grupos dirigentes, perda da consciência de classe, individualismo, superestimação de estrelas… Dai para a eclosão de grandes e sucessivos escândalos foi um pulo…

A partir dessas considerações que esperamos nos provoquem um ensaio autoavaliativo, que tal fazer-nos algumas questões, de passagem?

– A partir da compreensão e da experiência organizativa e formativa das origens dessas forças, é defensável atribuir as responsabilidades pela cadeia de malfeitos apenas ao conjunto de dirigentes?

– Tivessem as instâncias de base cumprido seu papel, haveria lugar para tantos abusos de gestão?

– Até que ponto o progressivo abandono da prática de se assegurar alternância de cargos e funções não constitui parte da explicação dos vícios de gestão atuais?

– Estamos conscientes das consequências ético-políticas do abandono do autofinanciamento, escandalosamente substituído pelo financiamento do Mercado e de seu Estado?

– Se é certo que fomos protagonistas e testemunhas de práticas ético-políticas exemplares, características das origens de nossa trajetória popular, sindical e partidária, o quê nos levou a fechar os olhos, cúmplices, diante de uma sucessão de sinais evidentes de ruptura desses valores, ao ponto de irmos sendo aliciados justamente pela cultura que sempre combatêramos?

– À parte a heroica resistência de pequenos grupos, que terminaram expulsos ou afastando-se do partido, que iniciativas de solidariedade se esboçaram, tanto em relação a ex-companheirxs resistentes quanto a uma cobrança de responsabilidades feita pelas instâncias de base aos dirigentes do partido?

– Qual a atitude autocrítica tomada pelas distintas instâncias do partido? Trataram de chamar os principais responsáveis para uma autoavaliação ou, em vez disso, seguiram com eles afinadas, por mais evidentes que fossem os desatinos cometidos, em série? Neste caso, fazendo ouvidos moucos ao conhecido dito aristotélico: “Amicus Plato, sed magis amica veritas” (“Platão é meu amigo, porém mais amiga é a verdade”)…

– Que posição se tomou em relação aos graves e crescentes sinais de irregularidades político-administrativas? Quem foi punido internamente?

– Qual o papel exercido, nesses conflitos, por intelectuais de referência, inclusive vários ligados à “Igreja na Base”? De contribuírem para uma reflexão autocrítica ou a de quase tudo atribuir à mídia burguesa ou à direita tucana e seus aliados?

– Que posição se tomou, desde a primeira eleição de 2002, frente à famigerada “Carta aos Brasileiros”?

Nas origens de várias dessas organizações, pareciam bem mais claros pontos hoje esquecidos ou desconsiderados. E isto não se expressava apenas no pensamento então dominante, mas também se refletia em suas respectivas práticas, não obstante seus limites. O quê, então, se tinha claro? Refresquemos a memória em torno de alguns deles:

– tinha-se claro que o Estado era (e continua sendo) o braço político do Mercado, ou seja, um dos componentes essenciais do modo de produção capitalista. A depender da conjuntura, até se podia ensaiar nele passos de resistência, mas jamais o assumindo-o como caminho próprio em busca da construção de uma nova sociedade;

– tinha-se claro que a construção de uma nova sociedade era um longo processo, a ser alcançado a longo prazo, mas dando desde já os primeiros passos – de alternatividade à velha ordem;

 

2) Experiências moleculares recentes e em curso, grávidas de alternatividade

Sabemos que não venceremos os impasses que nos cercam, se nos restringirmos a expressar ruidosamente nossas queixas (não raro, apenas  contra agentes externos…) ou se continuarmos a priorizar, de modo quase exclusivo, as questões ditadas pelas agendas oficiais (Executo, Legislativo, etc.). Por essas vias pouco ou nada lograremos. Há necessidade e urgência de cavocarmos outras possibilidades, alternativas a esses rumos e caminhos intra-sistêmicos. Como dizia a personagem José Dolores, do filme “Queimada”, “É melhor saber para onde ir, sem saber como do que saber como e não saber para onde ir.” E nem se trata apenas de reinventar o agir político, estritamente. É claro que nos sentimos no dever histórico de responder à complexidade dos impasses atuais, por outras vias, sim. Mas, não devemos esquecer que nem tudo parte da estaca zero. Entre nós – por vezes, até desconhecidas ou pouco acompanhadas e valorizadas – gestam-se experiências inovadoras, em relação à lógica do sistema imperante. Cada um, cada uma de nós conhece ou já ouviu relatos acerca de tais experiências moleculares, normalmente em curso nas “correntezas subterrâneas”.

3) Buscando e ensaiando pistas mais ousadas de alternatividade, a curto, médio e longo prazos

Impelidos pela convicção de que o atual modelo de organização societal não se presta a remendos intra-sistêmicos, se queremos salvar os humanos e a comunidade dos viventes, reconhecendo e promovendo a dignidade do Planeta, só nos resta ousar buscar e ensaiar pistas de alternatividade, a curto, médio e longo prazos, na perspectiva de construção contínua de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, que se façam em harmonia com o Planeta.

No item precedente, tivemos a oportunidade de oferecer um primeiro ensaio, um aperitivo, por meio de experiências moleculares que apontam nessa direção, a despeito de seus limites. Neste tópico, buscamos ampliar o nosso esforço prospectivo, vislumbrando novas possibilidades, a curto, médio e longo prazos, e de modo incessante, uma vez que deve tratar-se de uma revolução em processo ininterrupto.

  1. A) Por um novo modo de gestão societal

Seguem tendo um lugar de reconhecido io destaque as relações de produção. Em determinados modos de produção ainda mais do que em outros. Isto resulta tanto mais fecundo quanto se tome em conta a necessária interação dinâmica presente entre as diferentes esferas da realidade social. Seria um exercício de mera abstração tomar-se isoladamente qualquer uma das esferas da realidade social – econômica, política e cultural. Nenhuma delas subsiste por si mesma, em si mesma, para si mesma, de forma separada. Entre todas há um inevitável entrelaçamento de relações, sem que isto reduza a importância de nenhuma delas. Ao contrário: fortalece cada uma delas, à medida que se trata uma expressão do próprio movimento da realidade. Não poucos despautérios têm sido cometidos, ao longo da história recente e menos recente, graça a certa tendência, por vezes hegemônica, de se tentar dissociar, no mundo concreto, alguma dessas esferas, inclusive a econômica, uma das outras. O economicismo – de trágicas consequências – é uma das formas assumidas de tal tendência.

Nesse sentido, por uma opção didática de exposição, aqui trato de começar a tecer algumas considerações de caráter enunciativo acerca de um modo alternativo de gestão societal, a partir do seguinte questionamento: que tipo de gestão de sociedade somos historicamente instados a ir construindo, que seja capaz de atender razoavelmente aos interesses, às necessidades (materiais e imateriais), às aspirações, aos desejos do conjunto da sociedade ou, pelo menos, da maioria de seus membros?

Um princípio irrenunciável, quanto a isto, é que o enfrentamento de tal desafio não seja obra de uns poucos pensantes, mas resultado e expressão do sentir, do pensar, do querer e da ação do conjunto – ou, pelo menos, da maioria – dos membros da sociedade, em especial (mas não apenas) do conjunto dos seus produtores e produtoras. Produtores e produtoras, aqui, correspondem tão-só ao conjunto daqueles e daquelas que vivem do seu trabalho, nas mais diferentes áreas e setores da economia. Nesse sentido, cabe ao mesmo conjunto dos membros da sociedade – a partir de suas organizações de base – definir um leque variado de questões, tais como: assegurar espaços de protagonismo de gestão societal, por meio de conselhos autônomos e interconectados com as respectivas instâncias (conselhos mantidos por ambiente de trabalho, por moradia, por ambiente de estudo, etc.); por quem e como serão tomadas as decisões gerais de gestão societal? Assegurada a prerrogativa do conjunto da sociedade, de tomar as decisões de gestão, a que instâncias intermediárias entre o conjunto dos membros e os executores de suas respectivas decisões, caberá concretizar as decisões tomadas? Como isto se fará: por que delegações, com que periodicidade de função, tendo que órgãos societais de controle, com poder inclusive de substituir, por motivos justificáveis, os delegados/delegadas antes do fim do seu mandato? Que mecanismos adotar para evitar-se o continuísmo de delegação, de um lado, e, de outro, para garantir que quem tenha cumprido seu mandato de delegado/delegada, retorne para a base, e quem é da base cumpra seu tempo de delegação, em alguma das instâncias executoras das decisões tomadas pelo conjunto dos membros? Quê formação interessa ao conjunto desses membros? Como será organizado processo formativo, que deverá ser contínuo e a ser cumprido por membros da b ase e delegados e delegadas?

Insistindo em que essas linhas não sejam tom das senão como uma pro-vocação ao desafio de irmos ensaiando passos em direção à construção de uma sociabilidade alternativa à ordem vigente, a curto, médio e longo prazos, reitero o caráter apenas enunciativo, sabidamente parcial, limitado e provisório.

  1. B) Por um novo modo de produção

Os diferentes modos de produção constituem também mostruários de como, a cada mudança de época, os seres humanos aplicaram-se, durante décadas – ou até século -, na busca de superar, ou melhor dito, de irem superando, práticas e mecanismos do sistema produtivo então vigente, nem sempre (ou quase nunca) tendo claros os traços completos do modo de produção “dos seus sonhos”. Em verdade, foram dando passos, foram tateando nessa direção. O que temos como certo é que não se conformaram com o modo de produção dominante. Foram atrás de pistas de alternatividade. Nesse sentido, partiram de pistas orientadoras, de perguntas-chave tais como: quê lugar deve ter o processo produtivo, entre nós, articulado às outras esferas de nossa realidade? Tomando em consideração nossas características geográficas e sócio-econômicas, quais são nossas prioridades de produção? O quê queremos produzir? Que impacto tal plano de produção pode ter para o nosso Planeta? Como vamos pôr em prática nosso processo produtivo? Por que, para que, para quem desejamos produzir?

  1. C) Por um novo modo de consumo

Se antes, em épocas recentes e menos recentes, bastava centrar a atenção apenas no modo de produção, hoje já não mais pode nem deve ser assim. A ideologia do progresso sem limites fez e faz estragos profundos ao Planeta, aos humanos e a toda a comunidade dos viventes. Ideologia que nutriu, desde seus inícios, não apenas os protagonistas do modo de produção capitalista. Também em experiências socialistas, tal ideologia “deitou e rolou”… Hoje, temos mais claros os custos desta tragédia e quem paga a conta desse progresso.

Quando nos damos ao trabalho de analisar a relação (tão cara ao sistema dominante) entre custos e benefícios, nos espantamos com os resultados desse modelo: aquecimento climático, crise hídrica, crise de energia, desflorestamentos, morte de rios e fontes de água, envenenamento de lençóis freáticos, contaminação do subsolo, devastação da biodiversidade, extinção de centenas de espécies vegetais e animais, envenenamento dos vegetais (inclusive da alimenta de humanos e outros animais, multiplicação de doenças daí advindas, etc., etc.

De uma análise desse quadro, não resta dúvida de que, tão importante quanto envidarmos esforço na construção processual de um modo de gestão societal alternativo e de um novo modo de produção, é igualmente assumirmos como urgente um novo modo de consumo. E aqui convém assinalar que para tanto se tornam fundamentais, não apenas os esforços coletivos de gestão, de produção e de consumo, como também resultam indispensáveis e urgentes os esforços também individuais de estilo de vida. Não apenas em relação à nossa responsabilidade pessoal no que tange à manutenção e fortalecimento de certas culturas necrófilas – de acumulação de bens, de desperdício (de água, de alimento, de energia…), de aquisição de supérfluos -, como também de nossa mudança pessoal de estilo de vida. Viver contente com pouca coisa, a exemplo do que fazem tantos povos tradicionais (sem que isto signifique tentativa de copiar sua forma de organização), a exemplo dos cultivadores do “Buen Vivir”. Nesse sentido, a recente encíclica social do Papa Francisco – “Laudato si´” representa um momento privilegiado do pensar/viver alternativo ao modelo vigente. Outro marco referencial a cultivar: a proposta do “Bem Comum da Humanidade”, bem expressa nas palavras de um conferencista, ao defender que:

A quem interessar possa, destaco os principais pontos da intervenção de François Houtart, sociólogo belga, um andarilho das boas causas.

* O pronunciamento se dá em Roma, por ocasião da segunda conferência sobre o Bem Comum da Humanidade.

* A noção de Bem Comum mostra-se importante atualmente por comportar uma leitura holística, capaz de comportar os mais distintos aspectos da realidade, numa visão de conjunto que permite apreender/compreender distintos aspectos da realidade.

* Trata-se de uma leitura de conjunto que busca compreender as relações com a Natureza, a proteção dos bens materiais, o modo de produção, a Democracia, as organizações sociais, políticas  e culturais, pois todos constituem aspectos da mesma realidade.

* Perspectiva que se opõe completamente àda lógica do sistema capitalista que promove uma ampla segmentação, ao separar cada esfera – econômica, social, política, cultural -da realidade

* Sem uma visão integrativa da realidade, fica difícil compreender a importância e o alcance desse novo paradigma anticapitalista e voltado à construção da sociedade pós-capitalista.

* As várias dimensões mencionadas da realidade comportam também os diferentes aspectos próprios do Bem Comum. Todos esses bens são  patrimônio da humanidade, tais como a terra, os mares, as florestas, etc. Eis por que não podemos aceitar que isto seja propriedade privada, porque se trata de Bem Comum da Humanidade.

* Importa reconhecer a primazia do Público, quando se trata dos bens públicos, das fontes de riqueza, dos serviços públicos. A solidariedade é mais importante do que os direitos individuais, Deve ser atendido, primeiro, o interesse comum. Garantido este,  parte-se para o atendimento dos direitos individuais.

* A terceira dimensão do Bem Comum é a Vida: a vida do Planeta, a vida dos seres humanos. Eis o valor fundamental que inspira o novo paradigma.

Eis o “link”:

http://www.youtube.com/watch?v=xT8-qWnKz_U

Um comentário em “Da perplexidade à ousadia de ensaios prospectivos: por uma sociabilidade alternativa”

  1. Rolando Lazarte – Doutor em sociologia (USP). Terapeuta Comunitário. Escritor. Membro do MISC-PB Movimento Integrado de Saúde Comunitária da Paraíba. Autor de "Max Weber: ciência e valores" (São Paulo: Cortez Editora, 2001. Publicado em espanhol pela Editora Homo Sapiens. Buenos Aires, 2005), Mosaico (João Pessoa: Editora da UFPB, 2003), Resurrección, (2009). Vários dos meus livros estão disponíveis on line gratuitamente: https://consciencia.net/mis-libros-on-line-meus-livros/
    Rolando Lazarte disse:

    Como sempre, de maneira consistente e lúcida, o seu texto provoca um reacender da esperança. Esperança que nasce de trabalhos pessoais e comunitários, superando o mero denuncismo e críticas abstratas ao “sistema”.

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