Contubérnio petista

A notícia da recente agressão de Olívio Dutra por assaltante em lotação levou milhares de brasileiros a perguntarem-se o que fazia o ex-governador sulino em um meio de transporte público. A resposta para a compreensível perplexidade é simples. A progressão política do ex-sindicalista jamais causou maiores modificações em sua vida pessoal. Discretamente, ele seguiu morando no mesmo apartamento, veraneando na mesma praia, usando o mesmo meio de transporte. Ao cumprir seus cargos públicos, voltava, sempre, ao mesmo trabalho, no Banrisul.

O comportamento plebeu e republicano foi como uma extensão natural dos valores políticos desse fundador do PT que já se definiu, caçoando das contradições, como marxista e cristão. Não sabemos se, em 1989, ele festejou com alguns martelinhos a mais a eleição à prefeitura de Porto Alegre. Em verdade, o proposta apreço pela bebida, até há alguns anos de caráter exclusivamente popular, foi talvez a grande insídia conservadora lançada contra cidadão de vida irrepreensível. Na sua má fé, ela revelava também o desgosto pela intrusão na alta política sulina de um sindicalista plebeu, que era, entretanto, homem de cultura, de formação institucional.

Em 2002, o senhor Luís Inácio Lula da Silva celebrou sua quase certa eleição, em restaurante paulista excelente, abrindo garrafa de Romanée-Conti, safra 1997. Sentava-se, assim, simbolicamente, à mesa dos mui raros endinheirados capazes de beber um dos mais desejados, prestigiados e caros vinhos franceses. Recentemente, um lote de pouco mais de cem garrafas foi adquirido por mais de seis milhões de reais! O tristemente célebre ex-governador de São Paulo, Paulo Malouf, teria a mais completa coleção desse vinho no Brasil, que certamente bebe agradecendo a todos nós! É bom lembrar que o valor do Romanée-Conti não está no seu gosto esquisito, apreciados apenas pelos paladares mais refinados, mas precisamente no exibicionismo econômico de poder bebê-lo!

Como outros affaires, a discussão em torno do sítio de Atibaia lança uma dupla acusação ao ex-presidente. Em verdade, a primeira, de sentido exclusivamente ético-político, parece não se colocar para o ex-presidente e seu entourage. A indiscutível adesão desbragada a comportamentos burgueses, por parte de tantos dirigentes petistas, ainda que cause hoje preocupação, no passado foi vista como verdadeira qualidade. No caso do ex-metalúrgico, ela seria a comprovação da proposta lulista de construção de economia social de mercado no Brasil.

Seria já uma conquista um ex-operário ter hábitos que eram, antes, privilégio das elites! Um pouco como os pastores evangélicos que afirmam elevar seus crentes na certeza dos favores divinos, ao enricarem vendendo a pele do rebanho incauto. Vivíamos então os tempos em que se recitava a verdade revelada à Veja pelo profeta Joãozinho Trinta: “Quem gosta de miséria é intelectual [de esquerda]! Pobre gosta mesmo de luxo!”

A adesão ao consumismo em sua versão chic constituiu desqualificação dos princípios essenciais do mundo do trabalho e de sua crítica geral à miragem capitalista. Comportamento que acompanhou e sustentou o movimento de rejeição dos valores que estiveram na origem do PT e da CUT, cuja liquidação foi comanda pelos senhores Lula da Silva, José Dirceu e associados. Uma reconstrução social-liberal do PT que exigiu a marginalização de quadros como Olívio Dutra, apesar de sua posição política indiscutivelmente moderada. Porém, em defesa do ex-presidente, temos que reconhecer que ele sempre negou comungar com a ética e os valores plebeus, operários e republicanos. Reiteradas vezes, proclamou que jamais fora socialista ou, mesmo, de esquerda. Recentemente, sem mediações, teria se definido liberal.

Quanto à segunda acusação, dos favores cedidos pelo grande capital a Lula da Silva e tantos outros dirigentes máximos petistas, tem-se repetido, ad nauseam, que não há ilegalidade nesse verdadeiro contubérnio com mega-empreiteiros, espertos lobistas, abastados latifundiários, elegantes doleiros. Que as viagens nos jatinhos, os jantares finos, as conferências e assessorias astronomicamente remuneradas, as reformas de moradias gratuitas, os empréstimos benévolos, as doações eleitorais milionárias não ferem a legalidade. Desde que sejam, se reconhece, totalmente altruístas. Ou seja, que não exijam dos agentes públicos qualquer compensação direta ou indireta, vinculada ou desvinculada, imediata ou deferida no tempo.

Entretanto, nesse caso, a pergunta que não quer se calar é simples: diachos, por que os mais ricos empresários do nosso país disputam-se o privilégio de entupir de recursos e favores de todo tipo os representantes destacados [e comumente seus familiares] de um partido que se define, ao menos no nome, como dos trabalhadores? Ao que sabemos, a defesa dos interesses dos trabalhadores resulta, tradicionalmente, no desemprego, na perseguição, na cadeia e, até mesmo, na morte. Enfim, teria deixado de funcionar a máxima eterna de que “É dando que se recebe”? Ou não haveria verdade na proposta, avançada há pouco, pelo prefeito Haddad, parafraseando o indefectível Milton Friedman que “Não há almoço grátis”?

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