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Cristologia Cristofacista de Bolsonaro

bolsominionCristo, o Ser:
eis o embate do Reicht
(Dotrothee Sölle)
O inferno é, assim, (produzido ou não) o lugar onde
 o governo do mundo sobrevive para sempre,
ainda que de forma puramente penitenciária
(Giorgio Agamben)
Desde as manifestações de 15 de março, os setores bolsonaristas e o próprio Bolsonaro vêm forçando a associação da figura do presidente com qualidades que o associam a figura do Cristo, apresentando-o como messias, ungido e eleito da nação. Esse novo jogo promovido pelas lideranças religiosas e da base política do governo é mais um apelo a fim de reagrupar as forças com a intenção de legitimar as medidas ultraliberais e amortecer sua impopularidade. A apresentação de Bolsonaro com características cristológicas (de Cristo) dá um novo folego ao cristofascismo à brasileira, sendo uma forma mais refinada de sensibilizar setores religiosos, que mesmo em tão pouco tempo vinham já se descolando do governo.
Características cristológicas na figura de Bolsonaro pós-15M
Impressiona como a luta política no Brasil vem ganhando outros enredos e espíritos. Atenta-se que tão logo que ocorriam as manifestações de 15 de março as propagandas em prol do governo se intensificaram na arena em que demonstra mais força: as redes sociais. Em primeiro lugar no whatsapp. Na chuva de publicações, comumente chamadas de memes, divulgadas pelo aplicativo, selecionei duas peças para exemplificar o esforço em associar a imagem de Bolsonaro a um caráter messiânico. Na primeira figura, o apelo não poderia ser mais explícito: “Ele encarou a Globo, a Folha de São Paulo, Reitores Esquerdistas, a Classe Artística privilegiada. Ele encarou o sistema e não ficara sozinho”. Na segunda peça, vemos a sugestiva imagem de um cavaleiro templário segurando a bandeira brasileira. Os dizeres são igualmente diretos: “vamos salvar o Brasil. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”.
As duas figuras passam a ideia de um Bolsonaro que bravamente luta pela nação contra seus inimigos textualmente enumerados: a classe artística, a Globo e os universitários. A ideia de salvação abre a segunda montagem, na qual o cavaleiro medieval reforça o caráter caricatural. Em conjunto, os memes representam um caso típico de messianismo político travestido de linguagem religiosa-salvacionista.
Além dos memes, nas redes sociais o próprio presidente (ou sua assessoria) postou, publicado no dia posterior às manifestações de 15 de março, o vídeo do pastor Steven Kunda (congolês radicado na França). No vídeo, o pastor confirma Bolsonaro como enviado divino escolhido para guiar o Brasil: “Aceitando ou não, você, seja de esquerda ou de direita, o senhor Jair Bolsonaro é o Ciro do Brasil. Deus o escolheu para um novo tempo, para uma nova temporada no Brasil, profere o congolês. Para quem não entendeu a referência, o pastor compara Bolsonaro a Ciro, importante rei persa usado por Deus retirar o povo de Deus do exílio, segundo os textos bíblicos. É interessante, pois, os manuais de teologia clássica apontam que Ciro foi “ungido” por Deus. Teologicamente, unção recebe a conotação de “escolha”, alguém “separado para algo”. Destaco que o termo dado a Ciro, como “ungido por Deus”, no Novo Testamento se traduz como “Cristo”, logo outra aproximação messiânica e ligada a Cristo de Bolsonaro.
As ações de Bolsonaro para construir a imagem salvacionista não se limitaram às redes sociais. No domingo dia 26, dez dias após as primeiras manifestações, o presidente esteve no Rio de janeiro, para participar do culto da Igreja Batista Atitude na Barra da Tijuca. Na ocasião, o pastor Josué Valandro chamou (novamente) Bolsonaro para subir ao púlpito com sua mulher. Após a oração, cedeu o microfone. Suas palavras foram emblemáticas: “é bom estar no meio de gente que tem Deus no coração”, afirmou no início do discurso. Contou as dificuldades em colocar em prática o que prometera na campanha, indicando sua “via dolorosa”. Assim, ao indicar tais dificuldades, um martírio que vem passando se liga a imagem do próprio Jesus torturado, injustiçado, reforçando ideia de sacrifício e sofrimento, que, aliás, é algo que já vem desenvolvendo desde o atentado à faca. Nesse sentido, seu discurso avança aos presentes na igreja. Diz na sequência: “que eu não agradeça a Deus pela minha vida. Nos momentos mais difíceis, por mais que eu ame a minha esposa, eu não queria deixar minha filha órfã. Se estou aqui é porque eu acredito nessa nação, se os Senhores estão aqui é porque acreditam em Deus. Juntos e somente com a força de vocês, nós poderemos governar”.
Como se vê em sua mensagem, a todo o momento apela à fé, à força da família, à defesa do projeto em nome da nação. Amplifica seu discurso divino, fabrica sua particular “guerra dos deuses”1, terminando da seguinte forma o discurso na igreja: “Meus Irmãos da Igreja Atitude, Brasileiros de todos os rincões dessa nação maravilhosa, vamos juntos, tendo Deus no coração, colocar o Brasil no local de destaque que ele merece.
 Malafaia
Além do próprio Bolsonaro, a imagem messiânica do governo foi reforçada por apoiadores religiosos. O pastor Silas Malafaia gravou um vídeo, dizendo que a eleição do Bolsonaro foi um milagre e ele é um “ungido de Deus para essa nação, e preparando o povo para um ‘momento drástico’ para que a ‘igreja triunfe’. No vídeo, o pastor indica que Bolsonaro governa por interferência de Deus, e quem está contra está condenado ao inferno. Chega ao ponto de argumentar que viriam de Satanás todas as críticas e contestação ao seu “escolhido”. É mais uma imagem que remonta a Cristo, o ungido, nesse caso, Bolsonaro o presidente “ungido” que vem sendo injustiçado por todos, pelo diabo.
Cristofascismo à brasileira
Esse conjunto de imagens cristológicas sobre a figura política de Bolsonaro, que ora se identifica com messias político religioso, ora com um servo sofredor que governa no calvário, reforça seu projeto cristofascista brasileiro. Seu cristofascismo promove-se por meio de uma teologia política que se pauta supostamente na democracia, mas que, ao mesmo tempo, baseia-se no ódio democrático e com clara disposição autoritária, na qual, uma das técnicas de sua governança é promover o terror no caldeirão de posturas de discriminação, ódio, preconceito, racismo ante aos setores “heterodoxos”. Nessa equação, são utilizados discursos que aludem ao cristianismo numa investida contra seus inimigos: professores, militantes de esquerda, indígenas e LGBTQI.
É verdade que o cristofascismo não é um termo novo. Foi utilizado pela teóloga alemã Dotrothee Sölle, em 1970. Com ele, Sölle indica o projeto cristofascista seria “traição aos pobres, uma arma milagrosa a serviço dos poderosos (…) a serviço das famílias tradicionais do centro-europa preocupadas com a paz sem a paz incômoda Cristo (…). Quando projetam politicas truculentas de ódio e discriminação em nome de uma pretensa igreja cristã2. Analisando as relações de integrantes do partido nazi com as igrejas cristãs no desenvolvimento do estado de exceção alemão, Sölle percebeu que o governo nazista se utilizou das relações e até das terminologias cristãs para sua composição, assim como se reconhece tal mecanismo relacional no governo Bolsonaro.
Além disso, ao destacar conceitualmente o cristofascismo é preciso indicar o que se está chamando de fascismo. Fixo o conceito a partir do filósofo Walter Benjamin, o qual entende que a barbárie fascista não é um estágio de regressão civilizacional, mas está contida nas próprias condições de reprodução da civilização burguesa se beneficiando “da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, da moral, da família considerado como uma norma histórica”, transformando todo nacional em um “estado de exceção efetivo3.  Assim, em seu projeto autoritário, o governo Bolsonaro se projeta a partir da defesa de uma concepção conservadora da família, da moral e da eliminação de seus adversários a partir do estado de exceção continuo.
Cristologia cristofascista contorcida em meio á guerra dos deuses…
Nesse sentido, nesse novo jogo promovido pelas lideranças religiosas e da base politica do governo se a faz opção de blindar o presidente cristofascista Bolsonaro por meio de uma cristologia profana apresentando-o como messias, ungido e eleito da nação. É mais um apelo a fim de reagrupar as forças para manter a duras chicoteadas a implementação de medidas ultraliberais recheadas com ódio, discriminação e racismo. Assim, a apresentação com características cristológicas dá um novo folego ao cristofascismo à brasileira, sendo uma forma mais refinada de sensibilizar setores religiosos, que mesmo em tão pouco tempo vinham já se descolando do governo, bem como também, afinar-se na direção das massas que nunca foram tão próximas no apoio.
Finalmente, não gostaria de esquecer o conceito de Michael Löwy quando indica que a estilização do poder no interior da vida política passa pela “guerra dos deuses”4. Ou seja, a política possibilita também um conjunto conflitos logo a produção especializada de teologias. Portanto, um marco temporal é fundamental: a partir do dia 15 de março os setores bolsonaristas, e o próprio Bolsonaro, vêm forçando novamente uma série de aproximações e de plataformas para atrair novamente sua base eleitoral. O que se está vendo é uma nova modulação da “guerra dos deuses” que vem pintado a figura de Bolsonaro publica/politica com características que passam por Jesus Cristo, martirizado e morto pelo império Romano. Portanto, afirma-se que vem ocorrendo no governo Bolsonaro mais uma forma de profanação politica de Jesus Cristo em prol do status quo neoliberal governista.
Fontes consultadas:
https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2019/05/19/interna_politica,1054989/bolsonaro-publica-video-de-pastor-que-o-aponta-como-escolhido-de-deu.shtml; https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/o-enquadramento-politico-de-deus/?fbclid=IwAR0Ls9Wk0Wdj0S8UQgLIEsZkyZCEsOAoPUFerYa76GqfXLotJYG2jYmvOkQ; https://www.diariodocentrodomundo.com.br/em-video-divulgado-por-bolsonaro-pastor-congoles-diz-que-jair-foi-enviado-por-deus-para-governar-o-brasil/; https://www.brasil247.com/pt/colunistas/geral/394286/Apesar-do-‘apoio-divino’-parece-inevit%C3%A1vel-a-queda-de-Jair-Messias-o-ungido.htm; https://leonardoboff.wordpress.com/2019/03/25/a-blasfemia-de-jair-bolsonaro-que-deus-acima-de-todos/; https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,tuites-relevam-relacao-de-apoiadores-de-bolsonaro-com-religiao,70002835719; https://glo.bo/2JGuTcd?fbclid=IwAR1PY5GNha87q-mCQp7X_6eIvuXB7YBnVa6PmFCQZFNeohM5e_aAtTMqf0Q;
 
1 Michael Lowy, A guerra dos deuses, Petrópolis: Vozes, 2000.
2 Dorothee Sölle, Beyond Mere Obedience: Reflections on a Christian Ethic for the Future, Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1970, p.81-83.
3 Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de historia” de 1940.
4 Michael Lowy, A guerra dos deuses, Petrópolis: Vozes, 2000.

Deus, serpentes aladas e o profeta: o que a vocação de Isaias pode contribuir contra as violências nos terreiros?

Notícia nova para um assunto que, tragicamente, tem se tornado comum: novamente recebemos a informação de mais um templo de religiões de matrizes africanas  violentado por fieis de igrejas evangélicas. Dessa vez, o foco da ação foi o terreiro Vó Benedita, Casa de umbanda que fica na Vila Ipê em Campinas, São Paulo. A nota publicada pela Casa atacada traz os detalhes da violência. O templo foi alvejado por pedras, os carros estacionados tiveram pneus furados. No desfecho, os umbandistas chegaram a ser ameaçados de morte (https://cartacampinas.com.br/2019/05/terreiro-vo-benedita-e-atacado-com-pedras-por-fanaticos-religiosos-em-campinas/).
Nas redes sociais, a repercussão maior foi nos grupos de umbanda. Segundos os testemunhos, as hostilidades duraram uma semana. De acordo com a narrativas, o foco das agressões seria uma igreja evangélica vizinha ao terreio. Os problemas começaram na sexta-feira, 27 de abril, quando no culto, a partir de uma mensagem, foi incentivado o apedrejamento das Casas de Santo. No sábado posterior, a Casa foi apedreja. Ao longo da semana, integrantes do terreiro tiveram três carros com pneus furados. Na quinta-feira, dois de maio, uma adepta da igreja visitou a proprietária do imóvel questionando a razão pela qual alugava sua casa aos “macumbeiros”. A conversa terminou quando a proprietária recebeu o convite para ir à igreja.
Os apedrejamentos ao terreiro continuaram até o sábado, quatro de maio. Além disso, duas pessoas do terreiro foram assediadas. Agora, o mais sério. Um dos integrantes da igreja evangélica proferiu ameaças de morte, anunciando que iria buscar uma arma para matar os membros do terreiro, pois, segundo o “cristão”, os umbandistas não teriam “Deus no coração”. Por conta das intimidações, os religiosos do terreiro fizeram um Boletim de Ocorrência (BO) denunciando os agressores e a igreja.
Intransigência evangélica e a crítica bíblica da vocação exclusivista de Isaias  
Após esse conjunto de ações e de intimidações ao povo do terreiro Vó Benedita, praticados por evangélicos, foi feita uma postagem na rede social sobre o ocorrido. A postagem alcançou o apoio quase completo nas redes. Contudo, uma das mensagens merece destaque. Nela, um seguidor evangélico disse literalmente: “Nós, crentes, que temos a unção de Isaias, devemos profetizar tal como o profeta fez na sua vocação, Deus não se mistura com o satanismo”.
A postagem vernizada com preconceito foi rapidamente rechaçada pelos seguidores. Contudo, as palavras do comentário estão longe de serem uma exceção no movimento evangélico. Na verdade, mostram uma faceta difundida por grande parte dos cristãos, marcando uma mentalidade discriminatória com uma postura exclusivista em relação à fé de pessoas de diferentes religiões. Basicamente, tal postura se apoia na ideia e que o Deus cristão é único e verdadeiro.
Enquanto teólogo, preocupado com as consequências da intransigência evangélica, gostaria de contestar esse exclusivismo justamente a partir do elemento que supostamente lhe dá base, ou seja, a leitura dos “originais” bíblicos tal como a Reforma Protestante insistia. Para isso, busca-se desarmar tal mentalidade exclusivista aproveitando o comentário do fiel citado, praticando-se um exercício traditivo de algumas características do texto da “vocação de Isaias” – Isaias 6.
A narrativa bíblica é ambientada no Templo de Jerusalém. Contam os versículos, que o profeta Isaías vê Deus sentado sobre o trono, cercado por anjos serafins. Gostaria de chamar a atenção a essa figura: os serafins. Em hebraico, serafim pode ser traduzido numa primeira vista por nehustan. Sobre as nehustan, as versões da Bíblia Almeida, contam que são seres alados: “Serafins (nehustan) estão parados acima dele, seis asas para cada um. Com duas cobrem seu rosto. Com duas cobrem seus pés. Com duas voam”.
Saindo um pouco do mundo protestante das versões de Almeida, a versão católica de “A Bíblia de Jerusalém”, muito se aproxima dessa tradução ao também destacar as asas dos anjos: “Acima dele, em pé, estavam sefarins (nehustan), cada um com suas assas: com duas cobriam a face, com duas cobriam os pés, e com duas voavam”. Ocorre que em uma observação mais atenta à Bíblia de Jerusalém se percebe uma indicação no mínimo sugestiva sobre as nehustan. Na nota de rodapé, em tradução, os serafins poderiam ser qualificados “abrasadores” (“seres envolvidos de fogo”).
Para melhor entender a enigmática figura dos “abrasadores”, é necessária a leitura de outro texto bíblico, o de Números 21,6. Nele, para surpresa, está escrito: “Então Deus enviou contra o povo serpentes abrasadoras (nehustan) cuja mordedura fez perecer muia gente em Israel”. Ou seja, a figura mitológica dos sefarins se refere a serpentes. Uma imagem diferente da concepção pueril dos anjos que ocupa o imaginário cristão. Na verdade, a categoria serafim remete à Idade Média, quando, a partir da teologia de Agostinho, se consolidou uma rica angeologia, abordando um conjunto de anjos e suas hierarquias. Portanto, a angeologia é algo muito posterior aos tempos bíblicos. Ora, usando a coerência ao seguir os originais bíblicos, nehustan deveriam ser traduzido simplesmente como: “serpentes aladas abrasadoras”. Ou seja, divindades femininas em forma de cobras que voavam pelo Templo de Jerusalém sendo adoradas como parte do culto de Judá. Assim, na visão do profeto Isaías, Deus está rodeado de serpentes aladas. Claro, que isso é um problema teológico sério para o monoteísmo, afirmado sobre o lastro de uma divindade.   
Nesse esforço de tradução de um pequeno trecho dos originais bíblicos, se percebe, com as serpentes aladas posteriormente convertidas em serafins na Idade Média, que existiam outras divindades nos cultos a Deus entre os povos bíblicos, algo absolutamente impensado pelo imaginário cristão no Brasil de hoje, fortificada absolutamente sobre a perseguição às demais tradições religiosas.
Caminhos de critica na luta contra a violência
Como consequência, esse pequeno exercício teológico parece revelar que a ideia de um monoteísmo puro, tão caro à mentalidade evangélica, não se mantém. Ao contrário, uma interpretação teológica mais aprofundada aponta que o monoteísmo cristão se recriou a partir de outras referências religiosas. Relendo, recriando e trazendo divindades para dentro do seu sistema religioso, nesse caso, as nehustan na vocação de Isaias.
Penso que percepção das veleidades do monoteísmo cristão em sua relação com outras referências teológicas pode auxiliar no desarme das práticas belicosas do protestantismo-evangélico preocupado em promover uma caça dos territórios de outras tradições religiosas, principalmente, aos povos de terreiro.
Portanto, o exercício feito junto ao texto da vocação de Isaias se ajusta no inverso das pretensões exclusivistas. O livro de Isaías não depõe contra a “mistura” religiosa, mas, sobretudo, propõe a abertura pluralidade de divindades de diferentes tradições dentro das celebrações vocacionais.
Diante de um cenário que aponta para a ampliação da intransigência evangélica, percebe-se que exercícios teológicos visando o desarme do exclusivismo deveriam se multiplicar, principalmente a partir de textos-chaves (ou, mais conhecidos) para apresentar ao menos outra narrativa muito mais de ponte e diálogo do que afirmação incisiva da fé. É claro que as casas missionárias protestantes e católicas não têm interesse de patrocinar esse projeto. Pois, sobretudo, suas estruturas religiosas estão enraizadas no exclusivismo, que normalmente se banha da afirmação truculenta religiosa. Cabe, então, ao caminho de uma teologia crítica, construir canais em prol da promoção de paz religiosa.
Assim, volto a afirmar que, enquanto teólogo, não gostaria de oferecer (apenas) as desculpas pelo ocorrido no terreiro de Vó Betina, mas, também indicar que mesmo os próprios povos bíblicos cultuavam a diferentes divindades. Por isso, a crítica teológica é tão urgente e necessária. Pois, ajuda o questionamento monoteísta. Portanto, se entende que não adianta o protestantismo-evangélico ser revisto apenas ‘por fora’, pois pouco vai dizer as suas igrejas e fieis. Mas, deve ser construir um movimento de revisões e críticas internas para descolar de sua vocação ocidental dura, preconceituosa, em prol de uma possível convivência com as demais tradições religiosas.
Fontes consultadas:
https://cartacampinas.com.br/2019/05/terreiro-vo-benedita-e-atacado-com-pedras-por-fanaticos-religiosos-em-campinas/?fbclid=IwAR3r3uthsdMZpBBfdhr5oJfFmKDItcNeXDDLb5XZrj-6t_GSleuUgsgJ6-Q; https://www.acidadeon.com/campinas/cotidiano/regiao/NOT,0,0,1420674,umbandistas+denunciam+pedrada+e+ameacas+em+terreiro.aspx; https://cartacampinas.com.br/2019/05/terreiro-vo-benedita-e-atacado-com-pedras-por-fanaticos-religiosos-em-campinas/.
 
Bibliografia utilizada:
PY, Fábio. “Não basta pedir desculpas: deve-se desarmar o cristianismo por dentro”. Instituto Humanistas Unisinus (IHU), São Leopoldo. Em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/588130-nao-basta-pedir-desculpas-deve-se-desarmar-o-cristianismo-por-dentro.
REIMER, Haroldo. Inefável e sem forma. Estudos sobre o monoteísmo hebraico. São Leopoldo: Oikos; Goiânia: Ed. da UCG, 2009.
RIBEIRO, Osvaldo Luiz. Nehushtan: pesquisa exegética, fenomenológica e histórico-social sobre a origem, a supressão e o suporte social do culto à serpente de bronze em Israel com base em Nm 21,4- 9; Is 6,1-7 e 2 Rs 18,4. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, Rio de Janeiro, 2002.
SANT’ANNA, Elcio. Mito cosmogônico. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Seminário Batista do Sul do Brasil, Rio de Janeiro, 2002.

Não basta pedir desculpas: deve-se desarmar o cristianismo por dentro

A violência faz-se sagrado
(René Girard)
Ler o que nunca foi escrito
(Walter Benjamin)
É com grande tristeza que se recebe outra notícia sobre mais um templo de candomblé destruído. Foi na segunda-feira, 25 de março, na região de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (no link: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/03/29/terreiro-de-candomble-e-depredado-em-nova-iguacu-religiosos-foram-expulsos.ghtml). Segundo os religiosos do próprio terreiro, eles foram expulsos pelos traficantes, que queriam transformar o centro em uma base para comércio de drogas. Nas fotos, se percebe que a violência foi completa, com a destruição de vasos, de utensílios, de altares. Dois detalhes dessa violência merecem ser (ainda) mais destacados. Primeiro: no muro de fora do terreiro foi escrito: “Jesus é o dono do lugar”.  Segundo: no ano passado o mesmo terreiro foi invadido e impedido, por um tempo, de realizar suas celebrações religiosas. Esses dados são importantes porque indicam uma violência contínua nas favelas contra os terreiros, e que, de alguma forma, os violentadores se relacionam com o protestantismo-evangélico, embebido com o fundamentalismo. Em um exercício teológico, porém, observa-se que tal fundamentalismo violador não se sustenta no que é lhe é mais elementar: a leitura bíblica a partir ‘dos originais’.
A territorialidade evangélica e seu vínculo com o fundamentalismo
Sobre tal violência, gostaria de destacar pontualmente as inscrições no muro do terreiro com a citação em alusão a Jesus, indicando uma territorização cristã do local. Quero deixar claro que não gostaria de discutir se os traficantes são ou não cristãos, evangélicos. Minha preocupação é, antes, perguntar que cristianismo é esse recebido por eles, que leva adeptos ou simpatizantes a praticarem tamanha brutalidade ao expulsarem e destruírem os templos de pessoas que professam outra religião.
É possível argumentar que especificidade da violência cristã nas favelas fluminenses tem sua origem no início do século XX, quando grupo de batistas e presbiterianos americanos escreveram um conjunto de panfletos e livros chamados “Os fundamentais” da fé cristã. Em tais documentos buscavam promulgar os pontos básicos do cristianismo, isto é, seus fundamentos.  Aqueles que seguiam os pontos dos panfletos passaram, a partir de 1920, a se autodesignar fundamentalistas, preocupados em desenvolver uma revisão simplificadora do cristianismo.  Em suma, os fundamentalistas defendiam que a Bíblia seria um livro “inerrante” (sem erros). Acrescente um importante detalhe: os arautos dos fundamentos bíblicos eram patrocinados, em grande parte, pelo dinheiro do petróleo e da indústria do ferro americanas.
O Brasil recebeu uma leva desses fundamentalistas protestantes no fim da década de 1920. Com ímpeto missionário renovado, apresentam novo vocabulário de desprezo às práticas religiosas do país. Embora a primeira leva de missionários fundamentalistas tenha chegado ao Brasil nas primeiras décadas do século XX, o movimento tomou novo fôlego durante a Ditadura Militar. No período, o fundamentalismo missionário se renovou, passando a indicar que o cristão, diferente de Jesus Cristo – que era pobre e galileu-, também tinha direito a ter prosperidade na terra, a benção. Esse novo movimento assumia uma forma de pentecostalismo com novas roupagens unindo, cristianismo e a lógica do mercado neoliberal, numa vertente amplamente conhecida como a “teologia da prosperidade”.
É dessa teologia que vem a ideia da territorização cristã, tragicamente exemplificada com a inscrição do nome de Jesus no terreiro de candomblé destruído. Um símbolo da tomada de posse de um espaço sagrado. Essa violência é mais uma luta por higienização via discurso religioso operado nas áreas das favelas. Também é o reflexo de circuitos de missionários americanos que reatualizam o imperialismo via apologética cristã.
Não estou afirmando que no Brasil não se produziu uma forma autônoma e independente de cristianismo. Contudo, digo que elas foram impulsionadas pelo ímpeto americano de evangelizar o mundo. Como cristão e teólogo, ao perceber o quão longe pode chegar a violência religiosa praticada por meus pares, não acho que basta pedir desculpas por mais um templo de candomblé destruído. Não acho que baste. Diante de uma violação tão horripilante, a proposta é ‘operar’ a retirada do pavio da dinamite, tal como indica Walter Benjamin: “antes que a centelha chega á dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado” (Walter Benjamin, Rua de mão única, 1995, p.46).
Exercício para cortar a centelha da pólvora: os ‘inícios’ da Bíblia hebraica
No esforço de tentar cortar a centelha da dinamite, é preciso reconhecer que as numerosas modalidades de movimentos fundamentalistas nas diferentes épocas dificultam a possibilidade de um o protestantismo-evangélico menos belicoso. O que é muito sério, pois os evangélicos têm por fundamento teológico, os relatos da Bíblia. Então, minha proposta de exercício aqui é analisar um dos textos bíblicos mais importantes na tradição judaico-cristã, o famoso texto de Gênesis 1,1, que abre a Bíblia. No texto, a maioria das versões das Bíblias protestantes traduzem os primeiros versos como “No princípio Deus criou o céu e a terra” (Almeida Corrigida e Fiel). Recentemente, a Nova Versão Internacional (NVI) optou por um caminho próximo: “No princípio Deus criou os céus e a terra”. Ambas as traduções foram produzidas sob incentivo das casas religiosas e missionárias evangélicas ligadas a alguma expressão do fundamentalismo. Assim, elas operam a tradução do termo “bereshit” por: “no princípio”.
É interessante, porque, se olharmos pelo menos uma tradução (mais) técnica católica (não ligada ao fundamentalismo protestante-evangélico) como a Tradução Ecumênica da Bíblia (a TEB), ela nos apresenta a seguinte tradução: “Quando Deus criou o céu e a terra”, percebe-se que a sentença da TEB modifica completamente a frase.  De “No princípio Deus criou” para uma indeterminação como “Quando Deus criou o céu e a terra”. Na explicação dos editores da TEB, no rodapé, afirmam ser essa opção mais fidedigna à fórmula “Em um princípio Deus criou o céu e a terra”. Ou seja, considerando que os textos de Gênesis são os mesmo entre evangélicos e católicos, a fórmula “em um princípio” é a que mais se aproxima do original.
Continuando o exercício e, portanto, fazendo uso das ideias da Reforma Protestante de acesso aos originais e a suas traduções, se percebe que nas primeiras palavras da Bíblia não se expressa nenhuma univocidade como as traduções financiadas pelo fundamentalismo protestante-evangélico preferem afirmar. Ao contrário, utilizando a tradução mais próxima do original (“Em um princípio”) nota-se se que a criação judaico-cristã é apenas uma diante das demais criações do mundo relatadas nos diferentes credos e povos. Tal tradução relativiza a criação da Bíblia hebraica. Portanto, como teólogo protestante-evangélico, o simples dado de rediscutir os “originais” (jargão tão caro à Reforma Protestante) pode ajudar a diluir as ideais do imperialismo disfarçadas nas casas missionárias. Auxiliando, quem sabe, a desarmar a centelha que cisma em correr e estourar diariamente a dinamite do racismo e da intolerância religiosa.
Finalmente…
É importante afirmar que tal exercício (e outros mais) podem ajudar na construção de uma agenda de diálogo entre as religiões, na luta por desarmar o cristianismo brasileiro, cada dia mais bélico, mais racista com as tradições religiosas vindas da África. Digo isso, enquanto teólogo porque acho muito pouco pedir desculpas aos povos de terreiro pelos ataques feitos em nome de Jesus. Antes, nós cristãos devemos construir uma agenda de revisão dos priorados para, aos poucos, desarmar nosso cristianismo belicoso por dentro, diluindo suas bases duras, apologéticas, cercadas, imperialistas. Por isso reafirmo: não basta pedir desculpas. Deve-se construir uma série de exercícios teológicos com traduções e as tradições da história da igreja, que poderiam ajudar no desarme do cristianismo brasileiro tão acostumado à depredação dos demais. Assim, por conta da nova destruição do templo de Candomblé feita sobre o nome de Jesus, assumo que o protestantismo-evangélico brasileiro merece ser revisto não só ‘por fora’, mas, principalmente, ‘por dentro’ mediante uma severa revisão de desarme de suas lideranças e das doses imperialistas que impregnam ativamente seus templos.
 
Fontes consultadas:
https://www.geledes.org.br/terreiro-de-candomble-e-depredado-em-nova-iguacu-religiosos-foram-expulsos/?fbclid=IwAR0o4hBJNUt3-iANMJOrHUY29JhrG-27IEHDAiO2AFhKd5E8NX2L991NObg; https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/03/29/terreiro-de-candomble-e-depredado-em-nova-iguacu-religiosos-foram-expulsos.ghtml; http://cbn.globoradio.globo.com/default.htm?url=%2Fmedia%2Faudio%2F254112%2Fterreiro-de-candomble-e-depredado-em-nova-iguacu.htm; https://extra.globo.com/casos-de-policia/dois-homens-sao-presos-dentro-de-terreiro-depredado-em-nova-iguacu-23559604.html

Menos uma flor no nosso jardim

Passei o dia engasgado, com algo preso no peito. É que algumas vezes, passei, falei, beijei uma flor. Na última vez trocamos meia dúzia de palavras de carinho. Recebi um daqueles abraços. Hoje, percebi que era despedida. Tinha uma voz potente. Não se aguentava nos gestos, nos muros, nas bocas e interjeições. Era uma voz dissonante nas políticas de esquerda, quando normalmente são ocupados por brancos, homens, letrados de classe média, que vivem no asfalto.
Seria candidata à prefeitura do Rio de Janeiro, na chapa encabeçada por Tarcísio Motta. Uma vida política foi interrompida. Era muito política, muito. Vinha da favela. Cria da maré. Mulher, pobre, negra, favelada, interseção que marca no Brasil um lugar de toda exclusão. Por isso, se destacou vocalizando o lugar de sentido distintos dos feitores de política oficial no Brasil. Linda e propositiva. Profunda e suave. Mesmo assim ouvia os pontos de todos e todas. Sempre se lembrando de onde vinha, ouvi ela dizendo certa vez: “tudo bem, gente, mas na favela, a questão que se pede são as creches para as mulheres trabalharem”. Assim, eu via Marielle, mulher, preta, pobre, de favela, que sempre pensava no chão que pisava. Vivendo as lutas necessárias. Todas. Acumuladas. Engasgadas…
Ontem, após participar de atos de sua memória. Vi seu enterro que me lembrou a memória da profecia bíblica. No tempo bíblico, o enterro era o momento de denúnciar, gritar os males, xingar os governantes e elites. A profecia/enterro era para bradar o que não se dizia no habitual. Era um espaço de permissão, denúncia. Era o instante do grito: “Ai!”, como tido em Isaias 10,1-2: “Ai, daqueles que fazem leis injustas, que escrevem decretos opressores,para privar os pobres dos seus direitos e da justiça os oprimidos do meu povo, fazendo das viúvas sua presa e roubando dos órfãos!”. Confesso que passei o dia todo nas profecias bíblicas, buscando suas poesias. Lembrando de profetas e profetizas da Bíblia: Isaias, Amós, Débora… Contudo, no noticiário percebi que estavam só falando das poesias, manifestações, atos. Os veículos oficiais e os governantes praticando a operação deslavada de tratar o crime como sendo mais um no número da violência das favelas, coisas do trafico de drogas, das guerras de facções. Com a operação tentam esconder, escorregar a resposta correta. Por isso, me permitam dizer: a vida da Marielle Franco foi-nos tirada em um ASSASSINATO tramado. Coisa da estética brutal militar. Coisa típica da truculência, arrogância e burrice dos oficiais milicos. Me desculpem: deram quatro tiros no seu lindo rosto para esculachar. Não foi um tiro. Foram quatro. Destruíram sua face, na tentativa de esfarelar sua memória. Não tiveram vergonha de fazê-lo em frente às câmeras, em um cruzamento. E, ainda por cima, deixaram uma assessora viva para contar a história. Não nos enganemos. Eles querem mostrar poder.
Não. Não foi a ‘simples’ linha da espiral de violência que nos levou a Marielle Franco. Mas sim, foi essa mania de dar poder aos militares no Brasil quenos levou uma filha da Maré. Os jornais oficiais, as elites, não podem apagar da memória esse dado. Marielle merece mais, muito mais do que estão oferecendo a ela. Mais chão. Mais concreto. Mais do sonho que o povo preto/preta, favelado, pobre, inunde o asfalto para cobrar com o dedo ao fronte a parte que lhe cabe nesse quinhão brasileiro. Sim, lembro o bom e velho Marx, que cortaram mais uma flor. A primavera há de chegar. Essa é minha oração ontem, hoje e eternamente… Marielle, seus gestos, falas e temas são nossos: desde ontem, ressuscitada está entre nós!!!
Foto: Reprodução internet.

Quatro anos sem a voz de trovão: Cícero Guedes, presente!

“A única reforma radical é aquela que dá terra ao camponês” – Ernesto Che Guevara.
Nesta semana completam-se quatro anos da morte do líder do Movimento dos trabalhadores sem teto(MST), Cícero Guedes dos Santos. O militante foi sofreu uma emboscada, em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeira, em 26 de janeiro de 2013, quando saía da Usina de Cambahyba, no assentamento que liderava na região. Localizado em um antigo engenho de açúcar, o assentamento inseria-se em um conglomerado de sete fazendo com mais de três mil hectares. Cícero liderava a ocupação mesmo após conseguir um lote em outro assentamento, o Zumbi dos Palmares, o maior do estado do Rio de Janeiro. Conseguiu o beneficio junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em 2002. Morto aos 43 anos, deixou cinco filhos.
O assassinato de Cícero Guedes é um símbolo trágico dos conflitos fundiários da região de Campos. A própria Usina de Cambahyba é mais um dos muitos latifúndios do Norte Fluminense, região que, desde a colonização, reúne uma aristocracia rural violenta. É de conhecimento geral que a ocupação da Usina foi vista como uma afronta ao poder das elites interessadas na área, mesmo após a propriedade ser indicada como improdutiva desde 1998. A ocupação visava pressionar o governo a expropriá-la e inclui-la nos programas de reforma agrária. Os assentados na Cambahyba sofriam reiteradas ameaças dos seguranças da Usina. Com a morte de Cícero, os seus verdadeiramente assassinos (os latifundiários, empresariado e governanças locais) querem mostrar que a vida é o preço pago a quem ousa contrapor-se aos que detém o poder. Indicam o preço que pagam aqueles que lutam por alguma forma de justiça social no interior do Estado do Rio de Janeiro. Lembramos que o latifúndio brasileiro do Norte Fluminense se apóia, sobre o trabalho escravo, o que é demonstrado nas estatísticas de serviço da região, de até das pontuais prisões dos latifundiários transvertidos de empresários na atualidade.
Esse dado é fundamental: o próprio Cícero Guedes veio para região num pau -de -arara direto de Alagoas. Desembarcou em Campos para trabalha/viver em situação análoga à escravidão, numa dessas relações de trabalho exploratórias tão comuns no interior do Brasil. Mesmo com o histórico de vida difícil nunca esmoreceu. Sua força se via nas falas, nas intervenções políticas, sempre pautando a importância da organização dos trabalhadores rurais, dos pequenos agricultores como forma de resistência e luta contra a estrutura colonial violenta do Rio de Janeiro. Contudo, deve-se destacar: foi a partir do MST que Cícero conseguiu se libertar da condição brutal de trabalho. Juntou-se em 1997 aos trabalhadores sem terra promovendo pelo movimento sua emancipação social.
Pessoalmente, foi marcante quando vi e o ouvi pela primeira vez dizendo que as feiras promovidas pelo MST do Rio de Janeiro no Largo da Carioca (Centro do Rio de Janeiro) era um ato político (a fala se encontra no vídeo abaixo). Sua força impressionava. Alto e com uma voz grave que colocava respeito, sempre que podia pegava o microfone para ecoar cantos de organização e de luta nas reuniões e festas. Emociono-me ao lembrar de tais momentos. Entretanto, Cícero não foi apenas um líder político, mas, sobretudo uma pessoa generosa. Não negava apoio a quem precisava como, por exemplo, em um dos movimentos realizados na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) para conclusão do RU (Restaurante Universitário). Ele participou da preparação da comida, serviu e ainda cantou no evento.
Por tudo isso, o professor Marcos Pedlovski escreve que Cícero não “tolerava fraqueza de caráter e descompromisso com as causas coletivas”.Um último detalhe: Além de líder político e pessoa notável, ele tinha importânciapor suas habilidades agrícolas. No seu lote cultivava banana e legumes, a partir de técnicas agrícolas sustentáveis, sendo referência em conhecimento agroecológico tanto pelos militantes da organização como por estudantes e professores da Universidade do Norte Fluminense (UENF). Tudo isso, fez/faz de Cícero uma figura notável, levando as elites fluminenses atramarem sua emboscada.
Contudo, não gostaria de terminar o texto sobre importante figura como do líder negro do MST, Cícero Guedes, evocando seus assassinos, mas sim, suas idéias e utopias coletivas. Elesempre colocou à disposição do horizonte seus irmãos e irmãs de caminhada, por isso, não se acomodou no seu lote conseguido em 2002, em Zumbi dos Palmares. Se tivesse ficado, provavelmente estaria vivo. Foi morto porque atualizar suas idéias de pratica de luta popular, organizando outro acampamento. Cícero deixa o incentivo de que a luta deve seguir até que haja terra para cada brasileiro/brasileira. Lutou bravamente com sua vida contra a estrutura fundiária brasileira, grossa algema que impede o aprofundamento da democracia brasileira. Questionar na prática de vida é um dos pontos fundamentais para transformação socialdo país encarcerado pelas elites anti-vida. Por isso, a luta de Cícero Guedes se faz presente. Mais do que isso. Ela urge! E, a promessa de que suas palavras, ações e gestos são e serão mais e mais cultivados estão entre nós. Sua morte não ocorreu em vão. Obrigado, Cícero, pelas poucas palavras, e pelo canto que rompia o silêncio da conformidade. Pode ter certeza, sua voz de trovão ecoa entre nós.
Cícero Guedes, presente!
Fontes de internet:
http://exame.abril.com.br/brasil/cicero-guedes-lider-do-mst-e-assassinado-no-norte-fluminense/; https://blogdopedlowski.com/2014/01/26/um-ano-sem-cicero-guedes-e-regina-dos-santos/; https://blogdopedlowski.com/2017/01/25/quatro-anos-sem-cicero-guedes/; http://www.global.org.br/blog/nota-do-mst-sobre-o-assassinato-do-cicero-guedes/;
Vídeos de Cícero Guedes:
https://www.youtube.com/watch?v=r-hGf_kyilQ
Na Feira do MST no Largo da Carioca:
https://www.youtube.com/watch?v=BIYVyy7RM8Y&t=1s
Entrevista sobre atuação e organização popular camponesa:
https://www.youtube.com/watch?v=D2Y3_2U79M0&t=209s
Lançamento de livro sobre trabalho escravo contemporâneo:
https://www.youtube.com/watch?v=R0U4QoHjzB0
Cantando “Chalana”:
https://www.youtube.com/watch?v=2adgCUggxA4

Internacionalização das intenções do conservadorismo batista de Curitiba

Não sai da cabeça uma das últimas reuniões no qual participei como professor do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil (STBSB). Era próximo (ainda) da posse do reitor Ms. Luiz Sayão, quando sinalizou o interesse re-alocar o vinculo com o Sul dos EUA – sendo sugestionado á antiga “Junta de Missões Estrangeiras de Richmond” (“Junta de Richmond”) – hoje, International Mission Board of the Southern Baptist Mission. Falou-se até de um professor da casa ir aos EUA para estudar sobre Teologia da Libertação. Algo engraçado. Pois, o que se iria estudar sobre a corrente progressista cristã numa geografia ligada com o pensamento conversador racista americano? Logo entendi que pensam em domesticá-la sob ímpeto imperialista americano.
Grande Curitiba, organizações batistas e conservadorismo
Não acho esse caso esporádico: uma iniciativa num seminário da Convenção Batista Brasileira (CBB). Para isso, lembro de igrejas e lideranças de Curitiba até porque foi um dos últimos escritórios IMB-SBM no país. De Curitiba lembra-se que na década de 1990 como funcionava como símbolo da boa governança do PSDB. Mostrava-se como o que o PSDB poderia governar as cidades e o país. A partir desse mito chega-se a uma das maiores igrejas de Curitiba, a Primeira Igreja Batista (PIB) de Curitiba, liderada pelo pastor Paschoal Piranguini. Líder que destilou seu anti-petismo desde a década de 2000, contudo em 2010, produziu um vídeo que viralizou na internet no âmbito da campanha eleitoral, ligando a “iniqüidade” com o governo petista. Na época chegou-se á indicar que esse era o posicionamento dos próprios batistas sobre o pleito eleitoral. Em seu vídeo o pastor promovia uma leitura no mínino anacrônico-publicitária do termo, associando-o ao governo petista. Quem respondeu á época o vídeo foi o então coordenador da Faculdade Batista Equatorial (FABETE), o Dr. Manoel de Moraes Ribeiro Junior, denunciando o pastor Paschoal Piranguini de manipulação curralesca nos esclarecidos batistas. Ora, se o pastor Piranguini não conseguiu forças com seus consortes para barrar a eleição de Dilma Rousseff, por outro lado, conseguiu (no ano seguinte) voltar ao cargo de presidente da CBB, ficando no cargo por dois anos (2011-2012). Paschoal Piranguini além de pastor é professor na Faculdade Batista do Paraná (a FABAPAR) responsável também por formar intelectualmente futuro pastores da região.
Quem assumiu o cargo de presidente da CBB após os mandatos de Paschoal Piranguini, foi o pastor L. Roberto Silvato, membro da Igreja Batista de Bacacheri (Grande Curitiba), no qual ocupou a presidência da CBB entre os anos de 2013 a 2014. Parece ter sido um acordo de cavaleiros pela boa imagem da Convenção Batista do Paraná ante a CBB de um para o outro. Se alinhando com o quadro de crescimento conservador no Brasil. A igreja de Bacacheri tem vínculos com a PIB de Curitiba, quando a PIB comprou terrenos e realizou cultos na formação da igreja de Bacacheri. Sobre a política ela participou da coleta contra corrupção, contra o PT quando ao todo “foram mais de 2 milhões em todo Brasil. (…) Nós fazemos parte disso, vamos continuar manifestando apoio até que sejam aprovadas. Artistas e líderes de todo país precisam se manifestar, como o fez a atriz Maria Fernanda Cândido no vídeo abaixo”, escrito numa das postagens do pastor. A igreja também tem um manual de participação política indicando que ela “não pode deixar de se posicionar-se politicamente (não partidariamente), e ensinar os membros a respeito de suas responsabilidades cristas” (p.5). Afirmam não serem favoráveis ao “irmão vota em irmão”, contudo, acreditam que devem buscar homens que temem a Deus porque são mais confiáveis ao trabalho político. Da mesma forma que Piranguini, Silvato também leciona na FABAPAR.
Entrevista de Deltran Dallagnol a Paschoal Piragine Júnior
É nesse ambiente religioso que se move o responsável pela força tarefa da Lava Jato, Deltran Martinazzo Dallagnol. Membro da Igreja Batista de Bacacheri, homem de fé – como se define. Na apresentação do processo da Lava Jato baforou frases pouco isentas contra Lula como “comandante máximo”, “grande general” da “propinocracia” – sem provas diretas. Sua argumentação compõe-se num moralismo de tons religiosos polarizando uma eterna diferenciação evangelical entre: a “cosmovisão mundana” e a “cristã”. Arrisca uma divisão da construção social brasileira da seguinte forma “Decisões estão na esfera do livre arbítrio da pessoa (…) o universo conspirou sob ponto de vista leigo, de uma pessoa que tem uma cosmovisão mundana, sob meu ponto de vista em razão de minha cosmovisão crista me parece que Deus está abrindo uma janela de oportunidade para mudanças e que depende agora de nossa ação de nos unir ao que Deus já está fazendo para transformar, para contribuir para transformação desse pais” (como disse no programa do pastor Paschoal Piragine Júnior).
Na sua campanha nacional contra corrupção defende que ela “rouba a comida, a escola, o remédio, a corrupção mata efetivamente. Quem rouba milhões, mata milhões”. Argumenta que no Brasil provoca o decifit 200 bilhões de reais por ano. Justa medida para acabar com os problemas (mais sérios) da fome e miséria. Dá impressão de que o problema do Brasil seria a questão da corrupção, sem questionar estrutura fundiária e alimentícia. O ardor só aumenta quando o procurador quando assume que o sistema penal brasileiro é ‘ameno’ nas penas. Parece não significar nada para ele ter uma população carcerária das maiores do Mundo. Difícil de acreditar que esse senhor visite semanalmente uma das unidades prisionais.
Circulação de missionários da IMB-SBM
Contudo, não é só isso. Deltran Dallagnol exagera um pouco mais. Numa outra fala demonstra seu puritanismo ao comentar sobre as diferenças do processo de colonização Brasil e EUA. Diz que quem “veio de Portugal para o Brasil foram degredados, criminosos. Quem foi para os Estados Unidos foram pessoas religiosas, cristãs, que buscaram realizar seus sonhos, era um outro perfil de colono”. Uma visão sobre a colonização muito simplificadora. Pois, os portugueses que cá vieram não era religiosos? Não eram formados de católicos? Também tiveram luteranos, anglicanos e presbiterianos – sem falar das demais formas religiosas. Além disso, a frase dá impressão de que a formação americana só se fez pelos puritanos ingleses. Entre eles, não haviam quem praticasse delitos? Lembrando que a ‘diversão’ principal dos colonos ingleses no território da Nova Inglaterra era praticar tiros nos índios. Parece que o procurador precisa fazer uma leitura mais atenta da formação da América, mas do que os missionários da IMB-SBM costumam detalhar.
Enfim, iniciei o texto falando sobre o que presenciei enquanto professor no STBSB, pois acredito não ser algo esporádico. Ocorre que nos últimos anos vem ocorrendo um re-agrupamento do vínculo das cúpulas batistas com os missionários americanos do Sul – fantasmas de antigos mundos racistas-escravocratas. Nisso, não se pode desprezar que Curitiba, com suas igrejas e seminário teológico se tornaram na ultima década local de circulação e produção intelectual ultra-conservador no Brasil. O dado pode ser facilmente percebido quando na FABAPAR, ministram aulas tanto os pastores Paschoal Piranguini e L. Roberto Silvato, quanto missionários americanos da IMB-SBM, como Marc Ellis e Alan A. Myatt. Para tanto, as simplificações religiosas das falas do procurador Deltran Dallagnol não são aleatórias. Fazem parte de uma forma de conservadorismo tido nas igrejas batistas da grande Curitiba, que se vinculam com o pior tentáculo do imperialismo yankee – aquele que cinicamente se notabiliza em nome do divino. Seus representantes se dizem evangelistas, contudo tratam de política em prol do gavião do norte. Lutam para criminalizar o projeto petista de apaziguamento das classes sociais, para facilitar seu imperialismo sob o país. Isso explica porque querem saber mais sobre a Teologia da Libertação. Buscam dominar a linguagem religiosa progressista latino-americana para persuadi-la: tanto mediante suas práticas em movimentos sociais, quanto, apresentando novos projetos de igrejas com (até) discurso social, mas comprometido com a verve empresarial-neoliberal.
Amigos e amigas, se me permitem, creio que Curitiba não deve ser (só) lembrada como capital/símbolo da boa governança do PSBD, mas, atualmente, deve ser celebrada como capital brasileira da chegada e circulação dos brancos, racistas e conservadores missionários da IMB-SBM. Ponta do imperialismo religioso yankee absolutamente interessando na destituição dos projetos nacionalistas, a fim de retornar seu ‘quintal de sua casa’. Por fim, é por essas (e por outras) que ouvi um burbulim de que cédulas do real aos poucos estão sendo trocadas pelo desenho do gavião americano e com o dizer na face oposta: “América para os americanos”.
(*) Artigo publicado originalmente na revista Caros Amigos.

Evangélicos contra estado criminal carioca e o golpe

Pensar a desobediência civil sob a ótica do Evangelho. Esse foi o polêmico tema da aula-ato, realizada no último dia cinco de setembro, em plena escadaria da Câmara de vereadores do Rio de Janeiro, na Cinelândia. O evento contou com a participação de quase cem pessoas. A maioria dos participantes se identifica de alguma forma com a identidade protestante/evangélica em sua vertente mais progressista. Na aula-ato, os religiosos rechaçaram as Unidades de Políticas Pacificadoras(UPP) e rejeitaram o impeachment de Dilma Rousseff.
Contra UPP e o estado criminal, o ativista Fellipe dos Anjos, utilizando-se de passagens da Bíblia (1Cor 1,27-28), destacou que levantar-se contra a opressão estatal é uma atitude legítima para os cristãos. Fellipe indicou que a leitura dos evangelhos mostra que Jesus não se deixou dominar pelo império romano. Ao contrario, lutou junto com os menores da época (órfãos, viúvas, prostitutas, pedreiros, pescadores, etc) contra o imperialismo romano. O também ativista Ronilson Pacheco, além de lembrar o sofrimento das vítimas das UPPs, abordou a segregação racial, destacando as lutas dos líderes religiosos negros, entre os quais, o norteameriacano Martin Luther King e o sulafricano Desmund Tutu.
Um dos momentos mais importantes da aula-ato, foi a leitura do “Manifesto Evangélico contra a legitimidade do Estado”. O documento indica que o impedimento de Dilma Rousseff seria um teatro armado pelo próprio estado brasileiro formalizando um ritual que combina uma série de gritos irreais, articulações obscuras, e de intencionalidade impenetráveis. O documento salienta que, assim como foi denunciado por Jesus, os mandatários do poder são um sepulcro caiado e, dessa forma, a desobediência civil é uma atitude legítima “desobediência e a desautorização do estado e das suas formas de imposição e gestão são, na verdade, um imperativo da vivencia de uma espiritualidade inspirada em Jesus”, afirma um dos trechos do manifesto.
Embora de tônica nitidamente evangélica, na aula-ato, houve participações de pessoas de outras tradições religiosas, como personalidades católicas e do candomblé do Rio de Janeiro, mostrando que o diálogo entre os diferentes setores religiosos se faz necessário.
O evento foi organizado por cristãos membros de comunidades circulantes do Grande Rio, que apresentam um caráter inclusivo e progressista. Aceitam pessoas de identidade LGBTT, assumem a responsabilidade social do cristianismo, lutam contra o racismo, questionam a estrutura fundiária brasileira, a mobilidade urbana e a assumem a discussão ecológica e em favor das populações empobrecidas urbanas. O setor também contraria as estruturas religiosas locais que apoiaram (por seus religiosos) a política higienista do governo explanado pelas mídias e empresários cariocas que tentam pacificar o cotidiano.
O seguimento não se identifica com as agendas evangélicas ligadas à bancada BBBB do congresso (Banqueiros, Biblia, Bala e Boi,) um braço responsável pelas ações que afunilaram com o impedimento da presidenta Dilma Rousseff – apelidado de ‘golpe-gospel’. No entanto, rejeitam também a política de implementação/consolidação das UPPs, que se formalizaram na coligação PMDB-PT. Acredita-se que as UPPS representam, de fato, invasão militar nas favelas cariocas no qual se tornou laboratório de políticas de exceção e de violações de direitos humanos e sociais.
Com a Aula-Ato do dia cinco, mostra-se que o setor evangélico é muito mais vasto do que a mídia oficial explora, diferente do que o senso comum quer crer. Existe uma fração de evangélicos que apóia políticas mais sociais, chegando a questionar o estado criminal carioca. Leva-nos a perceber que o que as mídias oficiais pintam seria uma caricatura antiquada recheada pelos bufões de intransigência: Marcus Feliciano, Silas Malafaia e Eduardo Cunha. Quando se percebe que nem mesmo os fieis das próprias igrejas desses lideres apóiam (todas) suas falas e/ou votam cegamente nos políticos por eles indicados.

Convenção Evangélica expulsa igreja que permitia batismo de LGBTs

Quem são os batistas hoje? Não é uma pergunta fácil de ser respondida. Até por que a denominação configura a terceira mais numerosa protestante-evangélica no Brasil, logo, tendo diferentes ramos e frações o compondo. Está atrás apenas da Assembleia de Deus e da Igreja Universal no número de fieis. É interessante vê uma igreja “tradicional” com tamanha promoção social aproximando-se em números das igrejas pentecostais e neopentecostais. Mas não é apenas isso. Historicamente essa estrutura religiosa foi um fenômeno protestante posterior das Reformas da Europa que ganhou força desde os solos ingleses, mas principalmente nos EUA, onde há tempos é a maior denominação protestante. Nisso arrisco uma tese: pelos batistas serem um fenômeno posterior nas Reformas acabaram se desenvolvendo a partir dos sucessos e fracassos das demais signatárias. Incrementam as experimentações sociais a partir de sua marca eclesiástica de a igreja local ser autônoma e democraticamente constituída.
Pela característica do governo local autônomo, tanto aqui, como nos EUA, os batistas desenvolveram uma série de associações que lhes garantem tal nome, sendo que no Brasil a maior associação de batistas se encontra sob o guarda-chuva da CBB, a Convenção Batista Brasileira. É uma convenção que tem força, mesmo que as comunidades locais tenham garantia de autonomia normalmente pautada na democracia. A CBB teve início no Brasil em 1907, originalmente sem força de coesão sobre as comunidades. Era apenas uma simples reunião de missionários, pastores e líderes religiosos para discussão dos problemas das comunidades locais, contudo, como união de corpus eclesiástico e sua sedutora vontade de poder foi-se implicando organizações, escolas, seminários, agências publicadoras, juntas de missões e convenções regionais. Tais complexidades foram forjadas para apresentar uma identidade batista – ostensivamente composta de um ideal conversionista.
• Batistas, mais puros dos reformados
A salada batista formada pelos fluxos missionários sulistas americanos apresentou historicamente uma inovação entre os protestantes no século XX. Eles não se dizem protestantes, pois protestantes vieram de Lutero. Para eles, Lutero não era tão “santo”, porque era um ex-monge ou monge, que falava palavrões e bebia vinho. O reformador alemão era tudo o que as elites batistas do século passado negavam. Assim, o pastor James Milton Carroll, no livro “Rastro de Sangue” constrói a hipótese do ‘rastro de sangue’ entendendo que os batistas vieram de uma sequência ininterrupta desde a tríade João Batista-Jordão-Jerusalém (JJJ). Logo, bem antes da podridão das Reformas europeias e sem qualquer vínculo com católicos. A hipótese teve importantes seguidores no Brasil e em certa medida é um argumento para não permitir o vínculo dos batistas com o movimento ecumênico que brotava no País nos anos de 1930. Os batistas, limpos e puros, não poderiam se ligar aos demais protestantes e católicos. Claro que, já na década de 1940, formaram-se batistas desviantes como Lauro Bretones, David Malta do Nascimento e Hélcio Lessa – que mesmo contra as sinalizações oficiais participaram das reuniões ecumênicas da Confederação Evangélica Brasileira – a CEB. Eles mesmos que posteriormente, construiriam o movimento de Diretriz Evangélica, no qual, renovou teologicamente a agenda batista na década de 1950.
• Batistas, e os entraves pentecostais
Outro problema atravessado na construção da CBB foram os rachas ocorridos nas décadas de 1960 por conta da aceitação dos religiosos aos “dons do Espírito Santo”. Nesse caso, cito as importantes igrejas que tiveram disputas eclesiásticas e judiciais: a Igreja Batista do Calvário (no bairro do Fonseca, em Niterói, RJ) e a Igreja Batista da Lagoinha (em Belo Horizonte, MG). A Igreja Batista do Calvário se formou do racha na Igreja Batista do Fonseca, processo levado pelo pastor Samuel Chagas. Já, a hoje conhecida Igreja Batista da Lagoinha foi deflagrado o processo pelo pastor José Rego do Nascimento, que voltou a Belo Horizonte dizendo que o avivamento chegou ao Brasil. Nesse período, a CBB se muniu com um corpo jurídico para provar quem seriam os ‘verdadeiros’ batistas, isso é, os ‘tradicionais’ da fé, logo, não abertos a ‘heresia’ pentecostal. Interessante que, a partir do período, os concílios de pastores passaram a chamar o pentecostalismo (e aos dons do “Espírito Santo”) como conjunto de procedimentos heréticos. Ao mesmo tempo, o dado contém um contra-senso, pois, pelo percebido no último censo no Brasil, os batistas foram a denominação tradicional que mais cresceu nos últimos anos, muito se devendo a incorporação de elementos pentecostais. Assim, se percebe que os batistas são a face do protestantismo clássico que mais dialogou comunitariamente com as ‘inovações’ do cenário evangélico brasileiro.
• Batistas na atualidade
Na atualidade pode-se dizer que a questão do pastoreado feminino entre os batistas não foi tão resolvida. Certo é que em 10 de julho de 1999, ocorreu a primeira consagração de pastora pela CBB, a pastora Silvia da Silva Nogueira, pela Primeira Igreja Batista de Campo Limpo. Embora a Ordem dos Pastores Batistas tenha recusado inicialmente a filiação de mulheres pastoras, isso foi revogado em janeiro de 2010. Hoje, são ao menos 195 pastoras consagradas ao ministério pastoral, o que aos poucos vai renovando os quadros dos rígidos masculinos púlpitos batistas.
Fruto de um desses novos ares que recentemente chocou-se com a estrutura batista, e vem da Igreja Batista de Pinheiro, em Maceió (AL). Uma comunidade diferente até porque é liderada pelo casal de pastores Odja Barros e Welligton Santos. Odja e Welligton têm histórico de acessos ecumênicos assumindo a causa dos mais pobres e luta pela terra junto aos sem-terra. Também, fomos informados que pastor Welligton participa das reuniões do grupo gay de Maceió, que no início causou alguns problemas na própria comunidade. Sobre essa série de ações tão distintas ao padrão conversionista, branco e de classe média típico dos caminhos batistas no Brasil afirma-se que certo universo batista no Nordeste é diferente do Sul e Sudeste. Sim, pois a proximidade do Sul/Suldeste da estrutura pesada da religião acaba sufocando diferentes expressões da fé. Ainda sobre a série de acessos distintos do Nordeste batista vale lembrar a quantidade de membros das comunidades que participaram no passado das Ligas Camponesas (vide o documentário “Cabra Marcado para Morrer” de Eduardo Coutinho) e dos que se encontram acampados nos assentamentos.
Por isso, infelizmente, a Igreja Batista de Pinheiro acaba de ser expulsa da CBB, por permitir o batismo de pessoas de identidade LGBT. O processo que ocasionou tal permissão comunitária construiu-se em dez anos de discussão, oração e estudos na comunidade. O impacto da questão foi tão grande nos sites, mídias, que obrigou as lideranças da CBB a reagir rapidamente. Entre os diálogos que findaram com a expulsão da igreja de Pinheiros no dia 9 de julho de 2016 se deu também por meio de cartas públicas (leia ao final do artigo). O posicionamento da CBB, anterior ao desligamento, assinado pelo atual presidente e secretário executivo, indicam que os batistas do Brasil não são intolerantes, mas que as pessoas ao participarem das comunidades locais deveriam mudar pessoas homossexuais. A carta-declaração da diretoria da CBB apresenta similaridades com o fundamentalismo protestante/intolerante indicando que o “Evangelho é superior à cultura e que está, embora real e concreta existência humana, deve ser compreendida à luz da essência da Bíblia”. Percepção aprofundada quando as lideranças escrevem sobre a “essência da fé”, findando a declaração dizendo que a igreja “feriu frontalmente a integridade da Palavra de Deus, que é nossa única regra de fé e prática”. Assim, gostaria de formalizar algumas perguntas sobre essas frases, tendo em vista a seriedade do posicionamento das lideranças, e claro, por conta da falta de preparo dos mesmos:
• Que evangelho é superior à cultura? – tendo em vista que os canônicos são ao menos quatro, fora as dezenas dos não-canônicos;
• Qual é a essência da Bíblia? – sabendo que temos sessenta e seis livros e cada qual apresenta uma lógica interna;
• Qual é a “integridade da Palavra de Deus”? – quantas Palavras de Deus se encontram entre os milhares de fragmentos bíblicos?
• E, quais são os escopos de regras que ela compõe tendo em vista sua diversidade e milhares de frases e construtos literários;
“Desde a década de 2000, aos poucos, esse projeto vem perdendo força pela assimilação nos quadros dos seminários batistas de intelectuais de tendências ultraconservadora ou de calvinistas. Nesse sentido, a expulsão ou desligamento da Igreja Batista de Pinheiro seria mais um dispositivo da instância que vem se reorganizando em prol dos antigos vínculos com as agências americanas”
Na leitura do posicionamento prévio da CBB lembrou-me o que Paul Ricouer diz no seu livro “Hemenêutica bíblica”, quando entende que a tentativa de unificação de mensagem tão extensa parece uma bifurcação em prol dos interesses de outrem. Na mesma linha de pensamento, outro francês, Pierre Bordieu, assume que “é característico dos dominantes estarem prontos a fazer reconhecer sua maneira de ser particular como universal”, nesse caso, a CBB, com seus agentes “tornam universal o conjunto de textos selecionados” desconsiderando por completo qualquer estudo mais apropriado dos fragmentos selecionados. Claro, a CBB já se posicionou e desligou a comunidade, contudo, cabe aqui destacar a tristeza de seu reenquadramento recente com os movimentos fundamentalistas/intolerantes que vêm convergindo nas últimas décadas, como se percebe ao pinçar frases da declaração. Também, a tristeza pois se sabe de seu reempalhamento junto à antiga agência colonizadora batista americana a “Junta de Missões Estrangeiras de Richmond” (“Junta de Richmond”) – agora nomeada International Mission Board of the Southern Baptist Mission (IMB-SBM). Ela que foi responsável pela chegada dos missionários batistas no Brasil de histórico intransigente, intolerante e racista, típicos derrotados sulistas americanos. O vínculo com os americanos foi algo tão discutido nos altos da CBB entre as décadas de 1970 e 1980 que ao fim se concluiu que era melhor romper tais laços e consequentemente favorecer o desenvolvimento do pensamento batista brasileiro com liberdade.
Sobre isso, o saudoso Darci Dusileck mostra que desde a década de 2000, aos poucos, esse projeto vem perdendo força pela assimilação nos quadros dos seminários batistas de intelectuais de tendências ultraconservadora ou de calvinistas. Nesse sentido, a expulsão ou desligamento da Igreja Batista de Pinheiro seria mais um dispositivo da instância que vem se reorganizando em prol dos antigos vínculos com as agências americanas. E, claro, se comportando em completa conexão com os padrões intolerantes dos derrotados sulistas. Por outro lado, quero crer que o projeto de assimilação de pessoas da identidade LGBT (mesmo difícil) deve ser labutado nas comunidades religiosas, uma vez que os textos bíblicos também apóiem a escravidão, reinados totalitários e subserviência da mulher ao homem. Penso que ao longo dos anos ocorrerá, como houve entre os batistas, a assimilação ecumênica, e depois as expressões pentecostais pelos batistas; que a agenda LGBT aos poucos seja inevitável. Até porque, já existem uma soma de membros dessas comunidades ligados aos espectros da identidade LGBT. Por isso e, por el@s, quero agradecer aos pastores Odja e Welligton pela ousadia no enfrentamento de todo tipo de ameaças que vêm sofrendo junto à comunidade de Pinheiros. Lembrando-nos da resistência profética, algo primaz ao Cristianismo, bem como do protestantismo-evangélico brasileiro ressaltado pelo teólogo da revolução, Richard Schaull. Assim, termino agradecendo a comunidade ter-se feito como oásis num deserto me(r)diano que é a CBB.
Outras fontes da internet:
http://vigiai.net/artigos/cbb-igreja-batista-do-pinheiro-maceio-al-feriu-frontalmente-a-integralidade-da-palavra-de-deus; http://gazetaweb.globo.com/portal/especial.php?c=5823; http://batistadopinheiro.blogspot.com.br/; https://www.facebook.com/notes/novos-di%C3%A1logos/a-religiocracia-batista/1116174751781909;

Entrevista com zumbi-evangélico

Às vezes me surpreendo com as mensagens que recebo na internet. Não as de ódio, polarização, do descontrole. Essas, com o passar dos anos tornam-se ‘normais’. Banalizaram-se. Por vezes, parece que a internet submete tanto ódio que deve ser usada a conta-gotas, ou apenas, seletivamente. Não parece, mas o ódio sobe a cabeça. A surpresa de um amigo, que foi aluno e que hoje é pastor de uma grande agremiação religiosa neopentecostal escrever pedindo um encontro, segundo ele “para falarmos de religião” – celebrei o convite. Afinal, como se sabe amigos são amigos e negócios à parte.
“Tenho liberdade e perguntei pelos ‘truques’. Sem pestanejar disse que fez um procedimento utilizando uma espécie de um tecido sintético para preencher a parte da cicatriz. Nos EUA fez outro procedimento de retirada da parte do tecido capilar e colocaram na parte da frente, onde estava caindo. Falou também de algumas aplicações de botox que faz no rosto esporadicamente”
No encontro, amigos e famílias em comum dão o tom do início da conversa. Somos próximos nos conhecemos desde adolescência. Lembramos das famílias, nossos pais, mães, primos, primas e amigos em geral. Queria saber da igreja, das questões e problemas. Ele, preocupado com minha pertença mais fluida no seguimento – o que me mantém vivo diante de tantos engodos. Ele está quase uma década à frente de uma igreja neopentecostal que atende a alta classe média de Niterói e no Brasil. Desde os apertos de mão, logo percebi algumas diferenças no seu rosto, no cabelo. Sim, porque entre o rosto e o pescoço tinha uma cicatriz de adolescência e o cabelo já estava desfalcado da metade da testa. E já estava nos quarenta e muitos anos, vinha sofrendo o efeito dos hormônios. Tenho liberdade e perguntei pelos ‘truques’. Sem pestanejar disse que fez um procedimento utilizando uma espécie de um tecido sintético para preencher a parte da cicatriz. Nos EUA fez outro procedimento de retirada da parte do tecido capilar e colocaram na parte da frente, onde estava caindo. Falou também de algumas aplicações de botox que faz no rosto esporadicamente.
Repetiu – fez isso porque que seu público ‘pedia’. Logo, entramos no assunto dos filhos: ele tem duas lindas crianças e sabe que não sou agraciado. Falou algo que me chamou atenção. Algumas lideranças evangélicas do Sul dos EUA apoiavam uma espécie de manipulação genética. Para ele, esse era o futuro, pois, assim poderiam fazer humanos ‘melhores’, ‘mais aptos’. Poderiam escolher melhores genes ou até, de acordo com a vontade dos pais, a cor dos olhos, o cabelo e a possibilidade do comportamento dos filhos. Filhos devidamente ‘escolhidos’, ‘eleitos’ pelos pais. Diante das falas empolgadas, não me contive. Perguntei pelo sexo já que estávamos falando de manipulação genética. Com empolgação o pastor me disse que as pessoas nem precisariam se preocupar com isso, já que os laboratórios fariam todos os procedimentos genéticos para reprodução. Explicou que assim seria extirpado o grande pecado da humanidade. Segundo ele, tal prazer trazia problemas ao homem e mulher. Eu incomodado (principalmente) com a falta de sexo, manipulação genética e o conjunto das plásticas que fez, perguntei se tem mais pessoas partilhando desse conjunto de ações e processos. Disse que de seis em seis meses ele e a liderança da igreja iam ao cinturão conservador no Sul dos EUA com ‘fome’ de conhecimento de um líder-pensador que lá os amparava.
Zumbi sintético
Seguiam avidamente as indicações dadas nesses encontros traduzindo para o Brasil o que os gurus indicavam. Fiquei estarrecido com a conversa. Deixei rolar até o fim e as despedidas. Outro detalhe: quando foi embora percebi que estava andando torto, capenga. Fala em alto som que retirou uma costela recentemente para ajudar no esporte e diminuir a barriga. Bom, estou boquiaberto até hoje. Pensei mesmo que fosse brincadeira a conversa – alguma pegadinha. Mesmo não sendo adepto das séries da TV americana de cenários apocalípticos zumbis e vampiros, tornou-se impossível não lembrar das recentes intervenções de Slavoj Zizek sobre o tema no cenário do aprofundamento do capitalismo – no livro Problema no paraíso. Do fim da história ao fim do capitalismo; São Paulo, Zahar, 2014. Lembrei disso quando o vi saindo manco e seu rosto modificado quando falava. Obrigando-me a perguntar: esse sujeito não seria um zumbi moderno? Não seria um homem-zumbi-sintético? Ora, sua aparência artificial, cheio de cortes (milimetricamente disfarçados), intervenções, pecado de carnes em diferentes locais, todo remendado na busca da perfeição estética e, por isso, torna-se feio. Zumbi evangélico alimentado como os primeiros zumbis televisionados, de cérebros, por isso, vai regularmente nos EUA receber ordens. Enquanto isso, mantém uma dieta provisória dos corpos e cérebros dos fiéis fartando-os semanalmente em suas necessidades.
Massa morta-viva
Seu andar torto é fruto do processo de transformação que passa. Suas ideias seguem a lógica de seu liderança. Forma uma massa morta-viva, com pedaços humanos e de partes sintéticas. Dizem nada com nada. Repetem ordens, ideias que alguém lhes dispõe. Balbuciam palavras, sigmas de ordens na busca de mais e mais pessoas/carnes para alimentar/contaminar seu estado. Super-zumbis modernos, maquiados a tal ponto, enfeitado sem nada por dentro. Confesso: quando ouvia, ia negando tudo o que dizia numa reza interna. Não gostaria que tamanha doença contaminasse tanta gente, pois diante dessa vida tétrica, medíocre, sexo é o ponto de inflexão. O gozo, o prazer é o que nos resta diante mesmo de tamanha superficialidade religiosa maquiada.
As falas do pastor-zumbi inspirado no cordão conservador americano têm razão da lógica interventora dos corpos de seu reformador preferido, João Calvino. Ele que, quando no governo em Genebra, indicava para os moradores não terem cortinas para que soubessem o feito nas casas. Por fim, uma retratação. Não acho que tive um mísero encontro com o zumbi-amigo. Não mesmo. Pareceu mais entrevista com perguntas e respostas. O trabalho mesmo foi decodificar o zumbido gospel de ordem maquiada de seu discurso. Obriga a não fugir da afirmação tão batida: amigos, bem-vindos ao deserto do Hell!
? Fabio Py é doutorando em Teologia PUC-RJ e bolsista pelo PSDE-Capes no École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS-Paris)