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Por que o governo deve apoiar a mídia alternativa

Em audiência pública na Comissão de Ciência & Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados, realizada em 12 de dezembro último, o presidente da Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da Comunicação (Altercom), Renato Rovai, defendeu que 30% das verbas publicitárias do governo federal sejam destinadas às pequenas empresas de mídia.
Dirigentes da Altercom também estiveram em audiência com a ministra da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom-PR), Helena Chagas, para tratar da questão da publicidade governamental.
Eles argumentam que o investimento publicitário em veículos de pequenas empresas aquece toda a cadeia produtiva do setor. Quem contrata a pequena empresa de assessoria de imprensa, a pequena agência publicitária, a pequena produtora de vídeo, são os veículos que não estão vinculados aos oligopólios de mídia.
Além disso, ao reivindicar que 30% das verbas publicitárias sejam dirigidas às pequenas empresas de mídia, a Altercom lembra que o tratamento diferenciado já existe para outras atividades, inclusive está previsto na própria lei de licitações (Lei nº 8.666/1993).
Dois exemplos:
1. Na compra de alimentos para a merenda escolar, desde a Lei nº 11.947/2009, no mínimo 30% do valor destinado por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar, do Fundo de Desenvolvimento da Educação, do Ministério da Educação, gestor dessa política, deve ser utilizado na aquisição “de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas”.
2. No Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), destinado ao desenvolvimento da atividade audiovisual, criado pela Lei nº 11.437/2006 e regulamentado pelo Decreto nº 6.299/2007, a distribuição de recursos prevê cota de participação para as regiões onde o setor é mais frágil. Do total de recursos do FSA, 30% precisam ser destinados ao Norte, Nordeste e Centro Oeste. Vale dizer, não se podem destinar todos os recursos apenas aos estados que já estão mais bem estruturados (ver aqui, acesso em 11/1/2013).
A regionalização das verbas oficiais
A reivindicação da Altercom é consequência da aparente alteração do comportamento da Secom-PR em relação à chamada mídia alternativa.
A regionalização constitui diretriz de comunicação da Secom-PR, instituída pelo Decreto n° 4.799/2003 e reiterada pelo Decreto n° 6.555/ 2008, conforme seu art. 2°, X:
“Art. 2º – No desenvolvimento e na execução das ações de comunicação previstas neste Decreto, serão observadas as seguintes diretrizes, de acordo com as características da ação:
“X – Valorização de estratégias de comunicação regionalizada.”
Dentre outros, a regionalização tem como objetivos “diversificar e desconcentrar os investimentos em mídia”.

De fato, seguindo essa orientação a Secom-PR tem ampliado continuamente o número de veículos e de municípios aptos a serem incluídos nos seus planos de mídia. Os quadros abaixo mostram essa evolução.


(Fonte: Núcleo de Mídia da Secom, acesso em 11/1/2013)
Trata-se certamente de uma importante reorientação histórica na alocação dos recursos publicitários oficiais, de vez que o número de municípios potencialmente cobertos pulou de 182, em 2003, para 3.450, em 2011, e o número de veículos de comunicação que podem ser programados subiu de 499 para 8.519, no mesmo período.
Duas observações, todavia, precisam ser feitas.
Primeiro, há de se lembrar que “estar cadastrado” não é a mesma coisa que “ser programado”. Em apresentação que fez na Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf), São Paulo, em 16 de julho de 2009, o ex-secretário executivo da Secom-PR Ottoni Fernandes Júnior, recentemente falecido, citou como exemplo de regionalização campanha publicitária em que chegaram a ser programados 1.220 jornais e 2.593 emissoras de rádio – 64% e 92%, respectivamente, dos veículos cadastrados.
Segundo e, mais importante, levantamento realizado pelo jornal Folha de S. Paulo, a partir de dados da própria Secom-PR, publicado em setembro de 2012, revela que nos primeiros 18 meses de governo Dilma Rousseff (entre janeiro de 2011 e julho de 2012), apesar da distribuição dos investimentos de mídia ter sido feita para mais de 3.000 veículos, 70% do total dos recursos foram destinados a apenas dez grupos empresariais (ver “Globo concentra verba publicitária federal”, CartaCapital, 13/9/2012, acesso em 12/1/2013).
Vale dizer, o aumento no número de veículos programados não corresponde, pelo menos neste período, a uma real descentralização dos recursos. Ao contrário, os investimentos oficiais fortalecem e consolidam os oligopólios do setor em afronta direta ao parágrafo 5º do artigo 220 da Constituição Federal de 1988, que reza:
“Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de oligopólio ou monopólio”.
Democracia em jogo
A mídia alternativa, por óbvio, não tem condições de competir com a grande mídia se aplicados apenas os chamados ?critérios técnicos” de audiência e CPM (custo por mil). A prevalecerem esses critérios, ela estará sufocada financeiramente, no curto prazo.
Trata-se, na verdade, da observância (ou não) dos princípios liberais da pluralidade da diversidade implícitos na Constituição por intermédio do direito universal à liberdade de expressão, condição para a existência de uma opinião pública republicana e democrática.
Se cumpridos esses princípios (muitos ainda não regulamentados), o critério de investimentos publicitários por parte da Secom-PR deve ser “a máxima dispersão da propriedade” (Edwin Baker), isto é, a garantia de que mais vozes sejam ouvidas e participem ativamente do espaço público.
Como diz a Altercom, há justiça em tratar os desiguais de forma desigual e há de se aplicar, nas comunicações, práticas que já vêm sendo adotadas com sucesso em outros setores. Considerada a centralidade social e política da mídia, todavia, o que está em jogo é a própria democracia na qual vivemos.
Não seria essa uma razão suficiente para o governo federal apoiar a mídia alternativa?
(*) Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012-2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros] Matéria reproduzida do Observatório da Imprensa.

Mídia, corrupção e opinião pública

A cobertura homogênea que a grande mídia vem fazendo do julgamento da Ação Penal nº 470 – paralelo ao período de campanha eleitoral – e os resultados das eleições municipais de 2012 recolocam a questão da formação da opinião pública, da percepção que ela tem sobre a corrupção e das consequências políticas dessa percepção, em particular na decisão do voto.

Em artigo anterior, neste Observatório, (“Poder da mídia, contradições e (in)certezas“) – reproduzi resultado e comentário do Ibope sobre pesquisa comparada que registrou as “preocupações dominantes” dos brasileiros nos anos de 1989 e 2010. Diz o comentário:
“Apesar das constantes notícias sobre o assunto, o combate à corrupção também preocupa menos o brasileiro: de 20% passou a ser citada por 15% dos entrevistados.”
Perguntava, então: qual a relação da queda da preocupação do brasileiro com a corrupção e as “constantes notícias” – uma verdadeira campanha de moralidade seletiva e criminalização da política – veiculadas na grande mídia desde 2005?
Ao contrário do que o artigo possa ter sugerido, não há resposta simples para essa questão.
Pesquisas sobre corrupção
O livro Corrupção e Sistema Político no Brasil,organizado pelos professores Leonardo Avritzer e Fernando Filgueiras, do Centro de Referência do Interesse Público (CRIP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), lançado recentemente pela editora Civilização Brasileira, é uma coletânea de análises de resultados de pesquisas nacionais – realizadas em 2006, 2008 e 2009 – que investigam o tema da corrupção em variadas dimensões.
No capítulo escrito pela professora Rachel Meneguello (Unicamp), por exemplo, pesquisa realizada no ano eleitoral de 2006, dentro do ESEB – Estudo Eleitoral Brasileiro coordenado pelo Cesop/Unicamp, chega a conclusões aparentemente divergentes daquelas do Ibope em relação à hierarquia das “preocupações dominantes” dos brasileiros: a corrupção aparece não só como “problema mais importante debatido na eleição de 2006”, como “principal problema político do país” (cf. tabela abaixo).

Por outro lado, em duas pesquisas realizadas pelo CRIP-UFMG junto com o Instituto Vox Populi, em 2008 e 2009, a corrupção é percebida por quase a totalidade da opinião pública como constituindo um problema muito grave ou grave (cf. gráfico abaixo).
Gráfico 1. A gravidade da corrupção (%)

O que as análises indicam, no entanto, é uma “dificuldade” da percepção da opinião pública sobre a corrupção ser transferida para o comportamento eleitoral.
Rachel Meneguello diz explicitamente:
“O que nos intriga é a “independência” entre as percepções sobre a corrupção […], pois ela coloca uma distância entre a ideia de democracia e as noções de transparência e de controle do tráfico de influência. […] Os dados de dezembro de 2006, coletados após a reeleição do presidente Lula, não apenas mostraram que as denúncias de corrupção não foram suficientes para punição do governo, mas, sobretudo, que a avaliação retrospectiva que influencia o voto do eleitor é multidimensional e envolve identificação política, ideologia e avaliação de desempenho do sistema em outras dimensões, como a economia e as políticas de redistribuição de renda. Os dados indicam uma zona nublada, na qual reside um juízo normativo sobre a corrupção que não afeta de forma significativa o comportamento político mais imediato do eleitor ou a avaliação e o apoio ao sistema político. Essa área parece ser o nó entre o impacto da corrupção e as bases da adesão democrática — como diminuir a distância entre a percepção, o juízo moral e a prática política” (pp. 81-82, passim).
A ausência da mídia
Infelizmente, dos nove capítulos do livro, apenas dois enfrentam diretamente a questão central da mídia, não só em relação à formação da opinião pública, como, sobretudo, de sua influência específica nas percepções sobre a corrupção em suas varias dimensões.
No capítulo escrito pela editora de Política do jornal Valor Econômico (grupos Folha e Globo), a jornalista Maria Cristina Fernandes admite que:
“A imprensa é parte da disputa democrática pelo Estado, e a essa serve tanto em benefício de sua explicitação quanto no acobertamento de seus ditames. Há uma lógica jornalística que lhe é própria e nem sempre se encaixa nos pressupostos da teoria vigente. Domina a imprensa uma concepção ainda difusa de defesa da cidadania no âmbito da qual a corrupção aparece como fenômeno difuso e descolado de interesses consolidados e duradouros. Esse descolamento impede não apenas o esclarecimento dos nexos de interesse que dão corpo e materialidade à corrupção, mas também obstrui seu combate efetivo pela sociedade e pelo Estado. Este (capítulo) […] tentará mostrar que o espaço ocupado pelas denúncias tem sido inversamente proporcional à identificação dos interesses em disputa nas campanhas eleitorais. E a hipótese aqui levantada é que essa relação guarda causa e efeito.” (p. 203)
Além disso, ao analisar a Tabela 7 [abaixo] – que só aparece no seu capítulo – Maria Cristina comenta:
Tabela 7. Favorecimento da mídia na apuração de escândalos/2009

“A pesquisa corrobora a tese de que a mídia nem sempre trafega com independência pelos interesses em conflito, mas também questiona a visão de que os meios de comunicação exercem um poder ilimitado sobre os cidadãos. Mais da metade dos entrevistados acredita que a mídia favorece alguém ou algum grupo na divulgação dos escândalos. E essa percepção cresce na medida em que os níveis de renda e escolaridade se elevam. No Sudeste, onde se concentra a sede dos maiores jornais e emissoras de rádio e TV, é maior a crença de que a mídia é injusta e parcial ao cobrir escândalos de corrupção” (p. 217).
Na verdade, são os entrevistados que responderam a essa questão no Centro-Oeste, no Norte e no Sudeste (e não na média nacional) que acreditam que “a mídia favorece alguém ou algum grupo na divulgação dos escândalos”.
De qualquer forma, esse dado combinado com outro que não está no livro, mas publicado no site Contas Abertas quando os resultados da pesquisa CRIP/Vox Populi foram divulgados em março de 2010 (cf. quadro abaixo), compõem um panorama bastante expressivo sobre a percepção da opinião púbica sobre a grande mídia brasileira.
Vale dizer, boa parte da opinião pública não só acredita que “a mídia é injusta e parcial ao cobrir escândalos de corrupção”, como entre 2008 e 2009, houve uma queda de 18% [ou 30% dos entrevistados] no número daqueles que percebiam a mídia como sendo imparcial e subiu em 50% o número daqueles que acreditavam que ela era parcial (de 26% para 39%).
Em sua opinião, a mídia costuma ser mais: 2008 2009
Imparcial 60% 42%
Parcial 26% 39%
Não sabe/não respondeu 14% 19%
Total 100% 100%
Número de entrevistados 2421 2400

Fonte: Relatório de pesquisa de opinião pública – Interesse Público e Corrupção – julho/2008 e julho/2009 – Vox Populi e CRIP
Mídia como obstáculo
O outro capítulo do livro que enfrenta diretamente a questão da mídia foi escrito pelo professor Juarez Guimarães, da UFMG. Propondo uma pesquisa conceitual a partir dos dados empíricos da pesquisa CRIP/Vox Populi, ele identifica duas linguagens distintas de diagnosticar e combater a corrupção: numa predomina a razão liberal e na outra, a razão republicana.
A razão liberal é amplamente hegemônica na cobertura da grande mídia e se articula em torno de três núcleos de ideias: a corrupção dos políticos e do Estado é cada vez maior no Brasil; a base político-econômica dessa expansão da corrupção está no alargamento da intervenção do Estado e de suas funções e empresas; e, a base político-social desse fenômeno caracteriza um neopopulismo, com arranjos corporativos escusos, formação de clientelas, arrivismos nutridos no Erário e até, eventualmente, a formação de uma “nova classe financeira”.
Já a razão republicana, fundada no conceito de formação da República democrática brasileira, se estrutura em torno de três blocos de ideias: reconhece que está em curso um amplo e profundo processo de formação de uma cultura cidadã; idem que está em movimento, ao mesmo tempo, uma macro reestruturação dos fundamentos econômicos e sociais da sociedade civil brasileira e um novo ciclo participativo (…) fazendo a interação entre instituições e movimentos ou representações sociais; e ibidem que está em processo inicial, diferenciado e desigual de formação republicana das instituições e dos procedimentos do Estado brasileiro, instituições exemplificadas na construção da Controladoria-Geral da União (CGU) e suas agendas.
Para Juarez Guimarães, além da ausência de financiamento privado dos partidos nas eleições, o grande obstáculo ao processo de formação republicana no Brasil é o “domínio privatista e oligopolista da mídia que desconecta os processos de formação da cultura cidadã e da opinião pública”.
Afirma ele:
“Tratam-se de cinco fenômenos mutuamente configurados: grave redução do pluralismo político e cultural; supervocalização de alguns interesses privados e subvocalização de vastos setores sociais; deformação sistemática da objetividade da notícia e, inclusive, de uma legitimação da calúnia como instrumento de ação política; e partidarização indevida ou não revelada de canais e de meios de comunicação que deveriam ser públicos. É evidente que esse obstáculo à formação da opinião pública em uma sociedade democrática de vastas população e territorialidade incide sobre a percepção do fenômeno da corrupção, em particular devido à nítida matriz liberal que predomina quase inteiramente na mídia empresarial” (p. 100).
“A corrupção do espaço público”
Na mesma linha do argumento republicano de Juarez Guimarães, o professor João Feres Júnior (IESP-UERJ), em artigo republicado no site do CRIP-UFMG sob o sugestivo título “A grande mídia e a corrupção do espaço público“, alertou recentemente:
“Os órgãos da grande mídia continuam os mesmos, com os mesmos poucos donos, os mesmos editores e colunistas conservadores, os mesmos jornalistas. E esse constitui o principal problema da democracia brasileira atual: a corrupção do espaço público. A grande mídia ainda é responsável em boa medida pela informação da maior parte da população e, dessa maneira, é influente na formação da opinião pública. […] Temos aqui uma tensão estrutural em uma sociedade que é ao mesmo tempo democrática e capitalista. A propriedade privada dos meios de comunicação, particularmente em seu formato oligopolizado, conduz à usurpação do espaço público em prol dos interesses dos poucos grupos que detém os meios. Na prática, os proprietários tem poder de veto e de agenda sobre tudo o que é informado ao público. […] A corrupção do espaço público é o calcanhar de Aquiles da democracia brasileira, e esse é um calcanhar enfraquecido, luxado, distendido. Sem um sistema de informação plural e responsável não teremos uma formação saudável da opinião pública. Sem uma opinião pública bem informada como poderemos esperar o aprimoramento das instituições, o avanço das questões normativas que se colocam constantemente perante uma sociedade democrática (proibição do porte de armas, aborto, eutanásia, bioética etc.) e mesmo a eleição de melhores quadros de representantes?”
Diante de todos esses dados e análises – alguns, aparentemente contraditórios – e para além dos efeitos de curto prazo identificados (ou não) nos processos eleitorais, é inegável que a grande mídia desempenha um papel de longo prazo na formação da opinião pública, incluindo, por óbvio, a percepção sobre a corrupção.
O que está de facto em jogo, no entanto, é “a corrupção do espaço público” como obstáculo central à construção de uma democracia republicana. Ela não será possível sem que se criem as condições estruturais necessárias para a formação de uma opinião pública democrática, plural e diversa. Vale dizer, para que mais vozes sejam ouvidas e participem do espaço público através da universalização da liberdade de expressão.
A ver.
(*) Reprodução da página da revista Fórum. Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012/2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros]

Pontos dos Princípios reforçam dúvidas

A credibilidade passou a ser um elemento absolutamente crítico no “mercado” da notícia. O monopólio dos velhos formadores de opinião não existe mais. Não é sem razão que as curvas de audiência e leitura da velha mídia estejam em queda e o “negócio”, no seu formato atual, ameaçado de sobrevivência.
Na contemporaneidade, são muitas as fontes de informação disponíveis para o cidadão comum e as TICs ampliaram de forma exponencial as possibilidades de checagem daquilo que está sendo noticiado. Sem credibilidade, a tendência é que os veículos se isolem e “falem”, cada vez mais, apenas para o segmento da população que compartilha previamente de suas posições editoriais e busca confirmação diária para elas, independentemente dos fatos.
O escândalo do News of the World explicitou formas criminosas de atuação de um dos maiores conglomerados de mídia do mundo, destruiu sua credibilidade e levantou a suspeita de que não é só o grupo de Murdoch que pratica esse tipo de “jornalismo”. Além disso, a celebrada autorregulamentação existente na Inglaterra – por mais que o fato desagrade aos liberais nativos – comprovou sua total ineficácia. As repercussões de tudo isso começam a aparecer. Inclusive na Terra de Santa Cruz.
Os Princípios da Globo
No Brasil ainda não existe sequer autorregulamentação e as Organizações Globo, o maior grupo de mídia do país, não tem um único ombudsman em suas dezenas de veículos para acolher sugestões e críticas de seus “consumidores”. Neste contexto, a divulgação de princípios editoriais – sejam eles quais forem – é uma referência do próprio grupo em relação à qual seu jornalismo pode ser avaliado. Não deixa de ser um avanço.
A questão, todavia, é que o histórico da Globo não credencia os Princípios divulgados. Em diferentes ocasiões, ao longo dos últimos anos, coberturas tendenciosas que se tornaram clássicas foram documentadas. E alguns pontos reafirmados e/ou ausentes dos Princípios agora divulgados reforçam dúvidas. Lembro dois: a presunção de inocência e as liberdades “absolutas”.
Presunção de inocência
O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, adotado pela FENAJ, acolhe uma garantia constitucional (inciso LVII do artigo 5º) que tem origem na Revolução Francesa e reza em seu artigo 9º: “a presunção de inocência é um dos fundamentos da atividade jornalística”.
Não é necessário lembrar que o poder da velha mídia continua avassalador quando atinge a esfera da vida privada, a reputação das pessoas, seu capital simbólico. Alguém acusado e “condenado” pela mídia por um crime que não cometeu dificilmente se recupera. Os efeitos são devastadores. Não há indenização que pague ou corrija os danos causados. Apesar disso, a ausência da presunção de inocência tem sido uma das características da cobertura política das Organizações Globo.
Um exemplo: no auge da disputa eleitoral de 2006, diante da defesa que o PT fez de filiados seus que apareceram como suspeitos no escândalo chamado de “sanguessugas”, o jornal O Globo publicou um box de “Opinião” sob o título “Coerência” (12/8/2006, Caderno A pp.3/4) no qual afirmava:
“Não se pode acusar o PT de incoerência: se o partido protege mensaleiros, também acolhe sanguessugas. Sempre com o argumento maroto de que é preciso esperar o julgamento final. Maroto porque o julgamento político e ético não se confunde com o veredicto da Justiça. (…) Na verdade, a esperança do PT, e de outros partidos com postura idêntica, é que mensaleiros e sanguessugas sejam salvos pela lerdeza corporativista do Congresso e por chicanas jurídicas. Simples assim.”
Em outras palavras, para O Globo, a presunção de inocência é uma garantia que só existe no Judiciário. A mídia pode denunciar, julgar e condenar. Não há nada sobre presunção de inocência nos Princípios agora divulgados.
Aparentemente, a postura editorial de 2006 continua a prevalecer nas Organizações Globo.
Liberdades absolutas?
Para as Organizações Globo a liberdade de expressão é um valor absoluto (Seção I, letra h) e “a liberdade de informar nunca pode ser considerada excessiva” (Seção III).
Sem polemizar aqui sobre a diferença entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa – que não é mencionada sequer uma única vez nos Princípios – lembro que nem mesmo John Stuart Mill considerava a liberdade de expressão absoluta. Ela, como, aliás, todas as liberdades, têm como limite a liberdade do outro.
Em relação à liberdade de informar, não foi exatamente o fato de “nunca considerá-la excessiva” que levou a News Corporation a violar a intimidade e a privacidade alheia e a cometer os crimes que cometeu?
O futuro dirá
Se haverá ou não alterações na prática jornalística “global”, só o tempo dirá. Ao que parece, as ressonâncias do escândalo envolvendo o grupo midiático do todo poderoso Rupert Murdoch e a incrível capilaridade social da blogosfera, inclusive entre nós, já atingiram o maior grupo de mídia brasileiro.
[Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, Poder e Direitos; Editora Paulus, 2011]

News of the World, o poder do medo

De tudo que foi escrito nos últimos dias sobre a atividade criminosa doNews of the World, quem parece ter levantado a questão de fundo foi Timothy Garton Ash – professor de estudos europeus da universidade de Oxford (Reino Unido) e fellow da universidade de Stanford (EUA).
Em artigo originalmente publicado no The Globe and Mail (14/7, ver aqui) e republicado na edição de domingo (17/7) do Estado de S.Paulo sob o sugestivo título de “O medo que não ousava dizer o nome”, Ash afirma:
“a debacle de Murdoch revela uma doença que vem obstruindo lentamente o coração do Estado britânico nos últimos 30 anos. (…) A causa fundamental dessa doença britânica tem sido o poder exacerbado, implacável e fora de controle da mídia; seu principal sintoma é o medo. (…) Se a medida final de poder relativo é “quem tem mais medo de quem”, então seria o caso de dizer que Murdoch foi – no sentido estrito, básico – mais poderoso que os últimos três premiês da Grã-Bretanha. Eles tinham mais medo dele do que ele deles”(íntegra aqui).
Será que o diagnóstico de Ash sobre “o poder exacerbado, implacável e fora de controle da mídia” no berço da liberdade de expressão se aplicaria a outras democracias contemporâneas?
O conglomerado da News Corporation
Reproduzo parte de matéria da Agence France Presse sobre o conglomerado midiático do qual o tablóide News of the World fazia parte:
O News Corp. é um império midiático e de entretenimento construído por seu fundador, Rupert Murdoch. Cobrindo uma enorme região geográfica, cotado em bolsa em Sydney e Nova York, o grupo se distingue também pela diversidade de suas atividades, que vai da TV aos jornais, do cinema à internet, e conta também com ícones da imprensa conservadora como The Times e Wall Street Journal, e tabloides sensacionalistas como News of the World e New York Post. À frente do conglomerado, Rupert Murdoch, 80 anos, seu presidente-executivo e “self made man” nascido na Austrália, mantém as rédeas de um império de US$ 60 bilhões em ativos e um volume de negócios anual de US$ 33 bilhões no exercício encerrado no fim de junho. (…) Na Inglaterra, adquiriu primeiramente o News of the World e depois o The Sun, o tabloide mais popular da atualidade, o tradicional The Times e o Sunday Times. Também possui, entre outros 175 títulos, o The Australian e o The New York Post. Nos Estados Unidos, país onde reside e do qual se tornou cidadão, sua cadeia de notícias a cabo Fox News, que durante a invasão ao Iraque bateu a pioneira CNN em audiência, jamais ocultou seu apoio ao governo do republicano George W. Bush. Além da cadeia Fox, o grupo News Corp. impôs-se na televisão a cabo na Europa (BSkyB na Grã-Bretanha ou Sky na Itália, nascida da fusão Stream/Telepiu) e também na Ásia, com sua filial Star TV. Murdoch também tem interesses no mundo editorial (HarperCollins) e no cinema, com os estúdios Twentieth Century Fox, que produziu êxitos mundiais como Guerra nas Estrelas e Titanic. (…) Em 2007, um dos maiores êxitos do grupo foi a compra da Dow Jones e do Wall Street Journal, por um total de US$ 5,6 bilhões” (íntegra aqui).
No Brasil, a prática política do grupo News Corporation tornou-se mais conhecida pela repercussão das declarações da diretora de Comunicações da Casa Branca, Annita Dunn, que afirmou em outubro de 2009:
“…a rede Fox News opera, praticamente, ou como o setor de pesquisas ou como o setor de comunicações do Partido Republicano. (…) A rede Fox está em guerra contra Barack Obama e a Casa Branca, [e] não precisamos fingir que o modo como essa organização trabalha seria o modo que dá legitimidade ao trabalho jornalístico. (…) Quando o presidente [Barack Obama] fala à Fox, já sabe que não falará à imprensa, propriamente dita. O presidente já sabe que estará como num debate com o partido da oposição” (ver, neste Observatório,“A mídia como partido político“).
Hoje conhecemos o News Corporation através dos filmes da 20th Century Fox e pelos canais Fox da televisão paga: Fox News, Fox Movie, FOX Sports, Nat Geo Wild, National Geographic, dentre outros.
De onde vem o poder?
Além de tratar-se de um conglomerado econômico, fonte natural de poder, o News Corporation se utiliza de outras armas.
Apesar de todas as mudanças tecnológicas e das enormes transformações provocadas pela internet, sobretudo com relação aos formadores de opinião tradicionais, o poder da velha mídia continua avassalador quando atinge a esfera da vida privada. Essa é a base dos chamados “escândalos políticos midiáticos” que atingem a reputação das pessoas, seu capital simbólico.
Alguém acusado e “condenado” publicamente por um crime que não cometeu dificilmente se recupera. Os efeitos são devastadores. Não há indenização que pague ou corrija os danos causados por um “julgamento” equivocado da mídia.
Esse é exatamente o terreno fértil onde o medo – vale dizer, o poder da mídia sobre o cidadão – é cultivado. É o terreno preferido do “jornalismo” praticado pelos tabloides britânicos: a vida privada de figuras públicas – políticos e celebridades – mas também de pessoas comuns que alcançaram algum tipo de notoriedade negativa – por exemplo, por terem sido vítimas de um crime hediondo.
E quando esse “jornalismo”, na ganância por mais e maiores lucros, se utiliza de recursos criminosos de invasão da privacidade, como a escuta telefônica? Desaparecem todos os limites éticos.
Foi isso o que aconteceu com o News of the World.
Para impedir o poder do medo
O caso do News of the World ainda não terminou. Não se sabe se a prática “jornalística” criminosa se limitava ao tabloide inglês ou se estendia a outros veículos do News Corporation na Inglaterra e/ou em outros países.
De qualquer maneira, há lições que podem e devem ser tiradas do episódio para que se elimine a existência de condições favoráveis ao “poder do medo”.
Nesses tempos em que o debate sobre um marco regulatório para a mídia brasileira, mais uma vez, não consegue avançar, duas lições me parecem claras.
** Primeiro: conglomerados empresariais midiáticos se sentem em condições de fazer o que quiserem. Eles se tornam tão poderosos que se desobrigam de cumprir as normas legais e éticas que anunciam defender. É, portanto, indispensável que se controle a propriedade cruzada e as condições de criação e manutenção das redes de radiodifusão, fonte principal da concentração da propriedade dos grupos midiáticos.
** Segundo: a Press Complaints Commission (PCC), órgão independente e autorregulatório que fiscaliza o conteúdo editorial de jornais e revistas no Reino Unido, foi colocada em questão. O premiê David Cameron a classificou de ausente e ineficiente econcordou que algo precisa mudar no que diz respeito ao controle sobre as ações da mídia, ressaltando que é preciso um novo órgão e um novo sistema regulatório (ver, neste OI, “Imprensa britânica debate sistema regulatório“).
Um dos atuais membros da PCC – que deveria ter fiscalizado o “jornalismo” do News of the World – é Ian MacGregor, ele próprio, editor do The Sunday Telegraph, um dos jornais que pertencem ao grupo News Corporation (ver aqui).
Como já é sabido, a autorregulação é bem vinda mas, por óbvio, insuficiente. A regulação através de legislação própria aprovada no parlamento é indispensável.
A ver.
(*) Venício A. de Lima é professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011. Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa.

A guerra anunciada

Salvo por uma matéria traduzida da The Economist, publicada na Carta Capital nº 639, a grande mídia brasileira optou por não noticiar a briga de gigantes deflagrada no México, nos últimos dias.
E por que interessaria ao público brasileiro o que ocorre no México? Quando nada, um dos gigantes envolvidos é sócio (alguns dizem, majoritário) da maior operadora de televisão paga do Brasil: a NET, ligada às Organizações Globo. Ademais, o que está acontecendo ao norte do Equador pode perfeitamente vir a acontecer também ao sul, vale dizer, aqui mesmo entre nós.
Monopólio vs. monopólio

As operações de telefonia e televisão no México são praticamente monopolizadas por dois grandes grupos.
Cerca de 80% das linhas de telefonia fixa estão conectadas à Telmex – a mesma empresa que é sócia da NET – e 70% do mercado de telefonia móvel (celular) são controlados pela Telcel, outra empresa do mesmo grupo – ambas de Carlos Slim, o homem mais rico do planeta.
Por outro lado, o grupo Televisa, do empresário Emilio Azcárraga, controla cerca de 70% da audiência da televisão aberta. O que sobra, em boa parte, está sob controle da TV Azteca, comandada por Ricardo Salinas, outro magnata mexicano.
Os grupos conviviam em relativa harmonia, cada um com seu respectivo “mercado”. Agora, diante da convergência tecnológica, resolveram se enfrentar abertamente.
Um grupo de 25 empresas de telecomunicações, incluídas a Cablevisión (propriedade do Grupo Televisa) e Iusacell (do Grupo Salinas, da TV Azteca), entrou com uma ação na Comissão Federal de Competição (Cofeco, equivalente ao nosso Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade, do Ministério da Justiça) contra o alto custo das tarifas de interconexão cobradas pela Telcel. Ao mesmo tempo, a Telmex apresentou quatro denúncias contra a Televisa, a Televisión Azteca, a Cablesivion, a Megacable, a Cablemas, a Television Internacional e a Yoo por “práticas de monopólio e correlatos”.
As ações legais vieram acompanhadas de anúncios de página inteira nos jornais parceiros da Televisa denunciando o “monopólio caro e ruim” da indústria de telecomunicações, enquanto Carlos Slim retirava os anúncios de suas empresas – cerca de 70 milhões de dólares anuais – dos canais da Televisa. Em represália e solidariedade à Televisa, a TV Azteca passou a recusar os anúncios do Grupo Telmex.
Disputa de mercado

O que está em jogo, por óbvio, é o controle do mercado convergente de telefonia e televisão. Como explica didaticamente a matéria da The Economist:
“A tecnologia transformou os negócios de telefonia e televisão em um único mercado: a televisão hoje inclui telefone e internet em seu serviço de TV a cabo, e quer adicionar telefones celulares. Salinas, que também controla uma empresa de celulares, a Iusacell, lançou um pacote semelhante em 2010. Slim deseja usar seus cabos de telefonia para distribuir TV paga (setor em que se tornou o maior ator no resto da América Latina), mas o governo não quer permitir.
“Agora os bilionários pedem o tipo de reforma da concorrência de que suas respectivas indústrias precisavam há muito tempo. Os magnatas da TV querem que Slim reduza o valor cobrado quando, um telefone rival liga para um celular Telcel (a agência reguladora das teles do México lhe disse para reduzir algumas taxas). A atual tarifa de interconexão é 43,5% acima da média da maioria dos países ricos da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Isso torna impossível que outras operadoras ofereçam tarifas competitivas. A Comissão Federal de Concorrência (CFC) do México diz que os consumidores se beneficiariam de 6 bilhões de dólares por ano se as taxas de conexão se equiparassem à média da OCDE. A CFC recomenda deixar Slim concorrer na televisão quando tiver relaxado seu poder no setor de telefonia. Se a Telmex entrasse no mercado de tevê paga, o aumento da concorrência colocaria os preços ao alcance de mais 3,8 milhões de residências, admite a CFC.”
E no Brasil?

A situação brasileira é diferente da mexicana, mas a briga entre teles e radiodifusores tradicionais ocorre também aqui. O locus dessa disputa, desde 2007, tem sido o projeto de lei que tramita no Congresso Nacional e “abre o setor de TV por assinatura para as teles, cria a separação de mercado entre produtores de conteúdo e empresas de distribuição e ainda cria cotas de programação nacional nos pacotes de canais pagos”, além de revogar a Lei do Cabo de 1995.
Na sua versão atual o projeto – PLC 116 do Senado Federal – é o resultado da articulação inicial de três propostas representando grupos e interesses distintos: o PL 29/2007 representa as empresas de telefonia; o PL 70/2007 representa os radiodifusores; e o PL 323/2007 situa-se em posição intermediária entre os interesses dos dois setores. Aprovado em junho de 2010 na Câmara dos Deputados, até hoje tramita no Senado Federal.
Será que teremos aqui uma versão explícita da briga entre teles e radiodifusores como ocorre no México?
A ver.
(*) Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa.

Comunicação e cultura em Paulo Freire: 30 anos depois

Visitando a trabalho o sul da Índia, estado de Tamilnadu, no início de 2010, o professor de física da Universidade de Brasília, Amílcar Rabelo de Queiroz, deparou-se com uma situação reveladora. Em viagem para a região de Thanjavur conheceu um vilarejo pobre – Pattukkotta – que vive basicamente da pequena agricultura. Lá visitou uma escola de educação fundamental. Para facilitar sua apresentação e criar um clima amistoso, os colegas do Institute of Mathematical Sciences (IMSC), que com ele viajavam, informam aos professores da escola que Amílcar era brasileiro, da terra de Pelé. “Brasil? Pelé?”. Repetem várias vezes. De repente, um deles sorri e exclama: “ah, ah, Brasil, claro, terra de Freire, Paulo Freire!” E alcança na estante vários livros de um dos nossos maiores educadores, traduzido, estudado e reconhecido em todo o mundo.
Paulo Freire faleceu há quase 14 anos, em maio de 1997. Se estivesse vivo, completaria noventa anos em setembro. Sua obra, seu pensamento e sua ação deixaram marcas profundas em vários campos do conhecimento. Seu único ensaio especificamente sobre comunicação – Extensão ou Comunicação? – foi escrito no exílio chileno, em 1968, e publicado pela Editora Paz e Terra, no Brasil, em 1971.
Tenho afirmado recorrentemente que as reflexões de Freire sobre comunicação nunca estiveram tão atuais. [cf. nesta Carta Maior “Paulo Freire, direito à comunicação e PNDH3”].
Direito à comunicação
A necessidade de construção e positivação de um direito à comunicação foi identificada há mais de 40 anos pelo francês Jean D’Arcy, quando diretor de serviços audiovisuais e de rádio do Departamento de Informações Públicas das Nações Unidas, em 1969. Naquela época ele afirmava:
Virá o tempo em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos terá de abarcar um direito mais amplo que o direito humano à informação, estabelecido pela primeira vez 21 anos atrás no Artigo 19. Trata-se do direito do homem de se comunicar.
A proposta de D’Arcy, na verdade, assumia e consagrava uma perspectiva “dialógica” da comunicação que já havia sido elaborada, do ponto de vista conceitual, por Paulo Freire no ensaio “Extensão ou comunicação”?
Freire recorre à raiz semântica da palavra comunicação e nela inclui a dimensão política da igualdade, a ausência de dominação. Para ele, comunicação implica um diálogo entre sujeitos mediados pelo objeto de conhecimento que por sua vez decorre da experiência e do trabalho cotidiano. Ao restringir a comunicação a uma relação entre sujeitos, necessariamente iguais, toda “relação de poder” fica excluída. O próprio conhecimento gerado pelo diálogo comunicativo só será verdadeiro e autêntico quando comprometido com a justiça e a transformação social. A comunicação passa a ser, portanto, por definição, dialógica, vale dizer, de “mão dupla”, contemplando, ao mesmo tempo, o direito de ser informado e o direito de acesso aos meios necessários à plena liberdade de expressão.
Como se vê, Freire teoriza a comunicação interativa antes da revolução digital, vale dizer, antes da internet e de suas redes sociais. No nosso tempo, quando as novas tecnologias [TICs] rompem com a unidirecionalidade da comunicação “de massa” tradicional, o conceito de comunicação relacional e transformadora oferece uma referencia normativa revitalizada e desafiadora.
História das idéias
Ao reafirmar a atualidade do pensamento de Paulo Freire, especificamente para o campo da comunicação, tomo a liberdade de registrar os trinta anos de “Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire”, publicado pela Paz e Terra, em março de 1981 (2ª. edição 1984). O livro é uma adaptação de tese de doutorado defendida em agosto de 1979.
Na verdade, o argumento central sobre a importância de Freire para o estudo da comunicação já havia aparecido em artigo anterior que publiquei, com Clifford Christians, na revista inglesa Communication (vol. 4, n. 1, 1979) sob o título “Paulo Freire: the political dimension of dialogic communication”, traduzido e publicado em português pela revista Síntese (vol. VI, n. 16, maio/agosto de 1979).
A história das idéias nos diferentes campos do conhecimento – inclusive na Comunicação – muitas vezes contém omissões, deliberadas ou não, ao deixar de registrar contribuições feitas por autores que, por diferentes razões, não se situam no seu “mainstream” ou não se alinham aos grupos dominantes na academia. Daí, às vezes, a necessidade de auto-registros isolados como esse.
Hoje, a contribuição de Paulo Freire para o campo da comunicação é fonte de inspiração e referência. A situação, certamente, não era a mesma no final da década de 70 do século passado. Embora reconhecido internacionalmente e estudado em várias disciplinas – filosofia, sociologia, serviço social, religião, história – seu pensamento era quase que totalmente ignorado nos estudos de comunicação, inclusive na sua terra, o Brasil.
A incrível história do prof. Amílcar na Índia, de que só agora tomei conhecimento, serviu de mote para que fizesse, então, esse duplo registro: a permanente atualidade do pensamento do educador brasileiro e os trinta anos do Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire.
(*) Artigo publicado originalmente na Carta Maior.

Ministério das Comunicações: por onde começar?

Além do discurso de posse, o ex-deputado e ex-ministro do Planejamento Paulo Bernardo (PT-PR) deu várias entrevistas ao longo de seus primeiros dias como novo ministro das Comunicações. As interpretações de suas falas e compromissos variaram de acordo com o interesse dos entrevistadores.
Dois exemplos: a Folha de S.Paulo [7/1] destacou em manchete de capa “Ministro defende proibição de que políticos tenham TV“. Já o Estado de S.Paulo [8/1] considerou mais relevante “enterrar” um plano que, se existe, ainda não foi sequer divulgado: “Bernardo enterra plano de regulação da mídia“.
De concreto, até agora, parece que o ministro está reunindo no ministério iniciativas e pessoas que estavam dispersas em diferentes setores do governo Lula e expressavam divergências internas em relação ao rumo de políticas públicas do setor: os programas de inclusão digital, o plano nacional de banda larga e o marco regulatório para as comunicações eletrônicas, por exemplo. Há muita coisa pela frente.
Arrisco sugerir ao novo ministro que, na radiodifusão, comece com uma providência básica: o recadastramento dos concessionários e o acesso público ao cadastro geral que venha a emergir deste recadastramento [ver, neste Observatório, “O direito à informação pública” e “Onde está a informação oficial?“].
“Terra de ninguém”: o exemplo do DF


Um bom local para começar o recadastramento seria o próprio Distrito Federal, bem ao redor da sede física do Ministério das Comunicações.
Em três matérias de capa consecutivas no seu caderno “Cidades” (dias 6, 7 e 8 de janeiro) o Correio Braziliense fez uma denúncia grave que envolve o suplente do ex-governador e senador relâmpago Joaquim Roriz (cinco meses), Gim Argello (PTB-DF), no exercício do cargo desde a renúncia do titular.
Segundo o jornal, o senador Argello, por intermédio de seu filho, estaria no controle, como arrendatário (?), da Rádio Nativa FM, desde abril de 2009. Além de beneficiária indevida de recursos públicos oriundos de emendas ao Orçamento da União, a emissora FM estaria também promovendo distribuição de prêmios a ouvintes fantasmas.
As matérias do Correio, no entanto, deixam de fazer um histórico sobre a Rádio Nativa, suponho que pela dificuldade de acesso aos dados.
Com alguma dose de paciência o interessado encontrará fragmentadas em diferentes sites da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) informações que revelam: a Rádio Nativa FM é a antiga Rádio OK FM cuja concessionária é a “Brasília Comunicação Ltda”. Ainda está lá que os diretores são Lino Martins Pinto – fundador do Grupo OK, falecido em 2007 e pai de criação do ex-senador Luiz Estevão – o outro diretor e, de fato, proprietário da empresa.
Como se sabe, Luiz Estevão (PMDB-DF), com mandato entre 1988 e 2000, o único senador cassado pelo Senado Federal, foi acusado de envolvimento no desvio de R$ 169 milhões nas obras do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo.
O mais intrigante, todavia, é que a antiga Rádio OK FM – hoje Nativa FM –, segundo os dados da Anatel [consultados aqui, em 9/1/2011], está com a concessão vencida desde o dia 12 de junho de 2001. Seu funcionamento é, portanto, irregular.
MiniCom e Conselhos


As várias irregularidades denunciadas em relação à Radio Nativa FM – não por acaso, envolvendo um ex-senador e um senador da República – são apenas um exemplo do tipo de coronelismo eletrônico que ainda prevalece na radiodifusão do país.
Há poucos meses, aqui mesmo no Observatório e ainda em relação a Brasília, tentamos desvendar a real situação das emissoras de rádio e televisão controladas por outro político, o ex-vice governador e governador Paulo Octávio, que renunciou por ocasião do escândalo conhecido como Caixa de Pandora [ver “A terra de ninguém” e “Sobre a cartografia da terra de ninguém“].
A posse do novo ministro das Comunicações alimenta a expectativa de que, ao lado de outras prioridades, o caos generalizado nas concessões e as relações espúrias entre políticos no exercício do mandato e o serviço público de radiodifusão serão enfrentados.
O recadastramento seria um excelente começo.
Por outro lado, a posse de novos governadores nos estados brasileiros recoloca em pauta a criação dos Conselhos de Comunicação Social. O debate do tema certamente deve começar pelos estados onde esses conselhos já estão previstos nas respectivas Constituições e/ou Leis Orgânicas.
No Distrito Federal, ganha corpo um movimento para que seja regulamentado o Artigo 261 da Lei Orgânica, aprovada em 1993, que prevê a criação do Conselho de Comunicação Social do DF.
Uma das funções desses conselhos seria colaborar na fiscalização do cumprimento das leis por parte dos concessionários locais do serviço público de radiodifusão.
Talvez assim, e com o acompanhamento efetivo do MiniCom, a vigilância organizada da cidadania pudesse evitar a continuidade de situações absurdas como as acima descritas.
(*) Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa

Por que a mídia não se autoavalia?

Final de ano é tempo de balanços e previsões. Pessoais e institucionais. É momento de parar e refletir sobre o que se fez, identificar erros e acertos, corrigir o que pode ser melhorado, reavaliar caminhos e objetivos, planejar o futuro.
A grande mídia faz avaliações públicas e previsões de e para tudo: de todos os setores do governo, da iniciativa privada, das ONGs, da política, de todas as artes, esportes, religiões, do clima, das tendências… Por óbvio, a grande mídia faz avaliações e previsões internas, como em todas as empresas privadas comerciais que precisam dar conta a acionistas de metas e resultados.
O que a grande mídia não faz são avaliações públicas de si mesma, de seu próprio desempenho, de sua parcialidade, de seus preconceitos, de suas tendências, de suas omissões, de suas escolhas, de seu papel na democracia. O que a grande mídia omite é a avaliação de si mesma como um serviço que, apesar de explorado pela iniciativa privada, não perde sua natureza de serviço público.
Por que será que a mídia, apesar da indiscutível posição de centralidade que ocupa nas sociedades contemporâneas, não pauta o debate sobre seu papel como faz permanentemente em relação a todas as outras instituições na sociedade?
Adaptação do panem et circenses
A explicação da grande mídia será sempre aquela que atribui ao mercado o papel de seu único e supremo avaliador. A grande mídia dirá que é permanentemente avaliada por seus consumidores/leitores/ouvintes/telespectadores e que seu sucesso ou fracasso comercial significa o cumprimento ou não de sua missão e o atendimento ou não das necessidades de seu “público”. Se o jornal é comprado por X consumidores é porque satisfaz a eles. E essa é a melhor avaliação que pode existir. Essa é uma das versões da conhecida “teoria do controle remoto”: se o consumidor não gosta do que vê, ele pode trocar de canal ou desligar o aparelho de TV.
Como já argumentei em outra oportunidade [ver “Donos da mídia – A falácia dos argumentos”], a “teoria do controle remoto” ignora como se formam, se desenvolvem e se consolidam os hábitos culturais, incluindo aqui o hábito de assistir determinados canais e/ou programas de TV ou de ler determinadas revistas e/ou jornais. Este é um fascinante campo da complexa “sociologia do gosto”. Quando se atribui, sem mais, ao mercado o papel de supremo avaliador, reduz-se toda a problemática da comunicação de massa a uma única dimensão – do “consumo” individual – e ignora-se a complexa questão da formação social do gosto e do papel determinante que a própria mídia nela desempenha.
Além disso, o argumento pressupõe um mercado de mídia democratizado, onde estariam representadas a pluralidade e a diversidade da sociedade, o que, por óbvio, não existe. Ignora ainda o fato elementar de que não se pode gostar ou deixar de gostar daquilo que não se conhece ou cujas chances de se conhecer são extremamente reduzidas.
No fundo, trata-se de uma adaptação contemporânea [sem as problematizações levantadas por historiadores como Renata Garraffoni] do panem et circenses romano. Naturalmente, o sacrifício de cristãos, entregues às feras em espetáculos públicos, não torna a prática dos imperadores romanos correta. Dito de outra forma, nem tudo que agrada a parcela importante da população é automaticamente ético e correto.
Omissão grave
A transparência que a grande mídia corretamente cobra de outras instituições – públicas e privadas –, ela não pratica em relação a si mesma. Permanecemos em 2010 sendo um país democrático onde sequer existe um cadastro geral com acesso público dos concessionários do serviço de radiodifusão.
A transparência pública aplicada aos grupos dominantes da grande mídia certamente revelaria redes de interesses e compromissos – nem sempre legítimos – dos mais variados tipos, locais e globais. No que se refere à radiodifusão, por exemplo, revelaria os absurdos do “coronelismo eletrônico” enraizado em diferentes esferas do poder público; a propriedade cruzada como prática garantidora de oligopólios e monopólios; a exclusão de muitos e a liberdade de poucos apresentada e defendida em nome dos valores universais da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa.
Ainda não será ao final deste ano de 2010 que a grande mídia fará uma avaliação pública de si mesma. Mas, com certeza, esta omissão grave já não passa despercebida para um número cada vez maior de brasileiros.
(*) Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010. Artigo republicado da agência Carta Maior.

Política de Comunicações: o balanço dos governos Lula

Texto comissionado pela Fundação Friedrich Ebert (FES) e apresentado no seminário “Partidos Políticos Progresistas y Medios de Comunicación en el Cone Sur”, realizado em Santiago (Chile), de 6 a 7 de dezembro de 2010; título original “Política de comunicações no governo Lula (2003-2010)”
Este texto pretende fazer um breve balanço crítico da política de comunicações ao longo dos oito anos de governo Lula (2003-2010), sobretudo no que se refere ao serviço público de radiodifusão. Obedecendo aos eixos temáticos definidos pela Fundação Friedrich Ebert, trata dos principais condicionantes estruturais do pluralismo e da diversidade – estrutura legal, concentração da propriedade e fontes de financiamento –, além de descrever avanços, derrotas e recuos na política de comunicações, e de identificar tendências do contexto e das estratégias de disputa em torno da regulação do setor.
1. Estrutura do sistema de meios de comunicação
1.1 Marco Regulatório
“Trusteeship model” – A primeira característica “moderna” da mídia brasileira é que o Estado fez uma opção – ainda na década de 1930– por um modelo de exploração da radiodifusão que privilegia a atividade privada comercial. Poderia ter sido de outra forma. Para ficar com o exemplo clássico, na mesma época, a Inglaterra fazia a opção oposta, isto é, privilegiou o próprio Estado como operador e executor da atividade de radiodifusão. Mas, no que se refere ao rádio e a televisão, adotamos o modelo que tem origem nos Estados Unidos. É mais ou menos uma curadoria: compete à União a exploração de um serviço que o delega para administração e operação de terceiros.
O rádio e a televisão são, em sua maioria, outorgas do Poder Público para a iniciativa privada. O prazo de vigência para as concessões de rádio é de 10 anos e de televisão, 15 anos. Na prática elas se transformam em propriedade privada, já que a não renovação ou o cancelamento de uma concessão são situações praticamente impossíveis do ponto de vista legal. Desde quando o rádio foi introduzido no Brasil, e foi regulado pelo Estado, optou-se por privilegiar esse modelo de curadoria. Não foi uma opção que contou com a participação popular. Ao contrário, foi uma decisão de gabinete, sem que houvesse qualquer debate ou participação pública.
“No law” – Na mídia brasileira predomina a no law, ou seja, a ausência de regulação. A principal referência legal ainda é o quase cinquentenário Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962. Desatualizado, foi fragmentado pela Lei Geral de Telecomunicações, de 1997 e é complementado por várias normas avulsas para serviços específicos (diferentes modalidades de televisão paga, por exemplo) que, em alguns casos, são até mesmo contraditórias. Ademais, as normas constitucionais existentes, em sua maioria, não foram regulamentadas pelo Congresso Nacional e, portanto, não são cumpridas. Um exemplo emblemático são os princípios para a produção e a programação do serviço público de radiodifusão (Artigo 221), que deveriam também servir de critério para a outorga e a renovação de concessões e, no entanto, são ignorados.
A situação é de tal forma grave que, em novembro de 2010, a Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão (FITERT) e a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) protocolaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO nº 09) pedindo ao Supremo Tribunal Federal que declare “a omissão inconstitucional do Congresso Nacional” em legislar sobre a matéria.
Situação ao final do governo Lula
** Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa (LGCEM) – Durante o primeiro governo Lula, duas comissões foram criadas com a finalidade de produzir um pré-projeto de LGCEM. No entanto, elas nunca chegaram a se reunir. A primeira – que era um GTI (Grupo de Trabalho Interministerial) – esperou oito ou nove meses para que seus membros fossem indicados. Quando finalmente indicados e marcada uma primeira reunião, o governo decidiu que não seria mais um GTI, mas sim uma Comissão Interministerial (CI), com representantes também da Procuradoria Geral da República e outros órgãos. A primeira comissão, um GTI, deixou de existir, embora nunca tivesse se reunido. E a nova, uma CI, também nunca se reuniu.
O tema, no entanto, não morreu. Em julho de 2010, o presidente Lula assinou novo decreto criando outra CI para “elaborar estudos e apresentar propostas de revisão do marco regulatório da organização e exploração dos serviços de telecomunicações e de radiofusão”. Fazem parte da nova comissão representantes da Casa Civil, dos ministérios das Comunicações e da Fazenda, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência (SECOM) e da Advocacia Geral da União. Representantes de órgãos e entidades da administração federal, estadual e municipal, além de entidades privadas, poderão ser convidados a participar das reuniões. O artigo?6º do decreto diz que “a Comissão Interministerial encerrará seus trabalhos com a apresentação, ao Presidente da República, de relatório final”, mas não estabelece prazo para que isso ocorra [íntegra do decreto].
A pouco menos de dois meses do término do governo Lula, em novembro de 2010, um primeiro resultado público do trabalho da nova CI, liderado pela SECOM, se materializou na realização do “Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergências de Mídias”, em Brasília. Representantes de três organismos internacionais – Comissão Européia, OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e UNESCO – e de órgãos reguladores de cinco países – Portugal, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos e Argentina – debateram, ao longo de dois dias, com empresários de mídia, jornalistas, parlamentares, acadêmicos, ONGs, movimentos sociais e funcionários públicos graduados, diferentes formas adotadas para regulação democrática do setor de comunicações. [As proferidas do Seminário estão disponíveis aqui.] Além de qualificar o debate público do tema com o conhecimento das experiências internacionais, um dos objetivos era fornecer subsídios para (finalmente) a elaboração do pré-projeto de um “marco regulatório da organização e exploração dos serviços de telecomunicações e de radiodifusão”.
** Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (ANCINAV) – O projeto de transformar a ANCINE (Agência Nacional de Cinema) em Ancinav – que seria o órgão regulador e fiscalizador da produção e distribuição dos conteúdos audiovisuais – não chegou sequer a ter uma versão final. Um pré-projeto não oficial vazado para a imprensa provocou uma feroz e intensa campanha de oposição, movida, sobretudo, pelos grupos tradicionais de mídia. Diante disso o governo decidiu, em janeiro de 2005, que os estudos prosseguiriam mas que, prioritariamente, deveria ser construída uma proposta de regulação mais ampla dentro da qual a transformação da ANCINE em ANCINAV pudesse ser incluída. O argumento foi de que não se poderia implantar uma agência reguladora do audiovisual sem se ter primeiro uma LGCEM.
Em janeiro de 2005 o governo anunciou que seria encaminhada ao Congresso Nacional uma nova proposta de legislação contemplando apenas os setores de fomento e de fiscalização na área da produção audiovisual. Isso atendia aos interesses de grupos que faziam oposição ao projeto de transformação da ANCINE em ANCINAV. A nova proposta de lei foi de fato elaborada e enviada ao Congresso Nacional, em junho do ano seguinte, e seis meses depois transformada na Lei nº 11.437, de 28 de dezembro de 2006, que criou o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) regulamentado pelo Decreto nº 6.299, de 12 de dezembro de 2007.
** Rádios comunitárias – O governo Lula não foi capaz de implementar políticas democratizantes em relação às rádios comunitárias, que continuam regidas por uma legislação excludente aprovada no governo de Fernando Henrique Cardoso (Lei nº 9.612/1998). Ainda em 2003 foi criado um Grupo de Trabalho (GT) que chegou a produzir um relatório final. Mudou-se o ministro das Comunicações, criou-se agora um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), que se reuniu ao longo de 2010 produzindo também extenso relatório final. Mudou-se novamente o ministro e o novo titular da pasta não aceitou o relatório final do GTI, que nunca chegou a ser encaminhado à Presidência da República.
A repressão às rádios comunitárias – que não conseguem se legalizar, na maioria das vezes por inoperância do próprio Ministério das Comunicações – em certos momentos chegou mesmo a aumentar, comparada ao governo anterior.
** RTVIs – As RTVIs (Retransmissoras de TV Institucionais) foram criadas pelo Decreto nº 5.371, de 17 de fevereiro de 2005. Elas representavam uma excelente oportunidade para o poder municipal se tornar retransmissor de emissoras de TV do campo público e, também, produtor de conteúdo. O decreto abria a possibilidade de uso da TV a cabo por prefeituras em até 15% do tempo total de retransmissão.
A “brecha” foi saudada por todos os que se interessam pela democratização do mercado da comunicação e o fortalecimento da televisão pública. A TV a cabo, ainda hoje, alcança apenas cerca de 260 municípios dos mais de 5.600 existentes no país. Como as operadoras de TV a cabo são obrigadas, por lei, a transmitir canais comunitários, as atividades das Câmaras de Vereadores seriam transmitidas e haveria também a possibilidade da geração de receitas publicitárias e do início da produção de conteúdo local. Houve, no entanto, uma forte reação dos grupos privados de radiodifusão e, menos de dois meses depois da assinatura do Decreto 5.371, um novo Decreto – de nº 5.413, de 6 de abril de 2005 – foi assinado voltando atrás e extinguindo as RTVIs.
** TV Digital – A escolha do modelo japonês para a implantação da TV Digital no Brasil, consolidada ao longo de uma profunda crise política (2005) e em ano eleitoral (2006), sinalizou um recuo importante na postura anterior do governo Lula em relação à política de digitalização da televisão.
No início do processo, o Decreto nº 4.901 de 26/11/2003, que criou o Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), contemplou a participação direta de representantes da sociedade civil organizada que já faziam parte do Comitê Consultivo do SBTVD e discutiam as alternativas de política. No entanto, a partir da nomeação do senador Hélio Costa (PMDB-MG) para ministro das Comunicações, em julho de 2005, esse comitê foi sendo esvaziado e marginalizado pelo próprio Ministério das Comunicações e os representantes da sociedade civil perdendo a voz até que, na decisão final, não tiveram qualquer interferência.
Dois anos e sete meses após a criação do SBTVD, um novo decreto altera radicalmente a política anterior. O Decreto nº 5.820 de 29/06/2006 – apesar de criar um canal “de cultura”, destinado à transmissão de produção cultural e programas regionais, e um canal “de cidadania” para transmissão, dentre outros, de programas de comunidades locais – atendeu diretamente aos grupos dominantes de mídia, em especial aos radiodifusores. A eles interessava garantir a comercialização de seus conteúdos diretamente aos usuários da telefonia móvel, sem depender da intermediação das empresas de telefonia. Mas, sobretudo, interessava evitar a oportunidade histórica de ampliação do número de concessionários de televisão no país.
O Ministério Público de Minas Gerais iniciou ação civil junto à Justiça Federal pela nulidade do Decreto nº 5.820, ainda em agosto de 2006, mas não logrou sucesso na iniciativa. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), por sua vez, protocolou no Supremo Tribunal Federal, em agosto de 2007, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra o mesmo decreto que veio, finalmente, a ser julgada improcedente três anos depois, em 5 de agosto de 2010.
** Regulamentação da TV Paga – Desde 2007 tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que “abre o setor de TV por assinatura para as teles, cria a separação de mercado entre produtores de conteúdo e empresas de distribuição e ainda cria cotas de programação nacional nos pacotes de canais pagos”, além de revogar a Lei do Cabo de 1995.
Na sua complicada e controversa versão atual, o projeto – PLC 116 do Senado Federal – é o resultado da articulação inicial de três propostas representando grupos e interesses distintos: o PL 29/2007, do deputado Paulo Bornhausen (DEM-SC), representa as empresas de telefonia; o PL 70/2007, do deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP), representa os radiodifusores; e o PL 323/2007, dos deputados Walter Pinheiro (PT-BA) e Paulo Teixeira (PT-SP), que se situa em posição intermediária entre os interesses dos dois setores.
Aprovado em junho de 2010 na Câmara dos Deputados, a posição de diferentes atores em relação ao projeto tem oscilado na medida mesma em que o próprio projeto sofre alterações. A operadora Sky (associação dos grupos News Corporation e Globo) e a Associação Brasileira de Programadores de TV por Assinatura (ABPTA) patrocinam uma campanha publicitária denominada “Liberdade na TV”, contrária ao projeto com o mote “querem intervir na sua TV por assinatura”.
1.2 Níveis de concentração da propriedade
** Propriedade cruzada – A legislação brasileira nunca se preocupou de forma efetiva com a propriedade cruzada dos meios de comunicação. O mais próximo que se chegou dessa preocupação foi na década de 1960, durante o regime militar, quando houve uma tentativa, através do Decreto-Lei 236/1967, de se estabelecer limites para o número de concessões de radiodifusão que um mesmo grupo privado poderia controlar. Esses limites, no entanto, não foram obedecidos. O Estado, que é o órgão fiscalizador, jamais interpretou a norma legal como forma de regular a concentração da propriedade.
Não há, portanto, na legislação brasileira, sobretudo na de radiodifusão, preocupação com o fato de que o mesmo grupo empresarial, no mesmo mercado, seja concessionário de emissora de rádio e/ou de televisão, e ainda proprietário de empresas de jornais e/ou de revistas.
Os principais grupos empresariais que existiram e ainda existem na mídia brasileira são multimídia, baseados na propriedade cruzada. Isso foi verdade para os Diários Associados – o primeiro grupo dominante no país – e é, evidentemente, verdade para as Organizações Globo – o maior grupo de mídia que existe no Brasil hoje.
A propriedade cruzada, para efeito de um diagnóstico da mídia brasileira na perspectiva da economia política do setor, torna irrelevante a diferença entre mídia impressa e mídia eletrônica. Nos casos mais importantes, os grupos controladores de uma e de outra são os mesmos.
Uma das conseqüências dessa omissão reguladora é que a mídia privada comercial foi sempre oligopolizada, exatamente porque se formou com base na ausência de restrições legais à propriedade cruzada dos diferentes meios.
** Oligarquias políticas e familiares – A mídia brasileira é controlada por uns poucos grupos familiares. Mas não só por grupos familiares. Eles são também os mesmos grupos oligárquicos da política regional e local. Aparece, então, uma questão extremamente importante: o coronelismo eletrônico, prática política através da qual forças no controle do aparelho de Estado se utilizam das outorgas de radiodifusão como moeda de barganha política. Dessa forma, o poder concedente desse serviço público, muitas vezes, se confunde com o próprio concessionário, atualizando e reproduzindo, com roupagem nova, o coronelismo político da República Velha para o tempo presente. [Para uma discussão conceitual sobre a prática política do “coronelismo” ver, neste Observatório, Venício A. de Lima e Cristiano Aguiar Lopes, “Rádios Comunitárias: Coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)”.]
** Igrejas – Tem havido um avanço importante do controle tanto da radiodifusão quanto da mídia impressa brasileiras por diferentes igrejas. O maior avanço é das igrejas evangélicas neopentecostais, embora, historicamente, a igreja católica seja a maior concessionária de emissoras de rádio no Brasil. Em alguns casos, a presença das igrejas como concessionárias é bastante evidente – como, por exemplo, na programação vespertina dos canais da TV aberta, tanto em VHF como em UHF.
** Hegemonia de um único grupo privado – As Organizações Globo concentram as verbas publicitárias, de maneira desproporcional à audiência relativa de seus veículos: em torno de 60% do “bolo publicitário”. Para a Rede Globo de Televisão, que lidera a audiência deste segmento, o percentual chega a ser ainda maior, de tal forma que se somarmos todas as outras emissoras comerciais de televisão veremos que a elas são destinados apenas entre 35% e 40% do volume total de publicidade.
** Concentração da propriedade – Quando se trata da radiodifusão e da imprensa, o Brasil se antecipou à tendência de concentração da propriedade na mídia manifestada pelo processo de globalização. A propriedade sempre foi concentrada e, ademais, concentrada dentro de parâmetros inexistentes em outros países. A sinergia verticalizada em áreas da produção de entretenimento (telenovelas, por exemplo) é prática consagrada na TV comercial há muitos anos. Não há rigor no cumprimento dos poucos limites existentes em lei com relação ao número possível de concessões de rádio e TV para o mesmo grupo empresarial no mesmo mercado. A propriedade cruzada na radiodifusão e entre a radiodifusão e a imprensa é permitida sem restrições. Não há limites para o tamanho das audiências das redes de televisão. Esse quadro regulatório gerou um fenômeno de concentração horizontal, vertical, cruzado e “em cruz”, sem paralelo. O Brasil é o paraíso da radiodifusão privada comercial oligopolizada.
Balanço do governo Lula
Não houve qualquer alteração fundamental no quadro de concentração da propriedade da mídia no Brasil entre 2003 e 2010.
1.3 Financiamento dos meios de comunicação
Na tradição brasileira, o Estado tem sido – direta ou indiretamente – uma das principais e, em muitos casos, a principal fonte de financiamento da mídia privada comercial, seja ela impressa ou eletrônica. Basta verificar quais são os maiores (em termos de recursos publicitários) anunciantes dos jornais, das revistas semanais e dos telejornais das principais redes de televisão privada do país.
Balanço do governo Lula
** Reorientação na publicidade oficial – Uma importante descentralização na alocação dos recursos publicitários oficiais teve início em 2003. Apesar dos grupos dominantes da grande mídia continuarem a ser os destinatários prioritários das verbas, o número de municípios cobertos pulou de 182, em 2003, para 2.184, em 2009, e o número de meios de comunicação programados subiu de 499 para 7.047, no mesmo período (ver quadros abaixo).

REGIONALIZAÇÃO DE VERBAS PUBLICITÁRIAS OFICIAIS POR MUNICÍPIOS E POR TOTAL DE VEÍCULOS (2003-2009) Fonte: SECOM-PR

REGIONALIZAÇÃO DE VERBAS PUBLICITÁRIAS OFICIAIS POR DIFERENTES VEÍCULOS (2003-2009)
Fonte: SECOM-PR
2. Principais avanços, recuos e derrotas
2.1. Avanços
Além do início do mencionado processo de regionalização da alocação dos recursos de publicidade oficial, registrem-se os outros seguintes avanços:
** Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – O ano de 2007 ficará marcado pelo nascimento da Empresa Brasil de Comunicação (EBC-TV Brasil), resultado da fusão da Radiobrás com a ACERP/TVE, a TVE do Maranhão e o canal digital de São Paulo. Sua conformação final surgiu das dezenas de emendas que a Medida Provisória 398/07 recebeu no Congresso Nacional.
Apesar das críticas que podem ser feitas ao processo de sua implantação – e são muitas –, a EBC, finalmente criada pela Lei 11.652, de 7 de abril de 2008, representa um importante avanço: está “no ar” uma TV que institucionalmente se define como pública e a disputa para definir o que é uma televisão pública se desloca agora para a sua prática.
** 1ª. Conferência Nacional de Comunicação (CONFECOM) – A realização da CONFECOM – a última conferencia nacional a ser convocada de todos os setores contemplados pelo “Título VIII – Da Ordem Social” na Constituição de 1988 – sempre encontrou enormes resistências dos grandes grupos de mídia. Seis entidades empresariais se retiraram da Comissão Organizadora: Associação Brasileira de Emissoras de Radio e Televisão (ABERT); Associação Brasileira de Internet (ABRANET); Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA); Associação dos Jornais e Revistas do Interior do Brasil (ADJORI Brasil); Associação Nacional dos Editores de Revistas (ANER) e Associação Nacional de Jornais (ANJ). Permaneceram a Associação Brasileira de Radiodifusores (ABRA), uma dissidência da ABERT fundada pelas redes Bandeirantes e Rede TV!, em maio de 2005; e a Associação Brasileira de Telecomunicações (TELEBRASIL), criada em 1974, com a missão de “congregar os setores oficial e privado das telecomunicações brasileiras visando à defesa de seus interesses e o seu desenvolvimento”.
Afinal realizada em Brasília, de 14 a 17 de dezembro de 2009, a 1ª CONFECOM teve a participação de mais de 1.600 delegados, democraticamente escolhidos em conferências estaduais nas 27 unidades da Federação, representando movimentos sociais, parte dos empresários de comunicação e telecomunicações e o governo. Dela saíram mais de 600 propostas que deverão servir de referência para apoio e/ou apresentação de projetos de regulação do setor de comunicações no Congresso Nacional. Acima de tudo, e independente do boicote e da satanização quase unânime por parte da grande mídia, a 1ª CONFECOM ampliou de forma inédita a mobilização da sociedade civil e o espaço público de debate sobre as comunicações no país.
** Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) – Em maio de 2010 foi instituído o Programa Nacional de Banda Larga pelo decreto n. 7.175/2010 com o objetivo de “fomentar e difundir o uso e o fornecimento de bens e serviços de tecnologias de informação e comunicação, de modo a: massificar o acesso a serviços de conexão à Internet em banda larga; acelerar o desenvolvimento econômico e social; promover a inclusão digital; reduzir as desigualdades social e regional; promover a geração de emprego e renda; ampliar os serviços de Governo Eletrônico e facilitar aos cidadãos o uso dos serviços do Estado; promover a capacitação da população para o uso das tecnologias de informação; e aumentar a autonomia tecnológica e a competitividade brasileiras.” A Telecomunicações Brasileiras S.A. (Telebrás) foi reativada e será a gestora do plano, estando prevista a atuação de empresas privadas de forma complementar para fazer os serviços chegarem ao usuário final.
O PNBL ainda é uma promessa e o presidente da Telebrás tem acusado as empresas privadas de telefonia de o boicotarem. Na verdade, cinco grupos são responsáveis por 95% da oferta atual de banda larga no Brasil – Oi, Telefônica, Embratel/Net, GVT e CTBC – enquanto 2.125 pequenos provedores respondem pelos restantes 5% do mercado. Há pouca ou nenhuma competição e os grupos dominantes são contra a inclusão de metas de expansão da infraestrutura de banda larga nos contratos de concessão das empresas de telefonia que estão em fase de revisão na ANATEL, a agência reguladora do setor.
2.2 Recuos e derrotas
Além dos registros já feitos em relação à não elaboração até mesmo de um projeto de Lei Geral para regulação da comunicação eletrônica; do recuo em relação à transformação da ANCINE em ANCINAV; da inoperância em relação à legislação das rádios comunitárias; do recuo em relação ao decreto das RTVIs e à escolha do modelo tecnológico para implantação da TV digital, também merecem menção:
** Cadastro geral dos concessionários de radiodifusão – O primeiro ministro das Comunicações do governo Lula, deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), ao assumir a pasta, em janeiro de 2003, prometeu que tornaria público o cadastro com os nomes de todos os concessionários das emissoras de rádio e de televisão no país. De fato, cumpriu a promessa em novembro de 2003: o cadastro, embora incompleto e falho, passou a estar disponível no site do MiniCom.
Foi a primeira vez que o público tomou conhecimento dessa informação básica. Os Decretos Legislativos confirmando as outorgas são publicados no Diário Oficial da União (DOU), mas trazem apenas os nomes das empresas. Não especificam os nomes de seus sócios.
No início de 2007, o cadastro “desapareceu” do site do MiniCom. Desde então, o interessado em informações oficiais só pode recorrer àquelas disponíveis no site da ANATEL. Lá não existe um cadastro geral com a relação de concessionários, mas sim dois bancos de dados: o Sistema de Acompanhamento de Controle Societário (SIACCO) e o Sistema de Informação dos Serviços de Comunicação de Massa (SISCOM).
No SIACCO pode-se pesquisar o “perfil das empresas” por razão social ou CNPJ e, a partir daí, chega-se ao quadro societário e/ou à diretoria das entidades – em geral, incompletos. Já no SISCOM a busca pode ser feita por localidade e por serviço. Vale dizer: aquele que quiser compor um cadastro completo deverá pesquisar município por município.
Do cadastro geral disponibilizado ao público em novembro de 2003 regredimos para uma informação fragmentada que, na prática, impede a construção de um quadro geral das concessões e de seus concessionários.
** Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) – O governo encaminhou projeto de criação do CFJ ao Congresso Nacional em 4 de agosto de 2004. Segundo a FENAJ (Federação Nacional de Jornalistas), o principal objetivo era “promover uma cultura de respeito ao Código de Ética dos Jornalistas”. Diante da intensa e violenta oposição da grande mídia, no entanto, a própria FENAJ, preparou e distribuiu, em Brasília, um substitutivo ao projeto original, no dia 13 de novembro, agora de criação de um Conselho Federal de Jornalistas como “órgão de habilitação, representação e defesa do jornalista e de normatização ética e disciplina do exercício profissional de jornalista”. Apesar disso, através de votação simbólica, por acordo de lideranças, a Câmara dos Deputados decidiu desconsiderar o substitutivo e rejeitar o primeiro projeto, em 15 de dezembro de 2004.
** III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3) – Houve importante recuo do governo Lula em relação às diretrizes originais para a comunicação constantes do PNDH3 (Decreto nº 7.037, de 21 de Dezembro de 2009). Menos de cinco meses depois, novo decreto (Decreto nº. 7.177 de 12 de maio de 2010) alterou o anterior e, no que se refere especificamente ao direito à comunicação: (a) manteve a ação programática (letra a) da Diretriz 22 que propõe “a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados”; (b) exclui as eventuais penalidades previstas no caso de desrespeito às regras definidas; e (c) exclui também a letra d, que propunha a elaboração de “critérios de acompanhamento editorial” para a criação de um ranking nacional de veículos de comunicação.
** Conselho de Comunicação Social – Na Constituinte de 1987-88, a proposta original de criação de um “órgão regulador independente e autônomo” foi transformada em “órgão auxiliar” que deveria apenas ser ouvido quando o Congresso Nacional julgasse necessário (Artigo 224). Essa alteração deu origem ao Conselho de Comunicação Social (CCS). Apesar de criado, todavia, o CCS sempre enfrentou forte resistência de boa parte dos parlamentares.
A lei que regulamentou a criação do CCS (Lei 8339/1991) foi aprovada pelo Congresso Nacional em 1991, mas ele só logrou ser instalado em 2002, como parte de um polêmico acordo para aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que, naquele momento, constituía interesse prioritário para os empresários da grande mídia. A Emenda Constitucional nº 36 (Artigo 222), aprovada em maio de 2002, permitiu a propriedade de empresas jornalísticas e de radiodifusão por pessoas jurídicas e a participação de capital estrangeiro em até 30% do seu capital total.
Mesmo sendo apenas um órgão auxiliar, o CCS, quando instalado, demonstrou ser um espaço relativamente plural de debate de questões importantes do setor – concentração da propriedade, outorga e renovação de concessões, regionalização da programação, TV digital, radiodifusão comunitária etc. Vencidos os mandatos de seus primeiros membros, houve um atraso na confirmação dos membros para o novo período de dois anos, o que ocorreu apenas em fevereiro de 2005. Ao final de 2006, no entanto, totalmente esvaziado, o CCS fez sua última reunião. Os membros para um terceiro mandato não foram indicados e o CCS não mais se reuniu.
3. Contexto e estratégias
A maioria das propostas de políticas públicas que a sociedade civil organizada considera avanços no processo de democratização das comunicações não foi implementada no período 2003-2010. Ao contrário, muitas das iniciativas neste sentido, como vimos, foram sendo, uma a uma, abandonadas ou substituídas por outras que negavam as intenções originais. Existem, no entanto, exceções importantes.
Em diferentes ocasiões, ficaram também evidentes as contradições e conflitos de orientação política entre setores internos ao próprio governo, em especial o Ministério das Comunicações, o Ministério da Cultura e a SECOM-PR. Registre-se, por exemplo, a ausência, na prática, do Ministério das Comunicações tanto do esforço de elaboração de um projeto de LGCEM (liderado pela SECOM), quanto da instituição e implementação do PNBL (liderado pelo Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital, vinculado diretamente ao Gabinete Pessoal do Presidente da República).
Da mesma forma, ficou mais de uma vez evidente a impotência do Estado diante dos grandes grupos de mídia, assim como ficou claro o enorme poder histórico desses grupos, ainda capazes de interferência direta na própria governabilidade do país.
Considere-se ainda que algumas questões relevantes não puderam ser tratadas aqui. Dois exemplos: (1) houve ou não continuidade na prática do coronelismo eletrônico, isto é, no uso das autorizações, concessões e renovações de radiodifusão como moeda de barganha política? (2) de que forma decisões do Judiciário afetaram direta ou indiretamente a democratização das comunicações [não exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista; inconstitucionalidade total da Lei de Imprensa de 1967 e o direito de resposta]?
O período 2003-2010 foi também marcado (1) pelo formidável avanço da internet e (2) pelo recrudescimento da posição radical dos grupos privados de mídia em relação a qualquer proposta de regulação das comunicações, oriunda ou não do governo.
3.1 Avanço da internet
Dados do Ibope revelam que “das cerca de 60 milhões de pessoas que acessaram a internet em 2008, 67% fazem parte das classes C, D e E. Cerca de 80% dessas pessoas têm renda familiar mensal de até cinco salários mínimos”. Dessa forma, “de ferramenta quase exclusiva da elite nos anos 1990, a internet encerra a primeira década do século 21 tendo como usuário um indivíduo cada vez mais parecido com o brasileiro médio”.
Por outro lado, o PNBL – já mencionado – se devidamente implementado em articulação com políticas específicas de inclusão digital, renova esperanças de avanço ainda maior no processo de universalização da internet nos próximos anos.
3.2 Intolerância
Alguns exemplos da radicalização crescente por parte dos atores dominantes no campo das comunicações:
** Partidarização – A presidente da Associação Nacional de Jornais admitiu publicamente a partidarização da mídia ao afirmar, em março de 2010:
“A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser limitado. A esse direito geral, o contraponto é sempre a questão da responsabilidade dos meios de comunicação. E, obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo, de fato, a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda sobremaneira o governo.” (Cf. “Ações contra tentativa de cercear a imprensa”, O Globo, 19/3/2010, p. 10)
Essa partidarização tem sido evidenciada rotineiramente na cobertura política realizada pela grande mídia, em particular ao tempo das campanhas eleitorais [cf. Venício A. de Lima (org.); A Mídia nas Eleições de 2006. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007].
É oportuno registrar que a partidarização da mídia tem como corolário não só o enfraquecimento dos partidos, como sua própria despolitização, na medida em que são afastados da política cotidiana e confinados às formalidades e à burocracia de seu funcionamento legal e dos procedimentos eleitorais.
** “Democratização da comunicação” – A radicalização chegou a tal ponto que até a expressão “democratização da comunicação” passou a ser satanizada pela grande mídia. Propostas para a “democratização da comunicação”, muitas vezes simples referências a normas e princípios consagrados na Constituição de 1988, passam a ser imediatamente rotuladas de autoritárias ou de ameaças à liberdade da imprensa. Praticamente não há diálogo ou negociação entre os atores dominantes e a sociedade civil. A retirada das associações que representam os principais grupos de mídia da Comissão Organizadora da 1ª CONFECOM talvez seja o caso mais emblemático desse tipo de intolerância.
Em 19 de outubro de 2010, a aprovação pela Assembléia Legislativa do Ceará do “Projeto de Indicação nº 72.10”, que propõe a criação do Conselho Estadual de Comunicação Social (CECS), detonou um novo ciclo de generalizada reação da grande mídia e da própria OAB nacional. Na ocasião, o advogado e editor do suplemento “Direito & Justiça” do Correio Braziliense, referindo-se às propostas aprovadas pela 1ª. CONFECOM, chegou a afirmar que “Goebbels, encarregado por Hitler da difusão da propaganda nazista e de eliminar adversários do regime, não teria feito melhor” (cf. Josemar Dantas, “Democracia em Risco”, suplemento “Direito&Justiça”, Correio Braziliense, 8/11/2010, p. 2).
Considerando a radicalização e a intolerância que têm marcado a relação entre os principais atores do campo nos últimos anos, o futuro próximo certamente reserva imensos desafios para a democratização das comunicações no Brasil.
(*) Mátéria republicada da Carta Maior. Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.