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Filmes de Robert Altman são destaque do CCBB

Começou no dia 27 de maio no Rio uma mostra com todos (ou quase) os filmes do memorável diretor de cinema, Robert Altman – uma declaração de amor à arte. Uma homenagem simples, direta e sem grandes ornamentos desnecessários àqueles que se jogam na profissão artística de corpo e alma. Por Raquel Gandra (*), repórter cultural da Revista Consciência.Net, da redação.

Começou no dia 27 de maio (até 15 de junho), no CCBB do Rio de Janeiro, uma mostra com todos (ou quase) os filmes do memorável diretor de cinema, Robert Altman, que morreu em novembro de 2006. Muitos deles são inéditos no Brasil e quase todos em película. Uma oportunidade única para quem quer conhecer um pouco mais o trabalho deste, que era um sensível investigador das emoções humanas. Altman era um diretor de atores, de personagens.

Na quarta-feira (28) fui ver o penúltimo filme dele (2003), traduzido para o português como “De corpo e alma”. Em inglês, um nome muito mais apropriado: “The Company”.

Um pouco como Fellini, em “Ensaio de Orquestra”, este filme me pareceu uma homenagem à profissão artística, podendo esta ser a dança ou a música orquestrada, equiparáveis ao cinema. A questão do trabalho em equipe, dos contratempos, do ensaio mesmo. Todas aquelas pessoas, aqueles equipamentos, TUDO e TODOS trabalhando em uníssono para que o resultado final seja como o esperado.

“The Company” é um filme simples. Trata da realidade de uma cia de dança e tem como fio condutor dois personagens:

Loretta (Neve Campbell) – dançarina desde pequena que sonha em ter papéis mais centrais, ama o que faz e tem que trabalhar como garçonete para se manter.

Sr. A (Malcolm McDowell) – dono da companhia, que parece irritar a todos com suas decisões unilaterais, mas acaba fazendo tudo funcionar. Chega para observar os ensaios em sua cadeira branca, como quem não quer nada, e acaba opinando em toda e qualquer coisa.

O filme é constantemente perpassado por ensaios, pequenas situações das vidas pessoais de alguns, mostrando convivências, afinidades e desafinidades, etc e, claro, as apresentações. Sejam elas solo, em dupla ou com o grupo todo.

As apresentações de dança são lindas e muito bem filmadas. Há planos de diversos ângulos e a edição soube montá-los de forma fluida e sem incômodos na imagem, nos mostrando de forma privilegiada o que estava acontecendo no palco. Todas belíssimas. São como pequenos momentos em que o mundo pára. Em que a realidade dá lugar à fantasia e tudo é bom. Eu saí do cinema querendo ser dançarina. Ser leve e forte ao mesmo tempo. Saber flutuar.

Dentre as muitas deliciosas músicas que ouvimos ao longo do filme, estas fazendo ou não parte dos repertórios das danças, a canção “My Funny Valentine” é um ótimo pano de fundo em diversas partes. Ilustra principalmente as situações amorosas da protagonista.

Neve Campbell está ótima e faz um belo trabalho como dançarina. Alguns podem não saber, mas ela já fez parte de uma companhia de dança quando era mais jovem, mas largou devido a machucados. Sua participação no filme foi muito além de mera atriz. Neve teve a idéia original da história e desenvolveu o roteiro com Bárbara Turner. Além disso, ainda foi uma das produtoras de “De corpo e alma”.

James Franco faz bem o papel de par romântico e está uma graça. E McDowell, lembrado sempre para mim como Alex, de Laranja Mecânica, rouba a cena com seu jeito mandão e autoritário ainda que gentil e simpático. Perdoamos sua antipatia pelo amor que ele tem pelo que faz.

Em relação ao desenvolvimento da narrativa, é muito bom poder identificar os problemas de relacionamento entre mãe e filha, um casal se apaixonando, um desconforto entre uns e outros, inveja ou contentamento apenas através dos olhares. Como sempre, nos filmes de Altman, observamos várias pessoas, mas sem necessariamente nos aprofundarmos nelas. Ficamos sabendo de pequenos pedaços de suas vidas e isso nos basta. É como se por duas horas estivéssemos com elas. A tela está sempre repleta de gente expressando emoções e sentimentos. Pesca quem quiser. Quem souber prestar atenção.

“The Company” é uma de suas últimas obras, que parecem mesmo uma despedida deste diretor, que morreu aos 80 anos, após ter dirigido mais de 40 filmes. É lindo observar essa história, que mostra de modo muito real a vida dessas pessoas dedicadas ao que fazem, que se sacrificam todos os dias pelo amor à arte.

Uma declaração de amor à arte. Uma homenagem simples, direta e sem grandes ornamentos desnecessários àqueles que se jogam de cabeça na profissão artística, ou melhor, que se jogam nela de corpo e alma.

Programação no CCBB
Rio de Janeiro – de 27 de maio a 15 de junho;
São Paulo – 04 a 22 de junho;
Brasília – 10 de junho a 29 de junho.

(*) Raquel Gandra é repórter cultural da Revista Consciência.Net na área de cinema.

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Resenha cultural: Speed Racer

(…) Um filme muito bom, porque sabe não se levar a sério demais. Equilibra muito bem drama, comédia, cenas hiperbólicas de corrida, romance e emoção. Por Raquel Gandra (*), da redação.

Speed Racer é um filme dos Irmãos Wachowski. Saber disso poderia ser irrelevante, mas nesse caso não é. A estética, o ritmo e os efeitos são claramente produtos das mesmas mentes criativas que inventaram Matrix.

O visual é uma mistura de desenho japonês, Andy Warhol e um gigante caleidoscópio. Muitas cores vivas e cenários surreais ajudam a criar uma outra realidade. Tal realidade é tão distinta da nossa ou de qualquer outra vista no cinema, que facilita a credibilidade e a crença na história e nos personagens que ali se desenvolvem.

A decupagem dos planos é visivelmente baseada no desenho que deu origem: muitos planos próximos, transições de cenas e de situações em que a câmera gira em torno do personagem ou simplesmente este passa de um lado para o outro da imagem enquanto um panorama do momento é narrado. O timing é bastante similar ao dos desenhos japoneses antigos, com drama e cenas de luta intercaladas por comédia.

A forma de atuar mantém os padrões meio exagerados e previamente estabelecidos. O figurino, os penteados, a maquiagem e até mesmo os ícones midiáticos, como o desenho que o filho mais novo assiste junto ao seu macaco, TUDO tenta se aproximar ao máximo da própria forma dos personagens daquela época.

Os vilões são bem caricaturais, marcados por elementos típicos desse tipo de personagem presentes nas histórias dos anos 60. Gângsters mafiosos com suas metralhadoras, tommy guns, cicatrizes, sorrisos tortos, reações extremadas, etc.

Um dos maiores trunfos do filme é conseguir manter a ingenuidade do personagem e a leveza da história. O romance é bem desenvolvido sem muitas “frescuras” que filmes de heróis costumam ter, as cenas de beijos são constantemente interrompidas por elementos cômicos, assim como as de violência, os corredores que são jogados para fora da pista aparecem protegidos por um sistema que produz espumas por todo o veículo, os vilões, como já foi dito, são fáceis de se identificar, o que nos leva a concluir que é, sim, um desses filmes em que o mau é mau e o bom é bom, totalmente coerente com a linguagem usada.

As cenas de luta são mais uma peculiaridade que vai de acordo com o ritmo que já mencionei, balanceadas com momentos cômicos e golpes que vão desde os geniais aos mais fortuitos e improváveis. Uma seqüência inesquecível é a dos Ninjas incompetentes. Já as cenas das corridas são emocionantes e absurdas, com direito a frases de efeito de um Speed mais forte e determinado já pra meados do filme.

As falcatruas dos carros, as linhas de movimentos que dão noção de velocidade durante as corridas, as paisagens naturais inusitadas pelas quais os carros passam, os caminhos “tortuosos”, as comemorações entusiasmadas, dentre outros elementos, são todos perfeitamente compatíveis com as do anime criado nos anos 60 por Tatsuo Yoshida.

A trilha sonora tem a presença constante da música tema de Speed Racer “Mahha Go! Go!! Go!!!”, ou pelo menos, extratos da mesma espalhadas pela narrativa.

Apesar de todos os elementos cômicos, há também um drama genuíno.

Os atores ajudam a dar veracidade e sentimento à família Racer, desde a bela cena de sua mãe, Susan Sarandon, dizendo que o que ele faz é arte e não apenas um esporte, até o seu pai, John Goodman, redescobrindo a alegria de viver através de uma noite de nostalgia com Speed ainda pequeno assistindo a uma velha corrida. Christina Ricci está formidável e idêntica a Prixie, com seus grandes olhos expressivos e sorriso encantador. Até mesmo o menininho, irmão mais novo, interpretado por Paulie Litt está muito bem como o personagem mais engraçado que se mete em confusões com seu chimpanzé “de estimação”.

Matthew Fox está bem diferente de seu papel em ‘Lost’ e talvez por isso e por ter poucos momentos no filme em que mostra seu rosto inteiramente, tenha tido espaço para mostrar uma boa atuação, conseguindo se distanciar desse recente personagem estigmatizado. Sua voz, na verdade, é o que dá mais força e caráter a seu personagem.

A linguagem narrativa é, para minha surpresa, rebuscada, com flashbacks mal explicados em que o espectador tem que prestar atenção para entender e reviravoltas não esperadas.

Para os mais fãs, há seqüências memoráveis. Desde a saída de Speed do carro exatamente igual à cena final da abertura do desenho animado até o hiper rali que segue o mesmo espírito da animação, atravessando climas e paisagens completamente diferentes, passando por dentro de montanhas, etc. Apesar de haver algumas modificações, como as pistas que parecem mais montanhas russa; os elementos todos do original estão lá, desde os já mencionados, até locutores super entusiasmados e pequenos detalhes como os closes nas ações dentro do carro ou as cenas das batidas.

Um filme muito bom, porque sabe não se levar a sério demais. Equilibra muito bem drama, comédia, cenas hiperbólicas de corrida, romance e emoção. E além de tudo ainda tem uma mensagem bonita. O que mais eu poderia querer?

(*) Raquel Gandra é repórter cultural da Revista Consciência.Net na área de cinema. Clique na imagem para ver o trailer.

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Release cultural: I’m Not There

“I’m not there” é pura poesia, pura canção, pura arte. É a busca por uma verdade e uma pessoa que não existem. É a constante mudança de alguém que não está lá. Por Raquel Gandra (*), da redação.

O novo filme de Todd Haynes segue um caminho já iniciado por ele em 1998 com Velvet Goldmine. O estilo de biografias indiretas relacionadas ao mundo da música está presente também neste precursor, filme pelo qual Haynes ficou mais conhecido. ‘Velvet Goldmine’ tinha como contexto a época do Glam Rock (anos 70) na Inglaterra e como maior inspiração e fio narrativo, David Bowie e suas diversas fases artísticas, mas misturando suas histórias com as de outros ícones da época como Loud Reed, Iggy Pop, Brian Ferry, dentre outros. Já esse, traduzido para o português como “Não Estou Lá”, se inspira nas histórias, nas canções e na vida de Bob Dylan.

Sua personalidade é dividida, ou melhor dizendo, compartilhada por seis personagens. Logo na cena inicial estes são caracterizados por uma ou duas palavras apenas, mas no fundo tais adjetivos se encontram e desencontram por meio de todos eles:

O impostor – Um menininho negro (Marcus Carl Franklin) que aparenta mais velho pelo seu discurso e por sua grande habilidade de tocar o blues. Este aprende, em uma de suas viagens, que deve falar sobre seu próprio tempo, cantar sobre sua realidade. Tal momento é representativo da fase em que Dylan era muito fã do cantor de blues Woody Guthrie, que no final dos anos 50 ficou gravemente doente, levando Dylan a visitá-lo num hospital em Nova Iorque.

O profeta – Um jovem sonhador e tímido (Christian Bale) que, com seu violão e sua gaita, homenageia o folk e cria músicas de protesto em meio a uma época de movimentos e acontecimentos decisivos no mundo. Momento em que o cantor se juntou à “rainha do folk” Joan Baez. Faz também alusão a um período, mais tarde, em que se converteu ao catolicismo.

A celebridade – Um ator mulherengo e grosseiro (Heath Ledger), mistura de Marlon Brando e James Dean, que tem um relacionamento conturbado com sua esposa e vive fugindo dos flashs. Fase representativa de suas pequenas participações no cinema, seu casamento seguido de divórcio e de seu acidente de moto.

A personificação do fantasma – Um cantor famoso e polêmico (Cate Blanchett), amado por alguns e detestado por seus antigos fãs, que acreditam terem sido traídos quando este mudou de estilo e temática. Momento em que Dylan mudou de folk para rock, com cenas fortemente inspiradas no documentário de 2005, dirigido por Scorcese “No Direction Home”. Parte também que exalta as dificuldades do artista com a mídia.

O poeta – Jovem (Ben Wishaw) que se denomina Arthur Rimbaud, narrador onisciente da história.

O fora da lei – Um herói popular tentando fugir do mundo e de seu passado. Esse personagem, interpretado por Richard Gere, faz alusão a alguns papéis interpretados por Bob no cinema e também a sua fase mais “escondida”, em que ele se isolou um pouco do mundo.

Todas essas histórias e pessoas completamente diferentes se juntam de maneira brilhante em apenas uma narrativa perfeitamente entrelaçada. Elas conseguem manter um ótimo ritmo e se infiltrar umas nas outras de modo equilibrado e inteligente. Tal habilidade faz um filme de duas horas e quinze minutos passar leve e despercebidamente.

A fotografia é outro mérito de “Não estou lá”. Seja qual for a história, com seu visual específico – documentário com narração e declarações de amigos e familiares, filmes do movimento “cinema direto” dos anos 60, ambientes rurais e cidadezinha bizarra, etc; os planos, a mistura de 16 com 35mm, as cores, o granulado, o preto e branco são lindos. Pode-se sentir a admiração pela temática e o tesão do diretor em realizar o filme a cada cena, cada travelling, cada encaixe de montagem e cada canto da imagem, preenchendo TODA a tela com sua lente anamórfica.

A trilha sonora é fantástica. Com músicas do cantor, interpretadas por ele e outros artistas, muitas vezes pontuando épocas e ajudando a narrar acontecimentos.

As atuações estão incríveis, destacando-se o desempenho de Cate Blanchett, que parece ter encarnado o cantor, desde o caminhar e os trejeitos até a voz e o sotaque.

Outro fator interessante são algumas discussões pertinentes que surgem: qual a validade de uma canção? Pode ela mudar o mundo? Ou então, uma música de protesto precisa ter literalmente uma causa? Ou basta ser sincera e verdadeira? O que é ser alguém? Somos os mesmos todos os dias? Essa e outras questões permeiam “I’m not there”, nesse que é uma das melhores cine-biografias do cinema. Mais uma vez Todd Haynes conseguiu humanizar um ídolo das massas e aproximá-lo da realidade do nosso dia a dia.

Os fãs do astro vão encontrar pequenas citações como fatos, capas de disco e respostas de entrevistas em todos os cantos do filme. Reconhecerão cenas, nomes e vozes. E se regozijarão com tamanha compreensão e sensibilidade do diretor ao contar sua(s) história(s).

E aqueles que não o conhecerem muito bem vão ficar curiosos e se sentirão arrebatados por essa vida tão cheia de vida e essa personalidade tão cheia de personalidade que foi, é e será Bob Dylan.

(*) Raquel Gandra é repórter cultural da Revista Consciência.Net na área de cinema. Clique na imagem para ver o trailer.

Ficha Técnica
Título Original: I’m Not There
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 135 minutos
Ano de Lançamento (EUA / Alemanha): 2007
Site Oficial: http://www.imnotthere.es
Estúdio: Killer Films / Wells Productions / John Wells Productions / Endgame Entertainment / Film & Entertainment VIP Medienfonds 4 GmbH & Co. KG / John Goldwyn Productions
Distribuição: The Weinstein Company / Europa Filmes
Direção: Todd Haynes
Roteiro: Oren Moverman e Todd Haynes
Produção: John Goldwyn, Jeff Rosen, John Sloss, James D. Stern e Christine Vachon
Fotografia: Edward Lachman
Desenho de Produção: Judy Becker
Figurino: John A. Dunn
Edição: Jay Rabinowitz
Efeitos Especiais: Intrigue

Elenco
Christian Bale (Bob Dylan / John / Jack)
Cate Blanchett (Bob Dylan / Jude)
Marcus Carl Franklin (Bob Dylan / Woody)
Richard Gere (Bob Dylan / Billy)
Ben Whishaw (Bob Dylan / Arthur)
Heath Ledger (Bob Dylan)
Benz Antoine (Bobby Seale)
Mark Camacho (Norman)
Joe Cobden (Sonny)
David Cross (Allen Ginsberg)
Charlotte Gainsbourg (Claire)
Garth Gilker (Woody Guthrie)
Kristen Hager (Mona)
Fanny La Croix (Alice / Atriz)
Julianne Moore (Alice)
Kim Roberts (Sra. Arvin)
Yolonda Ross (Angela)
Dennis St. John (Capitão Henry / Almirante)
Craig Thomas (Hewey Newton)
Michelle Williams (Coco Rivington)
Bruce Greenwood

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Resenha cultural: Sonho de Cassandra

“Sonho de Cassandra”, filme de Woody Allen mais recente a estrear no Brasil, é perturbador e excitante. O diretor explora muito bem a ironia nessa história de humor negro, ambição, tropeções e tragédia. Por Raquel Gandra (*), da redação.

“Sonho de Cassandra”, filme de Woody Allen mais recente a estrear no Brasil, é inteiramente baseado na ironia. Na ironia da vida e do destino. Neste sentido, o filme segue a linha de “Match Point”.

Em “Match Point”, um jovem ambicioso, instrutor de tênis, entra em ascensão quando se casa com uma mulher rica. Apesar de sua mais nova posição adquirida na alta sociedade, ele não se vê satisfeito e conquista uma moça irresistível, freqüentadora do grupo de amigos da família. Tudo parece estar indo bem, até que ele engravida a moça e esta exige atitudes. Numa decisão drástica, o personagem interpretado por Jonathan Rhys Meyers decide matá-la e, ao fazê-lo, comete alguns erros que normalmente seriam fatais para sua descoberta como autor do crime. Entretanto, aí vem a ironia que prometi, ninguém descobre. Ele vira um suspeito sim e o chefe de polícia até mesmo sonha com o resultado certeiro, com a solução das investigações, mas mais uma vez isso é deixado de lado. Todos os grandes acontecimentos do filme dependem do acaso: a velha ser atacada, o anel que não cai no rio, e assim por diante.

Em “Sonho de Cassandra”, dois irmãos também ambiciosos se vêem endividados e pedem ajuda do tio rico, ausente, mas admirado e tido como o exemplo de sucesso da família. Apesar do tio já ter ajudado os “meninos” em outros momentos no passado, dessa vez será diferente. Ele pede algo em troca. Algo não tão fácil de se fazer.

Tudo ocorre em torno do acaso e da sorte. O irmão mais velho, interpretado por Colin Farrell, vive apostando e passa o início todo do filme numa grande maré de sorte, até que o destino vira o jogo e ele se endivida mais do que poderia imaginar. Já o outro, interpretado por Ewan Mcgregor, conhece o que ele pensa ser a mulher de sua vida (que é por sinal custosa e interessada em estabilidade financeira) devido a um carro quebrado no meio da estrada. Há também o elemento do sonho e da loucura, representados pelo barco que os irmãos compram no começo da história, o qual nomeiam “sonho de Cassandra” em homenagem ao cachorro com o qual Terry (Colin Farrell) ganhou na corrida o dinheiro necessário para comprá-lo (sendo este nome e símbolo de sorte um dos elementos mais trágicos e irônicos da história) e pela crise nervosa pela qual o mesmo passará, o impedindo até mesmo de dormir direito.

Como em Match Point, essa almejada inserção na alta sociedade é um fator importante para os personagens, mas principalmente para Ian (Ewan McGregor), que finge ser alguém de sucesso, pegando carros chiques e caros emprestados da loja de mecânica onde seu irmão trabalha.

A trilha sonora de Phillip Glass gera o clima de tensão e expectativa convenientes a narrativa. A fotografia é escura, em tons bem londrinos, lembrando o clima “foggy”, o nublado constante, e o próprio caráter do filme de drama misturado com humor negro. Os atores estão ótimos.

Mais uma vez, do momento em que os protagonistas decidem seguir com o plano, nós acompanhamos as dificuldades impostas pelo acaso para que a ação se complete. A partir daí, quando tudo parecia ter dado certo, a consciência, ironicamente, intervém na história para gerar arrependimento e crises moralistas. Nesse processo vemos a decadência dos personagens, que passarão de “terem resolvido seus problemas” para “terem criado outros maiores ainda”.

“Sonho de Cassandra” é perturbador e excitante, pois podemos ver para onde o filme está se encaminhando, mas não podemos fazer nada. Enfim, Woody Allen explora muito bem a ironia nessa história de humor negro, ambição, tropeções e tragédia.

(*) Raquel Gandra é repórter cultural da Revista Consciência.Net na área de cinema.

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Resenha cultural: Estômago

(…) A participação de Paulo Miklos não passa despercebida e João Miguel está ótimo. Seu personagem vai crescendo nessa história fantástica, meio sombria, com momentos cômicos e de puro deleite. Por Raquel Gandra (*), da redação.

Mais um bom filme da safra brasileira. Mais um bom filme com João Miguel.

Estômago começa com uma longa apresentação de créditos, mas sem muitas informações sobre o passado do protagonista, Raimundo Nonato, apenas cenas dele andando por uma cidade não especificada, que poderia ser São Paulo, aparentemente perdido. Através dessas cenas e dos diálogos que se seguem, deduzimos que ele veio do Nordeste sem muitos planos, mas querendo trabalhar e fazer uma vida na “cidade grande”. Essa falta de contextualização acaba sendo ótima para o desenrolar do filme, que se trata de…

…um rapaz recém chegado, sem ter para onde ir ou o que comer, que é acolhido de forma um tanto não hospitaleira por um dono de boteco, para quem devia algo em torno de quatro reais por causa de duas cozinhas de galinha que comeu sem ter dinheiro para pagar. Em troca de moradia e alimento, Nonato começa a cozinhar e limpar no boteco e inesperadamente desenvolve uma ótima mão na cozinha. Esse novo dom descoberto acaba o levando a um restaurante mais chique, onde o gerente vai ensinar-lhe algumas das maiores lições da culinária.

As cenas da vida pós chegada são intercaladas com imagens de um aparente futuro numa prisão, sem sabermos como ou porque Nonato foi parar lá.

A história é muito bem construída pela montagem paralela, em que o espectador vai descobrindo aos poucos quem é Raimundo Nonato, porque ele está na cadeia e em que direção ele está indo. Isso possibilita as descobertas da trama num bom ritmo, tempo suficiente para gostarmos dele, nos apaixonarmos por ele, por sua meiguice e sagacidade ingênua.

A trilha sonora é interessante, com momentos de deleite através de uma música lenta e meio brega que é repetida ao longo do filme.

Há elementos de fantasia, como as situações geradas pelo protagonista ao deliciar seus companheiros de cela, seu relacionamento com a prostituta Íria, o seu próprio desenvolver na cozinha, etc.

A fotografia é meio escura, sem muitas cores, a não ser as dos alimentos ou das exageradas relacionadas ao mundo da prostituição e da “noite boêmia”. Não há grandes “frufrus” fotográficos: a câmera na mão estável, planos próximos dos personagens muito bem pensados para a construção da história e de nossa identificação com os mesmos.

Há várias cenas de observação, em que a música sobe e podemos acompanhar o desenvolvimento da trama através das imagens ou cenas em que o personagem de João Miguel narra em off. Algumas dessas são geniais, como a que ele está chegando na cadeia, a que ele descreve seus companheiros e as vantagens do segundo beliche, dentre outras. E claro as “duas” cenas finais.

Um probleminha que senti foi que a atmosfera de que todos eram brutos e falavam palavrões não me convenceu. Achei um pouco forçada essa tentativa de tornar TODOS durões e mal educados. Principalmente o personagem do gerente do restaurante, que tenta de todas as formas parecer alguém que, apesar da posição social e da áurea em torno de ser dono de um estabelecimento respeitado, é grosseiro e com valores mesquinhos. Algumas piadas até ficam perdidas no meio dessa tentativa absurda. Não me convenceu. Os melhores personagens realmente são os prisioneiros, que contrariamente conseguem manter uma ambigüidade coerente entre a personalidade durona e os momentos solidários e bem humorados.

A participação de Paulo Miklos não passa despercebida e João, como já falei, está ótimo. Seu personagem vai crescendo nessa história fantástica, meio sombria, com momentos cômicos e de puro deleite.

(*) Raquel Gandra é repórter cultural da Revista Consciência.Net na área de cinema.

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Resenha cultural: Irina Palm

“Irina Palm” é um filme que consegue se manter razoavelmente neutro: não julga moralmente as decisões de Maggie. Ao mesmo tempo em que nos enojamos e sentimos pena dela, empatizamos com sua situação, entendemos suas motivações e até mesmo apreciamos certas reviravoltas em sua vida. Por Raquel Gandra (*), da redação.

“Irina Palm” é um filme sobre uma mulher viúva, em seus cinquenta anos, que, vivendo uma vida pacata, vazia, costumeira, sem grandes acontecimentos e conservadora, vê sua família em dificuldades. Uma doença rara acomete seu neto e exige um tratamento específico e caro. Felizmente os médicos conseguem colocar o menino num programa de tratamento gratuito, mas na Austrália. O que significa que os gastos de viagem e hospedagem terão que ser pagos pela família. Para piorar a situação, tempo é algo crucial para a vida do menininho. Num prazo de algumas semanas, será tarde demais para este poder viajar.

A partir daí, essa mulher, que até então “não sabia fazer nada”, como dizem suas “amigas”, tem que se virar pra conseguir esse dinheiro seja lá onde for. Após vários empréstimos recusados, tentativas frustradas de emprego e decepções, ela entra num local que diz necessitar urgentemente de secretária. Atordoada, Maggie (nome da personagem que mais tarde será conhecida como Irina) entra, para só depois descobrir que aquele era um local de homens (clube de strip e coisitas mais…) e que secretária era eufemismo para, com o perdão da palavra, punheteira.

Apesar da temática sugestiva, o filme se mantem sem grandes cenas explícitas ou de “mau gosto”, o que, além de interessante e mais rico para o filme, vai de acordo com a própria personagem: faz, mas não vê completamente. Às vezes, e principalmente no início do filme, este se torna um pouco lento, arrastado, mas a entrada dela nessa nova vida dá uma sacudidela em ambos, filme e personagem.

Maggie passa a se apreciar mais, se valorizar, mesmo que de uma forma inesperada. O que começa como algo nojento e degradante passa a ser uma profissão capaz de lhe dar um bom dinheiro e uma função na qual ela é muito boa. Seu novo dia-a-dia a afasta de suas antigas amigas, mulheres esnobes e preconceituosas com quem passava a maior parte de suas tardes.

A fotografia é escura, indo de encontro com a vida incolor daquela família classe média baixa em crise, aquela sociedade meio decadente em que avós e mães de família têm que se rebaixar a funções cretinas para sustentar ou ajudar seus entes queridos.

“Irina Palm” consegue se manter razoavelmente neutro, ou melhor, não julga moralmente as decisões de Maggie, deixando para o espectador determinar se tais atitudes são certas ou erradas. Há uma ambigüidade interessante: ao mesmo tempo em que nos enojamos e sentimos pena dela, simpatizamos com sua situação, entendemos suas motivações e até mesmo apreciamos certas reviravoltas em sua vida.

O filme apresenta um panorama triste dessa cidade londrina: tanto seus pós-aristocratas conservadores medíocres quanto seus neo-operários patéticos dão uma noção escura aos seus arredores. Entretanto o filme consegue dar um “glimpse”, um estalo de esperança, havendo situações cômicas e até mesmo um relacionamento envolvente entre “Irina” e seu “cafetão”.

Se o filme soubesse explorar melhor os tempos vazios, seria melhor, creio. Mas do jeito que está já é uma história que vale a pena ser vista.

Ficha técnica:

Irina Palm (Bélgica, Luxemburgo, Inglaterra, Alemanha e França, 2006, 103 minutos)
Diretor: Sam Garbarski
Roteiro: Philippe Blasband, Sam Garbarski, Martin Herron
Fotografia: Christophe Beaucarne
Montagem: Ludo Troch
Música: Ghinzu
Elenco: Marianne Faithfull, Miki Manojlovic, Kevin Bishop, Siobhan Hewlett, Dorka Gryllus, Jenny Agutter
Produtor: Shu Aiello
Produtora: Entre Chien et Loup
Distribuição internacional: Pyramide International

(*) Raquel Gandra é repórter cultural da Revista Consciência.Net na área de cinema. Clique na imagem para assistir o trailer.

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Resenha cultural: Chega de Saudades

Laís Bodansky, diretora de ‘Bicho de 7 Cabeças’, conseguiu em ‘Chega de Saudades’ tirar personagens estereotipados do lugar comum e colocá-los como detentores de desejos, coragem, sensualidade e vontade de se divertirem. Por Raquel Gandra (*), da redação.

Segundo longa de Laís Bodansky, diretora de Bicho de 7 Cabeças, “Chega de Saudades” é um filme alegre, divertido e despretensioso.

A equipe técnica é composta pelo grande diretor de fotografia, Walter Carvalho, que cria uma atmosfera de muita aproximação dos personagens, câmera na mão, closes, etc, gerando uma estética de intimidade nada limpa nem certinha. Ele abusa da iluminação “brega” desse tipo de local (de baile), com seus amarelos e vermelhos fortes e néons.

As cenas de dança são filmadas de modo realista e quase bruto, ou seja, não há tanta uma preocupação em demonstrar os dotes de dançarinos dos personagens, quanto há de chegar na personalidade, nas intenções e nas emoções dos mesmos. Então não vá esperando uma coreografia de Carlinhos de Jesus filmada por Carlos Saura. Isso não significa que a dança não é importante. Ela é o meio, é o que perpassa todas as relações no salão. Apenas não há uma intenção em demonstrá-la de modo “perfeito” e enfeitado. O que nos leva ao cerne da história.

Lembrando a estética do filme “o baile”, de Ettore Scola, vários personagens interagem entre si, trocam e retrocam de pares, vivendo situações e repensando decisões. Duas horas de dança, razoavelmente mostradas em tempo real, que conseguem se aprofundar em questões humanas como a solidão, o amor, o ciúme e a traição, dentre outros.

Tonia Carrero está ótima como a namorada que se esquece das coisas e Stepan Nercessian também, como o mulherengo, que evoca a fala do filme “homem de baile não presta”. A homenagem a Zé Bonitinho, que tem cada vez mais reaparecido em curtas e longas, também é bem vinda no seu papel de homem que chegou bem perto da morte, mas voltou, pronto pra viver.

Assim como a fotografia é realista e por isso mesmo “deformada” de tempos em tempos, com seus closes incômodos, suas cores exageradas, seus planos instáveis, etc, os personagens também são pessoas com seus defeitos, suas recaídas, suas imperfeições enfim. E isso torna tudo mais atraente, chegando ao ponto que acho o mais interessante do filme. Quase todo o elenco é composto de cinquentões, sessentões e até setentões, mas isso não impede que “Chega de Saudades” seja um filme muito atual e, até mesmo, sensual.

É interessantíssimo ver como a diretora conseguiu tirar esses personagens estereotipados do lugar comum e colocá-los como detentores de desejos, coragem, sensualidade e vontade de se divertirem. Diferente da visão dos velhinhos das novelas das oito: pobres coitados, vítimas de seus netos mal educados; incapazes de resposta e estagnados seja na vida externa-social, seja na vida pessoal-sexual. Isso não impede que no filme haja também momentos tristes, preconceitos e barreiras a serem ultrapassadas, como na vida.

“Chega de…” atrai não só os mais velhos, que podem se identificar e se sentir motivados a sair e ir em busca de novas experiências, como também os mais novos, por verem como seu futuro poderia ser mais rico (do que ficar em casa fazendo palavras cruzadas), e também pelo aspecto descontraído e leve do filme, divertido para qualquer idade.

Para finalizar e inevitavelmente resumir, é muito inspiradora a forma como “Chega de Saudades” dá vida e personalidade àquelas pessoas tão estereotipadas na mídia e na vida em geral.

(*) Raquel Gandra é repórter cultural da Revista Consciência.Net na área de cinema.

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