Bolsonaristas: monstros ou palhaços? Reflexões à luz de Hannah Arendt

Por Flavio Goulart

Em 1960 o ex-oficial das SS nazistas, Adolf Eichmann, um dos responsáveis pela “solução final” do regime em relação aos judeus, foi sequestrado em um subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense do Mossad e em seguida levado para Jerusalém, onde foi submetido ao maior julgamento de um nazista após Nuremberg. Porém, ao invés do monstro que todos esperavam, surgiu aos olhos do mundo apenas um simples funcionário do estado nazista, bastante medíocre, preso a clichês burocráticos, incapaz aparentemente de refletir mais profundamente sobre seus atos. É aí que o olhar lúcido da filósofa Hannah Arendt, judia alemã que havia sido perseguida pelo regime de Hitler, revela o que chamou de “banalidade do mal”, associada à capacidade, bancada ou intermediada pelo Estado, de igualar a violência homicida ao mero cumprimento de metas.

Banal por um lado, mas ainda assim uma imensa ameaça às sociedades democráticas. Por alguma razão o bolsonarismo no Brasil de hoje, na sua banalização de atitudes e palavras fora de propósito sobre a pandemia, suas agressões e ameaças à democracia, me parece também bastante explicável pelos conceitos lançados pela filósofa judia. Senão, vejamos.

Eichmann é descrito por Arendt como um homem comum que aparentemente não era capaz de refletir sobre o que fazia, embora ela questionasse como alguém tão comum, banal, um simples carreirista, foi capaz de cometer tantas atrocidades? Não seria preciso ser um monstro para aderir ao nazismo? Como condenar um funcionário público, honesto e obediente, cumpridor de metas, que não fizera mais do que agir conforme a ordem legal vigente naquela época? Daí é que surge o termo “banalidade do mal”, como resultado de uma confluência entre a capacidade destrutiva e a burocratização da vida pública.

Arendt põe foco não apenas em Eichmann, mas também nas lideranças nazistas, as quais, se fracassaram em seus empreendimentos maléficos, isso não fez de Hitler, seu líder máximo, apenas um idiota, assim como a abrangência de tais ações não o colocaria como um grande homem. Para os efeitos presentes, todavia, o foco estará mais na figura do cumpridor de ordens, do militante ou burocrata, membro de um tipo de “gado” que tão bem conhecemos no Brasil de hoje. Arendt não mostrou nenhuma simpatia pela figura de Eichmann, mas enfureceu a comunidade judaica mundial ao declarar que na verdade fora colocada pelos israelenses uma carga simbólica exagerada no episódio, já que o carrasco era, na verdade, apenas uma peça de uma engrenagem muitíssimo maior e que os verdadeiros responsáveis não estavam sendo alcançados, por terem falecido ou simplesmente desaparecido.

Mas para ela, sem dúvida os criminosos políticos, de um lado ou de outro da linha de comando, deveriam ser expostos de todos os modos, e especialmente pelo ridículo, porque seriam não exatamente criminosos políticos, mas executores de grandes crimes desta natureza, o que seriam coisas diferentes.

Em diálogo com Bertold Brecht no início dos anos 50 Arendt argumentou: “não importa o que ele faz, se matou dez milhões de pessoas, ele é ainda um palhaço […] apesar de todos os esforços da promotoria, todo mundo percebia que esse homem não era um ‘monstro’, mas era difícil não desconfiar que fosse um palhaço”.

Quanto ao mal banalizado, segundo Arendt, o mesmo se revelaria quando um membro de uma organização, seja ela política ou empresarial, separa os seus valores éticos individuais do comportamento duvidoso da organização da qual é cúmplice. Ela buscou também destruir certa lenda relativa à grandeza e à força demoníaca do mal, capazes de levar as pessoas comuns a admirar os grandes malfeitores, na medida de serem eles realizadores bem-sucedidos. É lenda persistente, por certo, que se propaga a partir dos anos 20 e 30 na Alemanha e mostra reflexos ainda no Brasil de hoje (ou nos EUA, na Hungria e em outras partes do mundo), com os variados bolsonaros e seus seguidores. Não é por acaso, lembrou ela, que biografias novelescas de grandes malfeitores como Hitler (ou se quisermos, Brilhante Ustra) serem livros de cabeceira dos que fazem parte de tal cortejo.

Arendt foi especialmente profunda na análise dos fenômenos totalitários, se interessando por vários personagens dos mesmos, com maior foco naqueles que se ajustaram prontamente à nova ordem, fossem intelectuais, oportunistas em geral, protagonistas da concepção do regime, num espectro que vai de pequeno-burgueses a sádicos pervertidos. São categorias que de alguma forma estão presentes no Brasil de hoje: aventureiros diversos e mesmo gente de família, vivendo em contexto de crises e dispostos a sacrificar dignidade pessoal em troca de segurança para os seus. Em frase textual dela: “gente que se alinhou ao regime apenas por não possuir uma resposta plausível a uma certa pergunta – por que não?”

Mas tais seguidores de um “mito”, se por um lado causam repulsa, por outro lado chegam a inspirar quase comiseração, como os modos um tanto bizarros de Eichmann, com sua fala permeada de clichês, auto referências, seu modus um tanto alheio ao que realmente interessa, aparentemente até mesmo incapaz de compreender a natureza e a magnitude dos seus atos. O carrasco nazista chegou a dizer perante o tribunal que na verdade deveria ser premiado e não condenado por cumprir seus deveres. Qualquer semelhança com as atitudes do ainda não esquecido Intendente Pazuello não seria mera coincidência, da mesma forma que entre os seguidores do “mito” principal ou dos “sub-mitos” que pululam à sua volta.

Arendt não considerava Eichmann de modo algum um idiota, embora o tratasse às vezes como “palhaço”. Para ela, a razão de ele ter se tornado criminoso, um dos maiores do século, por sinal, tinha como explicação sua irreflexão, ou seja, uma tremenda falta de capacidade de pensar. Isso já havia sido explorado por ela em As Origens do Totalitarismo, como resultado do acesso ao mundo apenas pela força auto coercitiva da ideologia e de uma certa lógica específica. Assim, o que estaria por trás dos atos escabrosos dessa gente é tal impulso de perpetração da maldade, para o que o interesse próprio ou o egoísmo não parecem ser totalmente necessários.

Para Arendt, no entanto, não seria legítimo sustentar que Eichmann represente apenas um tipo de marginal com problemas de caráter, coisa que se poderia também encontrar em pessoas comuns e “normais”. Mesmo ele não sendo propriamente um “monstro” verdadeiro, representaria uma variedade inédita de criminoso, ou seja, um burocrata zeloso que não chegou a sujar suas mãos com o sangue de suas vítimas, sem impedimento de que os crimes dele e de seu grupo sejam, de fato, monstruosos. E ela aponta o dedo, numa afirmativa polêmica: Eichmann e os seus não eram monstros pervertidos, mas “terrível e assustadoramente normais”.

O que é distintivo em Eichmann e gente de seu tipo – e incluo aqui por minha conta:  membros de rebanhos diversos – seria então sua incapacidade em avaliar consequências de seus atos nefastos, mesmo quando considerados, de forma instrumental, como recursos de autopromoção. Haveria nisso um déficit moral, dada a incapacidade deles em avaliar a flagrante desproporção entre a eficiência na sua função e seu reconhecimento público e a destruição gratuita e totalmente contrária mesmo a algum utilitarismo rasteiro. No nazismo, essas pessoas foram incapazes de perceber que seus atos, ainda que compatíveis com a ordem moral, jurídica e social instaurada pelo regime, seriam inadequados a qualquer outro contexto moral, jurídico ou social. A expressão “carreirista” não significava forjar um mega criminoso, mas sim um burocrata eficiente, que poderia ser o típico funcionário-padrão de qualquer empresa ou órgão público, alguém em cujas mãos chegou uma tarefa criminosa a realizar e que não declinou dela. Mais uma vez é preciso lembrar de Pazuello. Eichmann ilustra muito bem este verdadeiro tipo ideal, sendo descrito por Arendt como uma figura comum, normal, sem qualquer virtude específica para além da capacidade de organização e de negociação (“logística”, no modelo atual), além de pouco dotado de inteligência, com convicções ideológicas apenas vagas e precariamente articuladas, vagamente conhecedor de um programa de partido, além do mais movido por um carreirismo adesista, subserviente e pretensioso. Enfim, alguém que aderiu à manada (no caso de Eichmann, a SS) por não possuir uma boa resposta àquela pergunta que não se cala: Por que não? Mas apesar de tudo, alguém que se define como “idealista”, embora totalmente voltado para a mentira e o autoengano.

A banalidade do mal cristalizado na conduta de Eichmann mostra um homem que não possui raízes, motivações egoístas ou mesmo intenções de utilidade em seus feitos. Segundo Arendt, sua superficialidade torna impossível “retratar o mal incontestável de seus atos, em suas raízes e motivos, em quaisquer níveis mais profundos […] os atos eram monstruosos, mas o agente — ao menos aquele que estava em julgamento — era bastante comum, banal, e não demoníaco ou monstruoso” Assim, a tal banalidade do mal residiria em tal incongruência, o que não acarreta que todo mal seja banal, superficial ou que haja um Eichmann em cada um de nós — nem que ninguém seja como ele.

Num diálogo com Arendt cerca de 1946 o filósofo Karl Jaspers disse: “parece-me que temos de ver essas coisas em sua total banalidade, em sua prosaica trivialidade, porque isso é o que verdadeiramente os caracteriza. Bactérias podem causar epidemias que destroem nações, mas elas permanecem meramente bactérias”. Ela parece que aprovou a imagem “infecciosa”, ao descrever posteriormente as ações de Eichmann como algo que “pode proliferar e devastar o mundo inteiro precisamente porque ele se espalha como fungo sobre a superfície”. O momento atual de pandemia torna estas reflexões ainda mais significativas.

Aí está a banalidade do mal, não só na realização de ordens, mas na participação em instituições verdadeiramente milicianas (termo que Arendt não chegou a utilizar diretamente), em ações em que não se pesam as consequências, na transformação humana em mera engrenagem, seguindo um curso que distancia o agente da humanidade, da capacidade de pensar, valorizando apenas a obediência cega, tão valorizada como virtude. Para Eichmann, ela foi a razão da pena capital que recebeu em Israel. E por aqui no Brasil de hoje? Em que tipo de penalização se poderia pensar?

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Creio que tudo isso demonstre a minha suposição de que as considerações de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal se aplicariam diretamente ao terreno do bolsonarismo. Para avançar podemos pinçar alguns tipos ideais em tal grupo. Por exemplo: o próprio presidente e seus filhos, com suas atitudes destemperadas e irracionais; a “ativista” incendiária e boquirrota Sarah Winters; o ignoto indivíduo que agrediu uma enfermeira em manifestação pacífica em frente do Palácio do Planalto, em 2020; o diretor atual da Funarte, aquele que desonra suas origens negras fazendo pouco caso e negando as conquistas de um movimento histórico no Brasil; o General Pazzuelo, famoso negador do inegável; o Ministro da Justiça, que confunde seu cargo com a defesa de interesses pessoais escusos do mandatário. Isso para não falar de outros, muitos outros, paisanos ou fardados, facilmente encontráveis, eis que pululam à luz do dia.

Tal gente se distingue de Eichmann certamente, em parte por não dispor de instrumentos à mão para executar “soluções finais” de qualquer natureza (pelo menos por enquanto), mas também por nem sempre pertencer diretamente à máquina do Estado. Mas não é isso que importa. Há um comportamento bastante evidente de milícia, estatal ou para-estatal, marcado por hierarquia, fidelidade irrestrita aos líderes, truculência, através do qual, como bem traduziu o General Pazuello, o que importa é seguir ordens, sem quaisquer considerações quanto à sua validade, legitimidade ou humanidade, reproduzindo nitidamente o estilo eichmanniano, diga-se de passagem. Trata-se de uma “organização” de fato, complexa embora um tanto difusa, na qual além da fidelidade ideológica grupal ao “Fuhrer”, ao “Duce” ou ao “Mito”, explicitada exaustivamente e renovada de forma permanente, pesa também um componente de cumplicidade inter-pares, por parte de gente que é capaz de fazer qualquer coisa, diante daquela fatídica questão proposta por Arendt: “por que não?”, mesmo que esta não chegue a ser respondida de forma consciente,

Banalização é algo que está hoje tremendamente expandido no Brasil de hoje e é mais uma das marcas desses novos tempos sombrios que se vive no país. Se não nas ações violentas de linchamento real ou virtual de indivíduos dissidentes da norma, conduzidas por grupos em regime miliciano, mas também no desrespeito às leis sanitárias, no trânsito, nas liturgias institucionais, no léxico, ao ponto de já se poder falar em um vernáculo bolsonarista, no qual proliferam expressões de baixíssimo calão, com a marca psicanalítica de fase anal, cabíveis mais apropriadamente nos submundos da sociedade. E isso se tornou constante não exatamente em becos e vielas, mas nas reuniões ministeriais, nas lives presidenciais, nos enfrentamentos (!) com a imprensa ou nos afagos com os militantes agrupados no cercadinho palaciano.

E tal banalização se mostra particularmente exacerbada nas atitudes da família Bolsonaro, como todos nós assistimos estupefatos (se é que alguém ainda se espanta a este grau). A pergunta é: seriam apenas comportamentos exóticos, autênticos, denotadores de uma linguagem poluída e de caserna, exorbitâncias de personalidades impulsivas? Não creio que seja apenas isso. Pressinto a construção de uma teia ou de uma escalada intencional que tem diretriz e rumo: o caos. Ou, se quiserem, a gestação de uma serpente. É assim que as democracias rumam ao brejo onde se atolarão por mais de uma geração, como aconteceu em 1964. Sem querer ser pessimista ou alarmista, os indícios que emanam do atual governo mostram, de fato, um pacto profundo e banalizado com o mal . Isso se revela insistentemente não só no plano do vernáculo, como nas atitudes do presidente e familiares, prontamente replicadas por seus seguidores. Só não percebe quem já está anestesiado. E tome o desdém pelas quase 300 mil mortes (e daí?), o fomento a aglomerações, a humilhação e demissão de ministros, a pregação anti-vacina, a militarização do governo, a cooptação de agentes políticos, a rejeição dos instrumentos da democracia, a prescrição de “tratamentos precoces” etc.

A expressão “gado”, ou alguma assemelhada. como “rebanho” ou “manada”, na verdade não estão presentes no texto de Arendt. Mas é forçoso destacar aqui o que perfaz um verdadeiro “comportamento de rebanho”, como se diz atualmente das hostes bolsonaristas e equiparar isso com o padrão de conduta daqueles burocratas ou mesmo cidadãos comuns, de variadas extrações, que aderem sem críticas e até de forma prazerosa ao projeto totalitário. Suas características estão postas claramente, sem subterfúgios: docilidade às ordens e ao pensamento do líder, sem questionamento, sem nuanças, ponderação ou racionalização, associadas a comportamentos violentos, principalmente quando em espaços coletivos. Está tudo isso nas reflexões de Arendt, faltando somente aquela adjetivação de natureza pecuária – talvez por respeito às vacas…

E para culminar a fatídica expressão: por que não? Ela poderia ser traduzida de outras formas, por exemplo: O que eu teria a perder? E daí? Só levei desvantagem até hoje, agora é a minha vez de ganhar. Funda-se, assim, uma verdadeira ideologia (ou seria uma teo-ideologia) com foco na prosperidade, ou mais diretamente em “levar vantagem”. Trata-se, sem dúvida, de um raciocínio tosco, que na verdade traduz um modo lumpen de ser e de levar a vida. Não se trata apenas de uma categoria econômica, indicada por tal expressão difundida por Marx e Engels, que abarca apenas os desvalidos totais, descamisados e miseráveis em geral, mas vale simbolicamente também para gente incapaz de compreender e refletir sobre a realidade, entre elas: pequenos empresários, pastores e fiéis pentecostais, classe média baixa em geral, profissionais liberais frustrados com o recuo da economia, desempregados e outros excluídos recentes ou crônicos, além de desinformados incuráveis. É com esta gente que se quer fundar o Novo Brasil bolsonarista, por cima de tudo e de todos.

Democracia não é, definitivamente, um valor para essas pessoas

Monstros ou palhaços? Uma coisa e outra, ou mais do que isso. Bolsonaristas constituem uma gente “terrível e assustadoramente normal” com suas conhecidas palavras de ordem: idealismo, patriotismo, anticomunismo, recusa ao politicamente correto, militarização, ódio à esquerda, repúdio aos diferentes, preservação da “ família” dita “normal”, criacionismo, terraplanismo, tratamento precoce, nós contra eles, Deus acima de tudo. Eles são muito perigosos de fato. Precisamos detê-los em sua sanha liberticida.

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Para saber mais:

Fonte: Blog do autor
Foto: Hannah Arendt

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