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Hors concours

Da série “Coisas que só acontecem no Brasil”.

Apesar dos salgados preços das passagens de ônibus que os cariocas pagam em seu dia-a-dia – atualmente, as tarifas estão em R$ 2,75, mas já há um aumento previsto para os próximos meses, quando seu valor deverá chegar a R$ 3,05, o mais alto do país (!) –, o serviço de transporte público rodoviário no Rio de Janeiro segue de péssima qualidade.

Além de barulhentos e poluidores, com carcaças que mais parecem velhas peças de sucata, os ônibus que circulam pelo Rio são conduzidos por motoristas imprudentes e sem educação no trânsito, e que costumam agir como se estivessem dirigindo veículos de passeio particulares, fazendo pouco do fato de que têm em suas mãos as vidas de dezenas de pessoas.

Ônibus ocupam as três faixas de uma pista, tumultuando o já problemático trânsito carioca: falta de preparo dos motoristas é evidente, mas as empresas parecem não se preocupar muito com isso

Some-se a isso a desesperadora constatação de que a grande maioria dos coletivos, não obstante as temperaturas subsaarianas características do Rio de Janeiro, é desprovida de ar-condicionado, intensificando a sensação de desconforto dos passageiros, que já sofrem o bastante com o caótico trânsito da cidade.

Ate aí, porém, não há nada de tão original assim em termos de problemas associados ao transporte de massa, visto que outras cidades latino americanas provavelmente padecem de problemas semelhantes, com exceção, talvez, do desproporcional valor das passagens (os brasileiros, em geral, pagam mais caro por quase tudo).

No entanto, nos últimos anos, algumas linhas de ônibus vêm adotando um sistema que expressa o descaso – ou a cara de pau mesmo – dessas empresas para com os cidadãos. Trata-se do chamado Motorista Júnior (MJ), que, apesar do simpático nome, não beneficia ninguém a não ser os proprietários dessas companhias.

O MJ é a categoria que exerce a dupla função de dirigir o veículo e cobrar as passagens, dispensando a presença do trocador. Assim, o sistema obriga os já estressados e mal preparados profissionais a acumular mais uma tarefa, atrasa a vida dos passageiros e ainda oferece risco maior à sua integridade, já que, na prática, o MJ não espera todos os passageiros concluírem o pagamento e passar pela roleta para começar a andar.

E aí vem o mote para esta crítica, motivada por uma dentre as tantas coisas inacreditáveis que ocorrem neste país: apesar da extinção de um cargo profissional – o que, vale destacar, ainda diminui a oferta de empregos -, o preço das tarifas dos micro-ônibus ou “micrões”, nos quais o formato foi implantado, não apresenta diferença alguma em relação à frota com os sistemas convencionais (motorista + trocador); na realidade, não custa um centavo a menos.

Como acontece quase sempre no Brasil, ganham os empresários, cujas receitas estão em constante ascensão; os políticos, que, ao manter a máfia dos ônibus cariocas “livre, leve e solta” por meio de pseudolicitações, garantem mais recursos para suas campanhas eleitorais; e perdem os cidadãos, que são obrigados a pagar mais por um serviço cuja qualidade, já combalida, parece ser alvo de um permanente esforço em prol de sua regressão.

Realmente, o Brasil é hors concours.

Um câncer difuso

As mazelas são muitas, mas uma das piores pragas deste país é o corporativismo.

Altamente nociva, principalmente quando se dá no âmbito público – já que, nesse caso, pode-se prejudicar um país inteiro –, a prática pode ser comparada a um câncer que impede a regeneração e, por consequência, o bom funcionamento, de um dado sistema.

Correm na mídia situações emblemáticas, que envolvem acontecimentos absolutamente crônicos nos níveis municipal, estadual e federal das esferas política e policial brasileiras.

Vide, por exemplo, o caso do embate entre o presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia, e o Supremo Tribunal Federal (STF) em torno da cassação automática dos mandatos políticos dos réus condenados no julgamento do Mensalão, decisão esta que o dirigente se nega a cumprir.

Pode até ser que Maia tenha algum tipo de respaldo jurídico para dizer que não acatará a ordem dos magistrados – por mais improvável que isso pareça –, mas o que importa nesta discussão é que, não fosse a força do protecionismo mútuo, calcado em vistas grossas, que impera em Brasília, o mais provável é que ele não tivesse assumido essa briga.

Se o presidente da Câmara se expôs dessa forma foi porque está plenamente ciente de que questões como ética e moral são prontamente sobrepostas pelos interesses fisiológicos que correm nas artérias e veias da casa.

Com isso, na hora dos escândalos, o que vale mesmo é apelar para as entrelinhas da Constituição, aproveitando-se das brechas jurídicas para salvar o mandato ou as economias do colega.

Por mais escandaloso que seja o argumento, e ainda que a imagem do Congresso saia manchada, a estratégia segue se sustentando como a melhor opção, até porque, por lá, quase todos têm o rabo preso.

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No caso das polícias, o exemplo mais gritante é a forma como se dão as investigações e julgamentos relativos a processos envolvendo a conduta de PMs. Como as ações tramitam sob a forma de Inquéritos Policiais Militares (IPMs), os resultados são, quase sempre, favoráveis aos agentes da corporação.

Recentemente, o Capitão Dennys Bizarro, que foi FILMADO pegando os pertences do coordenador do Afroreggae, Evandro João da Silva, das mãos dos bandidos que o haviam assassinado a tiros, no Centro do Rio, em 2009, foi promovido a major da PM.

Quase três anos após o assassinato, a Corregedoria da Polícia Militar optou pelo arquivamento do processo, o que possibilitou a promoção do policial, que não só deixou de prestar o serviço pelo qual é remunerado, isto é, proteger o cidadão, como ainda liberou os criminosos.

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Os casos citados são apenas dois em um universo de dimensões de difícil mensuração, quanto mais se for considerado o fato de que o corporativismo se faz presente em qualquer ambiente profissional – na realidade, tal prática começa em casa, na vizinhança, na comunidade, mas sob outras roupagens, como o amor familiar e o senso de comunitarismo, o que não necessariamente é algo grave, posto que, nessas esferas, não se é obrigado a agir segundo os preceitos de uma ética profissional.

No entanto, trata-se de casos significativos, que estão na ordem do dia dos brasileiros, por prejudiciais que são ao cotidiano dos cidadãos.

São pontas de um iceberg cuja base se mantém em profundidades às quais boa parte dos holofotes da mídia não tem acesso, e onde até mesmo a Justiça tem dificuldades de se movimentar.

Porque o corporativismo não é como uma ciência exata, mas um conceito subjetivo e, por isso, difuso – qualidades que o mantém quase que à prova de provas.

Mensagem de fim de ano

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência (…). A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!’ Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim?”

Tiros em uma escola nos Estados Unidos; Sarney na presidência da república e Renan Calheiros perto de assumir novamente o Senado; políticos aumentando seus próprios salários; mortes nas rodovias brasileiras no recesso de natal; crianças morrendo de fome na África; ditadores comandando guerras para manter-se no poder…

É, mais um ano que chega ao fim, inspirando novos desejos e expectativas, mas, em paralelo, trazendo notícias que, não fosse pela data registrada no alto da página, poderiam perfeitamente se passar por fatos há muito publicados.

Infelizmente, trata-se de informações frescas, que “insistem” em aparecer nas manchetes de jornais, revoltando, mas também narcotizando os leitores, os quais, frente a tamanho mar de lama, não resistem à instalação de um desalentador sentimento de impotência.

Repetições infernais que remetem – em uma interpretação um tanto quanto leiga e, talvez, perigosamente simplista – à teoria do Eterno Retorno, de Friedrich Nietzsche (1844-1900), exemplificada na passagem citada ao início deste texto, extraída de sua obra A Gaia Ciência (1882).

Embora não haja exato consenso quanto ao sentido do conceito desenvolvido pelo filósofo alemão, entende-se que o Eterno Retorno implica na constante alternância de vivências e sensações, como a alegria e a tristeza, bem e mal, angústia e prazer – variações estas que estão na essência do devir.  Assim, estaríamos presos a um número limitado de fatos, que se repetiriam no passado, presente e futuro.

O que o demônio de Nietzsche diz tem coerência e, de fato, tal fala carrega algo de desesperador, ao traduzir aquilo que seria um ciclo inexorável de repetições. Mas nem tudo está perdido. Afinal, como o próprio autor dá a entender, tal teoria não representa uma negação, mas uma afirmação da vida, posto que, já que não somos imortais, não estaremos eternamente sujeitos a essa que seria uma verdadeira tortura psicológica.

Além disso, a busca pela superação das dificuldades e pela felicidade – ainda que isso configure uma forma de repetição – é um dos aspectos que valorizam e dão sentido à vida, o que, de certo modo, pode ser um alívio para aqueles que buscam uma resposta imediata, pronta e acabada para o que o ser humano veio fazer na Terra, e sobre como precisa agir para atingir esse suposto objetivo (e, no fim das contas, ter seu lugar ao céu).

Portanto, que, nesta virada de ano, homens e mulheres preocupem-se menos com o que o destino lhes reserva, e procurem renovar suas energias a fim de protestar e lutar, cada um à sua maneira, contra as injustiças e tragédias que veem ao seu redor; que se preparem para chorar e gozar dia após dia, sem se deixar, na medida do possível, inebriar pelo enjoativo cheiro de tudo aquilo que é tediosa e revoltosamente crônico.

Uma questão de princípio

É difícil imaginar que um princípio como o dos Direitos Humanos não seja integralmente apoiado pela sociedade, onde, ao menos no plano teórico, todos os indivíduos  são considerados iguais perante a Lei. Surpreendentemente, contudo, o que acontece na prática é que a causa segue alternando picos de popularidade que oscilam entre o céu e o inferno, seja por razões políticas, por conveniência ou ignorância mesmo.

Se há denúncias de genocídio na África, matanças de civis na Síria ou indícios de abusos em Guantánamo, nos EUA, a população mundial, via de regra, aplaude de pé a atuação de grupos ligados aos Direitos Humanos, que se prontificam a protestar contra a covardia e o desrespeito à vida e à dignidade das vítimas.

Por outro lado, quando esses mesmos grupos denunciam abusos e até extermínios em favelas e periferias brasileiras durante operações policiais – avalizadas, portanto, pelo próprio governo –, são prontamente alvejados por uma saraivada de críticas por parte daqueles que acreditam que a repressão violenta é a melhor saída para conter a criminalidade.

Tais críticas, que, em sua maior parte, são proferidas por cidadãos que vivem tranquilos em suas residências no asfalto, se tornam ainda mais raivosas quando o que está em questão é a vida de um criminoso. “Bandido bom é bandido morto”, vociferam do alto de seus apartamentos, onde dificilmente serão atingidos por balas perdidas ou sofrerão a invasão de policiais sem mandado de prisão.

É claro que sua ira não é de todo infundada. Afinal, nada mais asqueroso do que a figura do criminoso, que vive a parasitar o cidadão que ganha a vida honestamente. No entanto, isso não pode servir de justificativa para que o Estado passe por cima das leis que ele mesmo estabelece. Matar um bandido após sua rendição está errado; ponto final. De outra maneira, abre-se um perigoso precedente para que inocentes – ou mesmo bandidos de baixa periculosidade e que poderiam ser recuperados – sejam também executados

Cabe sublinhar que a grita contra os Direitos Humanos é também fomentada, nos bastidores, pelos próprios representantes do governo. Do ponto de vista eleitoreiro, a prática é altamente estratégica, já que os governantes sabem que não há nada mais profícuo do que uma mostra de força e poderio militar para ganhar votos da população, a qual se sente constantemente insegura em função da violência de cujo ciclo participa ativamente o próprio aparelho repressor do Estado.

Assim, seguem em voga as operações “enxuga-gelo” nos guetos brasileiros. Matam-se bandidos, é claro, mas, em paralelo, inocentes também são mortos. E, no fim das contas, a população continua a viver com medo, em lugares onde o único braço presente do Estado é o armado.  E, para quê? Para exibir na TV 15 fuzis e 200 kg de cocaína e maconha apreendidos, além de meia dúzia de traficantes peixes-pequenos mortos, quando quem enriquece de verdade com o tráfico está em sua cobertura de frente para a praia? De que adianta o esforço e o gasto milionário com essas operações se tudo isso será reposto na semana seguinte, com auxilio de grupos corruptos infiltrados no próprio governo?

É absolutamente descabido qualificar o discurso pró Direitos Humanos como um entrave ao combate à violência. Assumir essa posição é cair na demagogia política e estimular a manutenção de um modelo de segurança pública baseado em ações espetaculosas, pouco eficazes, que escondem as raízes do problema e deixam em segundo plano o que realmente deveria estar sendo discutido e implementado pelo Estado: a inclusão social, por meio do acesso à educação e serviços básicos de qualidade – algo que nem mesmo as midiáticas UPPs resolverão por si só.

Que neste dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, sejam repensadas as críticas feitas aos defensores e militantes da causa. Afinal, trata-se de uma questão de princípio, e não de um ode ao afrouxamento da repressão à criminalidade.

Violência regulamentada

A explosão de assassinatos na Grande São Paulo, já oficialmente atribuída à ação de organizações criminosas, demonstra, em última análise, como a “luta” contra o crime no Brasil consiste  muito mais em um processo contínuo de negociações escusas do que em uma real tentativa por acabar com a violência ou reduzi-la a níveis efetivamente satisfatórios – como costumam declarar as autoridades.

Geraldo Alckmin, governador de São Paulo: em momentos de crise, o que as autoridades fazem para ludibriar a população é cortar cabeças, como os times de futebol fazem com seus técnicos. Já era de se esperar, portanto, que o secretário de Segurança do estado caísse. O problema é que o buraco é bem mais embaixo.

Segundo analistas, a onda de crimes que vem varando as madrugadas na região metropolitana do estado seria uma retaliação a execuções de criminosos cometidas por policiais, hipótese que chegou a ser confirmada por autoridades em entrevistas a jornais de grande circulação. Em uma das reportagens, o delegado geral da Polícia Civil de São Paulo revelou que policiais acessaram a ficha criminal de pelo menos uma das vítimas das execuções, o que reforça o caráter premeditado dessa e, possivelmente, de outras ações.

Como sempre, muitos dirão que a polícia está certa e que bandido tem mais é de ser morto, seja legal ou ilegalmente – não importa se à queima-roupa, após se render, ou pelas costas. Tal pensamento, no entanto, deixa de lado o fato de que o trabalho da polícia, ao ser operacionalizado dessa maneira, está abdicando da inteligência, o que redundará, sem sombra de dúvida, em resultados práticos muito menos significativos.

Isso sem contar que o apoio à violência policial – ou melhor, a qualquer tipo de violência – denota um perigoso posicionamento, que, no fim das contas, dá asas a ações extremadas, de caráter fascista, que não cabem em um regime essencialmente democrático. Vale, inclusive, lembrar que não são raros os casos de execução de inocentes por policiais, os quais são recorrente e convenientemente registrados como autos de resistência.

No mais, é importante destacar que, por estar adotando uma prática que, no âmbito das relações entre as autoridades e o crime organizado, é vista como antiética, a polícia de São Paulo está sendo indiretamente responsável pelos assassinatos que o país tem acompanhado, os quais também tiveram, entre suas vítimas, diversos policiais.

Agora, após a irresponsabilidade de PMs e policiais civis do estado mais rico do país, as autoridades terão de negociar com os “cabeças” do crime organizado algum tipo de trégua, que implicará, no máximo, à volta dos índices anteriores de violência, que, por sinal, ainda estavam longe de se equiparar àqueles registrados em países de primeiro mundo.

Para tanto, terão de ser redefinidas as áreas de atuação de traficantes e sequestradores, bem como limites para a própria polícia, que também se verá forçada a dar garantias ao crime organizado de que suas facções poderão continuar a trabalhar em paz dentro das fronteiras pré-estabelecidas.

Enfim, a dinâmica das relações entre as autoridades e o crime está longe de ser o que aparece diariamente nas páginas policiais. Tamanhas são a intimidade e a promiscuidade entre os dois lados que a sensação que fica é que existe aí uma assustadora interligação, cuja melhor expressão remete ao conceito de crime organizado – uma forma de atuação que envolve a infiltração, a mistura e o relacionamento constante com governantes, possibilitando-lhes, assim, deter certo controle sobre a criminalidade, ao mesmo tempo em que permite aos bandidos obter determinadas garantias.

O que se vê em São Paulo, portanto, não deixa de ser um fenômeno que está associado à regulamentação não oficiosa do crime por parte do Estado – talvez sua face mais perversa. Disso os jornais certamente não falarão.

 

 

Vida de colônia

Apesar do vasto e rico vocabulário da língua portuguesa, nada mais indicado do que o uso de um termo chulo para expressar indignação quanto a determinados acontecimentos. Neste momento, cabe explorar o desvio como recurso catártico – a fim de purificar, minimamente, nosso já combalido espírito – em referência aos anúncios de aumentos de preço de serviços básicos e impostos LOGO APÓS o período eleitoral.

Portanto, com o perdão do leitor, aí vai: só podem estar de sacanagem com os cidadãos cariocas!

Primeiro, veio a notícia do aumento do IPTU em 30%, depois de o prefeito Eduardo Paes, antes de sua reeleição, ter garantido que não iria autorizar tal incremento. Em seguida, dois anúncios desalentadores: a tarifa dos ônibus da cidade aumentará em 11%, passando dos atuais (e absurdos) R$ 2,75 para (revoltantes) R$ 3,05, a partir de janeiro de 2013; e, para concluir a festa, a Light, que atende a 3,5 milhões de consumidores no estado do Rio, aumentará em 11,85% a conta de luz, percentual este que supera os níveis de inflação.

Tais novidades já seriam o suficiente para tirar o cidadão do sério, principalmente pelo fato de terem vindo à tona tão logo findaram as eleições, o que traduz o jogo sujo e perverso que os políticos fazem com o eleitor.

No entanto, se levado em conta um contexto mais amplo, no qual se insere a pesada carga tributária a que o brasileiro está sujeito – sem que isso implique, em absoluto, no retorno em forma de atendimento de qualidade por parte do Estado –, e, consequentemente, nos exorbitantes preços que paga por produtos e serviços, tais anúncios assumem um caráter ainda mais provocativo, de verdadeiro deboche com o cidadão.

Aspecto este que se torna ainda mais grave se for considerada a hipótese de que, nos valores absurdos com que o brasileiro se depara nas prateleiras, estão embutidos gastos que os empreendedores têm com políticos, que, não satisfeitos com seus desproporcionais e absurdos privilégios já previstos em lei, costumam exigir, como se sabe, “contrapartidas” para aprovar empreendimentos no país. Assim, aumentam-se preços para amortizar o “investimento extra”.

Some-se a isso a sensação de que as empresas, tanto nacionais quanto estrangeiras, parecem superexplorar o consumidor brasileiro, o que talvez se deva ao histórico colonial que marca a trajetória do país e/ou a um exagerado deslumbramento do cidadão tupiniquim com o status que determinados bens eventualmente simbolizam.

Isso ficou mais que evidente após a publicação de um artigo na revista Forbes, no qual o autor, Kenneth Rapoza, ridiculariza os preços pagos por carros considerados de luxo no país. Apesar de destacar o peso dos impostos, o jornalista dá a entender que o brasileiro, no fundo, confunde preços altos com qualidade. “Sorry, Brazukas (sic). Não há status em comprar Toyota Corolla, Honda Civic, Jeep Cherokee ou Dodge Durango; não se deixe enganar pelo preço cobrado”, comenta Rapoza.

Outro exemplo de abuso é o que acontece com a internet no país, onde o usuário paga R$ 79 reais por uma conexão de 1 mega. Enquanto isso, na França, paga-se R$ 2,78 por 19 megas; nos EUA, R$ 5,66 por 5,2 megas; e (pasmem!) no Japão, R$ 0,52 por 66 megas.

Enfim, a moral é que, no Brasil, paga-se muito e recebe-se pouco. No fim das contas, de 500 anos para cá, pouco mudou nesta supercolônia dos trópicos, à exceção de sua posição no ranking das maiores economias globais – o que, pelo visto, pouco importa em termos de qualidade de vida para seu povo.

Um hábito que persiste

A Polícia Militar brasileira parece mesmo levar a sério o lema “Primeiro a gente atira; depois, pergunta”, passando por cima – como um verdadeiro rolo compressor – de um dos mais importantes princípios constitucionais: o da presunção da inocência ou da não culpabilidade.

Na noite do último domingo (26/10), o sargento Márcio Perez de Oliveira matou o estudante Rafael Costa, de 16 anos, em Cordovil, na Zona Norte do Rio. O motivo? Um dos pneus do carro que o jovem dirigia (sem habilitação) estourou, levando o policial a confundi-lo com o de tiros.

Policiais despreparados, quando não mal intencionados, continuam matando inocentes em proporções inaceitáveis. Segundo levantamentos recentes, as PMs de São Paulo e Rio estão entre as polícias que mais matam no mundo

Assim, sem pestanejar, o “profissional de segurança”, que é pago com recursos públicos para preservar a vida dos cidadãos, decidiu executar aquela que deveria ser a última ação recomendada: atirar contra o veículo. E, como persiste o absurdo de armar policiais de plantão em qualquer esquina da cidade com fuzis usados nas mais violentas guerras, os tiros de grosso calibre não deram chances para o rapaz.

Enquanto o governo do estado e a prefeitura seguem se vangloriando (e se reelegendo) por sua espetaculosa política de segurança pública – que tem o apoio da mídia basicamente por estar fechando um cinturão de segurança no entorno da Zona Sul carioca –, a polícia militar continua com os mesmos problemas de sempre.

Mesmo porque situações como a de ontem não são, em absoluto, isoladas. Sem contar a violenta atuação da polícia nas favelas, onde entra atirando e, após matar, ou desaparece com o corpo da vítima ou alega que se tratava de mais um traficante de alta periculosidade, a PM apresenta em seu histórico recente uma série de casos semelhantes ao supracitado.

Em 2008, por exemplo, dois PMs atiraram contra o carro dirigido pela advogada Alessandra Amorim Soares, matando seu filho, João Roberto, então com nove meses de idade, depois que ela parou seu carro para dar passagem à patrulha. Apesar da atitude correta da motorista, os policiais disseram que confundiram o carro com o automóvel de criminosos que estavam perseguindo.

Em julho deste ano, em São Paulo, policiais militares mataram o publicitário Ricardo Prudente de Aquino, de 39 anos, depois que ele não obedeceu à ordem de parar em uma blitz. Na mesma noite, em Santos (SP), PMs atiraram 25 vezes (!!) contra um carro em que estavam seis jovens, matando o passageiro Bruno Vicente de Gouveia e Viana, de 19 anos. O motorista, segundo os policiais, teria furado o bloqueio montado por eles.

O que se vê é que, independentemente do comportamento do cidadão que é abordado pela PM (nos casos de Cordovil, no Rio, e de São Paulo e Santos, a atitude dos motoristas foi incorreta), de sua inocência ou não, a polícia militar brasileira segue praticando um modelo de atuação violento e evidentemente inadequado.

Se já é errado matar um traficante à queima roupa, depois de sua rendição, como se sabe que a PM faz recorrentemente, o que dirá atirar contra motoristas simplesmente porque se supôs que se tratava de criminosos.

Não adianta, contudo, colocar a culpa inteiramente sobre os ombros da Polícia Militar. Afinal, a corporação responde aos comandos do Estado que, por sua vez, atua para servir aos interesses da população. Desse modo, se boa parte das pessoas seguir aplaudindo o selvagerismo policial, o governo não mexerá uma palha para alterar esse modelo.

Afinal, é muito mais fácil seguir matando pobres do que integrá-los socialmente. O problema é que essas balas, vez ou outra, acabarão ricocheteando no asfalto carioca. E aí, a vítima pode ser de outra estirpe – branca, de classe média ou alta. Nesses casos, não valerá de nada ter dinheiro no bolso. A única diferença será a repercussão na mídia.

Verdade e conveniência

“A unanimidade comporta uma parcela de entusiasmo, uma de conveniência e uma de desinformação”.

A frase acima é de Carlos Drummond de Andrade, que, em toda sua genialidade, foi capaz de chamar atenção, de modo sucinto e contundente, para uma questão para lá de complexa: a produção de verdades.

Trata-se de um tema particularmente espinhoso não só por envolver uma discussão abstrata, que problematiza algo que está longe de ser uma pauta assídua em mesas de bar e afins, mas por ser perigosamente provocativo. Afinal, questionar verdades significa mexer com respeitados e adorados arcabouços do saber que, há milênios, servem de referência para a humanidade, como a tradição, a religião e a ciência.

Se “entusiasmo” e “desinformação” são aspectos aparentemente mais tangíveis no âmbito dessa discussão – pois é consenso que a coletividade afeta a libido humana e a ignorância repele qualquer tipo de avaliação mais profunda por parte de um indivíduo –, a questão da “conveniência” como elemento balizador de verdades parece se situar num nível um pouco mais difuso.

Para começo de conversa, trata-se de um aspecto altamente subjetivo, pois o que é bom para uns, pode não o ser para outros. Em segundo lugar, é muito difícil uma pessoa admitir que acredita em algo simplesmente porque isso lhe beneficia de alguma forma ou a mantém em uma zona de conforto, seja porque não quer dar o braço a torcer ou, o que é mais provável, porque isso sequer se situa em seu plano consciente.

Hipóteses à parte, o fato é que nosso mundo é, em grande parte, construído sobre e sob verdades convenientes (o que não quer dizer que vivamos em um mundo da fantasia. Nossa realidade nada mais é que um grande conjunto de representações baseadas em estímulos naturais filtrados por nossos sentidos. Portanto, há de haver, sim, algum nexo com o que é física e quimicamente “real”).

Um exemplo banal a respeito desse assunto pode ser extraído do resultado de um estudo publicado esta semana em uma revista científica. A pesquisa concluiu que o hábito de beber mata mais que o de fumar, ao constatar que os homens alcoólicos que participaram do experimento apresentaram taxa de mortalidade quase duas vezes maior que os fumantes, ao passo que as mulheres alcoólicas, um índice 4,6 vezes superior que as fumantes.

Qual o porquê de tal resultado ter estampado tantas páginas de jornais?

O destaque certamente decorre do fato de que, embora o hábito de fumar seja cada vez mais defenestrado pela sociedade – vale lembrar que, além das recentes restrições a fumantes em determinados espaços públicos, o estímulo ao consumo por meio de propagandas foi proibido há tempos no Brasil, e, há alguns anos, as fabricantes de cigarros são obrigadas a manter nas embalagens de seu produto fotos e textos descrevendo os efeitos negativos da droga -, o uso do álcool continua sendo amplamente estimulado em comerciais que alvejam principalmente o público jovem, além de muito bem aceito em praticamente todos os círculos sociais.

Isso não obstante todos os evidentes e corriqueiros problemas do alcoolismo, que, não raro, leva não apenas o usuário à morte ao destruir seu organismo, como, indiretamente, pessoas que jamais ingeriram tal substância, tais quais vítimas de acidentes causados por motoristas bêbados.

Isso sem contar o incalculável prejuízo causado a um sem número de famílias que já foram arrasadas devido ao uso abusivo de álcool por parte de um pai ou mãe. Quantas crianças já não foram criadas em ambientes familiares degradantes em função desse problema? Os exemplos são muitos e já bastante conhecidos pela sociedade.

Ora, não poderiam estas pessoas ser categorizadas como alcoólatras passivos, em alusão ao fumante passivo, que já motivou tantas restrições ao cigarro?

A favor do álcool, porém, contam fatores como a tradição, dado que a substância é utilizada há centenas de anos pela humanidade – inclusive em rituais religiosos – e, principalmente, seu efeito altamente socializador.  Aspecto este que move não só a própria indústria de bebidas, como a de entretenimento, um dos pilares centrais de nosso sistema capitalista: festas, festivais, shows, boates e espetáculos de todos os tipos não seriam, para muita gente, o mesmo sem o consumo de cerveja e destilados.  É realmente difícil (e desconfortável) imaginar um coquetel da alta sociedade sem finíssimas bebidas ou uma festa de réveillon sem champagne…

Por outro lado, drogas menos glamourosas, como o cigarro, que deixa as pessoas mal cheirosas e com os dentes e bigodes amarelados, e a maconha, que não oferece nenhum grande estímulo socializador ou consumista, são prontamente discriminados pela sociedade.

Qual a real motivação para essa diferença no tratamento de tais entorpecentes? Seriam razões científicas, históricas, ideológicas?  Preconceito ou ignorância?

Verdade ou mentira, para o bem ou para o mal, a motivação é, no final das contas, apenas uma: conveniência.

A era dos memes

Que as criações audiovisuais estão cada vez mais sofisticadas, com recursos e efeitos especiais que intensificam o realismo das cenas, e atores e atrizes interagindo em sincronia quase que perfeita com as câmeras, em espantosa simbiose, não se discute.

Que o conteúdo de produções como Avenida Brasil – telenovela da Rede Globo que vem atingindo picos de audiência surpreendentes – é realmente de qualidade, também não se questiona, pois apresenta, de fato, grande riqueza teledramatúrgica.

Mas será mesmo que produtos da mídia como a novela de João Emanuel Carneiro se diferenciam tanto daqueles veiculados em anos ou décadas passados, a ponto de justificar tamanha discrepância em termos de índices de audiência ou repercussão país afora?

Seria tal fenômeno mérito exclusivo da produção ou existe aí alguma influência do incessante avanço do uso de ferramentas de comunicação por parte da população e pelos próprios veículos, que bombardeiam seus portais de notícias com flashes sobre cada capítulo da trama?

Qual será a piada envolvendo a Carminha em nosso jornal impresso de amanhã?

Seria injusto cogitar que Avenida Brasil deve seu sucesso à internet, até porque a novela conta com uma série de ingredientes que a tornam especialmente atraente ao grande público. Mas não se deve descartar a hipótese de que sua repercussão esteja sendo, em parte, motivada – e com isso, talvez, superdimensionada – pelo fato de as pessoas estarem se comunicando mais intensamente em uma rede que não para de se expandir.

Em apenas poucos capítulos, telenovelas ou qualquer outro produto que demande acompanhamento durante determinado período rapidamente se tornam uma febre, não por serem necessariamente fenomenais ou superiores aos de outrora, mas pela maior interação (em tempo real) entre as pessoas e, claro, pelo crescente estímulo ao consumo – condição sine qua non para que um indivíduo seja efetivamente integrado à sociedade.

Se, antigamente, quando o Faustão apresentava uma banda como sendo “o maior sucesso do país” o telespectador que não a conhecia eventualmente sentia certa angústia por estar por fora daquela “última novidade”, hoje, não acompanhar os desdobramentos de Avenida Brasil por meio dos milhares de memes em sites e redes sociais é quase que estar vivendo à revelia da História. Ou, pelo menos, é essa a sensação que fica.

Que a internet está conectando mais e mais as pessoas, todos já estão fartos de ouvir. Cumpre notar, porém, que, principalmente com a profusão de aparelhos móveis conectados à rede, as pessoas começam a viver, na prática, duas ou mais realidades em simultâneo: a física (teoricamente, a real) e a virtual, uma vez que passam boa parte do dia interagindo em um ambiente sem fronteiras, onde ficção e hardnews convivem lado a lado e, muitas vezes, assumem formas híbridas.

Nesse contexto, cabe relativizar o sucesso de algumas das produções culturais de hoje.  Fenômenos de audiência o são por contarem com fórmulas de sucesso cada vez mais precisas, ou porque, a cada atualização da página da internet, tem-se uma nova informação a seu respeito, o que estimula o interesse do público?

Certamente há um misto desses dois aspectos. Mas talvez a maior contribuição ao impressionante patamar a que algumas produções têm sido alçadas em pouco tempo – como o comercial da Luiza, que estava no Canadá – esteja associada a mudanças na percepção e tratamento do cyber-sujeito. Se, antes, os comentários do internauta repercutiam apenas em blogs e fóruns perdidos na internet, atualmente, o universo analógico, mesmo o impresso, se rende a suas trolagens. Hoje, os “avatares” são, acima de tudo, considerados preciosas fontes de informação, por consistirem em pontos de convergência e referência de novas tendências.

E não custa lembrar: de 140 em 140 caracteres, enche-se o papo da galinha.