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Professores apaixonados

Ser professor é uma profissão como outra qualquer e, como em todas as áreas, há os que se identificam com o que fazem, e os que apenas cumprem a jornada. Nas condições da sociedade moderna, o trabalho, já dizia um filósofo alemão, é alienante. Portanto, é muito difícil sentir prazer ou apaixonar-se. Ponto para os que, mesmo nas condições de alienação do trabalho, se “apaixonam”.

Fiquei a pensar sobre o significado das palavras e imagens dos “professores apaixonados”. Dialeticamente, como se diz no bom sociologuês, em minhas reflexões mesclam-se o estudante e o professor; a criança, o adolescente e o adulto. Recordei, com carinho e saudade, da primeira professora. Lembrei que, ao completar 18 anos de idade, na época morava em São Paulo, retornei ao nordeste para rever a cidade da minha infância e conhecer a que nasci. Fui informado que a professora morava na periferia de São Paulo. Peguei o endereço e, ao retornar, fui visitá-la. Não sei se ela compreendeu o gesto, mas demonstrou contentamento. Foi o reconhecimento e gratidão a quem marcou a minha vida.

Recordei também dos que me ensinaram os primeiros conceitos e teorias; dos que me apresentaram os rudimentos das línguas estrangeiras, em especial da minha professora de francês, no ginasial; lembrei do professor de matemática que me estimulou a aprender o jogo de xadrez – embora eu ainda seja péssimo xadrezista; do professor de história que me ensinou o significado didático da polêmica; recordei, ainda, da graduação e dos que, mais do que conteúdos, me ensinaram pelo exemplo. No mestrado, tive excelentes professores, em especial o meu orientador Maurício Tragtenberg. O mesmo no doutorado, em que convivi com professores experientes e tive a alegria de ser orientado pelo Nelson Piletti. Da infância ao doutorado, há os que marcaram a minha vida, os que fizeram a diferença, os que jamais esquecerei e a quem sou grato.

“Professoras apaixonados” são os que fazem a diferença, os que marcam a vida dos seus alunos. Há também os que deixam marcas negativas e traumáticas. Em minha vida de professor, desde a época que trabalhei no ensino público em Diadema(SP) e no Guacuri (zona sul da capital paulistana), conheci estudantes que ficaram traumatizados devido à determinadas atitudes dos seus professores. Tenho dúvidas se, neste caso, gostam da profissão.

Há, ainda, os professores apaixonados pelo conteúdo, pelas disciplinas que trabalham. Eles dão o exemplo do amor ao saber, mas pecam por darem mais importância às abstrações dos conceitos e teorias do que às relações humanas que se estabelecem na atividade docente.

Conclui que sou alguém de sorte. Faço o que gosto. Sou apaixonado pelo que faço. Agradeço aos meus aos professores e professoras e, também, aos discentes. Obrigado e parabéns aos professores, apaixonados ou não, pelo seu dia!

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* Imagem:  Poção-PE, onde aprendi as primeiras palavras…

Qual é o objetivo da política?

A política nutre-se da polêmica: os vários interesses econômicos, sociais etc., se manifestam através de idéias e propostas em permanente colisão e negociação. Aristóteles, em sua obra Política, afirmou que “o fim da política não é viver, mas viver bem”. A idéia que temos de que a política é a luta constante pelo bem comum, pela justiça, o bom governo etc., remonta à tradição aristotélica, à filosofia política de Platão e ao pensamento cristão medieval. Estas idéias fundamentam a ação pastoral da Igreja. Esta maneira de conceber a política é prescritiva, isto é, indica o ideal (como deveria ser bom governo, uma sociedade justa e igualitária, etc.).

Esta é uma bela idéia que alicerça a ação de milhares de pessoas por este Brasil afora. Militam em movimentos sociais, associações, sindicatos, partidos e pastorais. São pessoas que nutrem uma utopia, dedicam a vida à construção de um ideal traduzido na busca incessante do bem-comum. Nem tudo é podridão no reino da política. Reconheçamos que, concordemos ou não com suas ações e idéias, ainda existem os idealistas, os que consagram boa parte do seu precioso tempo (pois que na vida, o que passou, passou!) à coletividade.

É verdade que muitos são animados por necessidades prementes e bem concretas (comer, morar, trabalhar na terra, etc.). Mas também é verdade que sonham um sonho: o sonho de uma sociedade na qual as mazelas sociais presentes em nosso no cotidiano e que ferem as nossas mentes e corações sejam superadas.

Pois que, em meio à insensibilidade de muitos diante das questões sociais, ainda há aqueles se sensibilizam com o olhar desesperançado do trabalhador consternado ante a falta de perspectivas. Estes são os que ainda se sensibilizam diante do olhar de uma criança num acampamento de trabalhadores sem-terra, ou numa rua qualquer do espaço urbano, pedinte ou em grupo cheirando cola ou utilizando drogas, com suas energias vitais esvaindo-se, num cortejo fúnebre à morte antecipada.

Deixemos as chagas que a nossa sociedade alimenta momentaneamente de lado. Afinal, esse quadro sombrio, que teimamos em perpetuar, é, para muitos, natural, sem qualquer relação com a política. Voltemos ao idealismo dos que buscam o bem-comum em sua práxis política. Embora sejam imprescindíveis, esses homens e mulheres padecem de uma teoria ingênua sobre a política.

Se a política é essencialmente a oposição e luta entre interesses diferenciados e antagônicos, então, a idéia de política como a busca incessante do bem-comum é um projeto irrealizável nos marcos da própria existência da política. Como nos ensinou Maquiavel, política é sobretudo a arte de conquistar, dominar e manter o poder político.

Pensar na superação dos interesses econômicos particularistas, individualistas e egoístas, ou seja, na predominância do coletivo sobre a lógica que anima nossa sociedade significa, em última instância, imaginar a utopia da não-política, em outra palavras, a sociedade onde a política e o Estado não sejam mais necessários.

Enquanto a política se fizer necessária, seus fins serão tantos quanto os objetivos que os grupos econômicos e políticos se coloquem. Assim, o bem comum, a justiça, o bom governo etc., são meios ideológicos ou pura retórica de que se servem tanto os idealistas quanto os grupos econômica e politicamente dominantes que procuram nos fazer acreditar que seus interesses particularistas são nossos interesses. É a ilusão do Estado enquanto guardião dos interesses comuns, como se este fosse neutro na luta política. É preciso, portanto, desmistificar a ilusão democrática da política e do Estado como agentes do bem-comum.

Eu aprendi que…

Lembro-me da primeira aula na UEM. Era uma manhã de segunda-feira, no curso de Economia. Estava animado e, ao mesmo tempo, ansioso e tenso. A tensão normal de toda estréia. Tinha a experiência de trabalhar Ensino Médio, mas era a primeira vez no Ensino Superior. Nutria uma imagem otimista sobre a Universidade. As minhas expectativas eram ótimas. Estava feliz!

Não obstante, o meu entusiasmo arrefeceu-se. Com o passar do tempo aprendi que a Universidade reproduz a mísera natureza humana e até potencializa algumas das suas “qualidades” mais desprezíveis; aprendi que o discurso universalista e humanitário, em favor da cidadania, dos pobres e oprimidos, mascara interesses mesquinhos e individualistas; aprendi que a cultura acadêmica, títulos, status, etc., nada dizem sobre o caráter dos indivíduos; que sob a aparência dos doutos encontram-se seres humanos frágeis e outros capazes de ações inconcebíveis; aprendi que sabedoria é diferente de conhecimento, e que o cabedal de saber acumulado não o torna necessariamente um ser humano melhor; aprendi que sob o discurso democrático, escondem-se práticas autoritárias; aprendi que a retórica política engajada é também uma maneira de ocupar espaços, ter mais capital simbólico e acesso aos recursos econômicos e políticos disponíveis. Aprendi que a “coisa pública” também existe para deleite e uso particular de alguns.

Aprendi que a docência pode limitar-se simplesmente a ser um emprego; que o poder professoral pode ser impiedoso e injusto com aqueles que deveria ensinar a justiça; aprendi que nem todos que dão aula gostam do que fazem. Aprendi que o discurso da crítica pode ser impermeável à crítica; aprendi que em nome das aparências reina a hipocrisia, que a vaidade caminha junto com a arrogância intelectual e idiossincrasias tituladas. Aprendi que projetos levados a cabo na academia podem ser simplesmente mais um meio para aumentar o saldo bancário; aprendi que os pesquisadores podem se ocupar por anos com teorias e discussões conceituais, mas serem totalmente alienados diante do mundo em que vivem e da realidade social que os rodeiam; aprendi que o compromisso e responsabilidade social nada tem a ver com titulações e temas de pesquisa; que o pesquisador pode se dedicar com afinco a estudar a vida dos operários, sem jamais pisar no chão da fábrica.

Aprendi que pode-se pesquisar sobre a exploração das mulheres, mas com a salvaguarda de ter uma empregada cujo trabalho libera o tempo necessário à reflexão intelectual; aprendi que pode-se escrever livros sobre os pobres e a pobreza, sem que isto tenha qualquer influência sobre a vida deles; aprendi que pode-se pesquisar os movimentos sociais a partir de uma perspectiva científica e objetivista, sem qualquer compromisso com as suas lutas; aprendi que as teorias pesquisadas podem servir apenas para formar grupos de interesses que retroalimentam-se através de mútuos convites para participação em bancas, seminários, colóquios, etc., eventos com títulos pomposos e debates infindáveis sobre o mesmo de sempre, compreensíveis apenas aos convertidos e iniciados, mas que cumpre plenamente os objetivos não-declarados. E tudo em nome da ciência!
Na Universidade respira-se o mesmo ar fétido que exala para além dos seus muros. Os que a frequentam são também de carne e osso, capazes de atitudes louváveis, mas também de atos abomináveis. Como o meu amigo Walterego costuma afirmar, em tom de ironia, os doutos encastelados no campus também peidam, defecam e sentem medo. Não são diferentes do mais simples dos mortais. Embora quando os vemos em sua arrogância olímpica pareça que são de outra estirpe, são simplesmente humanos!

O Sermão da Montanha, Ética e Política

Max Weber, em Ciência e Política: duas vocações[1], faz referência ao Sermão da Montanha proferido por Jesus Cristo (Mateus 5, 1-48)[2]. Considero este um dos mais belos textos bíblicos, inspirador da militância política fundamentada numa interpretação teológica libertadora. Jesus declara que o reino pertence aos pobres (está escrito “pobres de espírito”, mas isso não impedia uma leitura favorável aos social e politicamente oprimidos). Ele bem-aventura os que choram, os que têm fome e sede de justiça, os perseguidos por defenderem a justiça, mas também os mansos, os misericordiosos, os limpos de coração e os pacificadores.

O Sermão da Montanha, como a Bíblia em geral, permite várias interpretações e, claro, aquela que enfatiza e fortalece a luta por um mundo mais justo e igualitário. “Vós sois o sal da terra”, diz Ele. É uma excelente metáfora para os que almejam fecundar um novo mundo. Isso exige uma ação consciente da missão a cumprir, fundada numa ética da convicção. E é um desafio e tanto, pois, “se o sal for insípido com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens” (Mateus 5, 13).

O Sermão da Montanha, como demonstra Max Weber, problematiza as relações entre ética e política. São esferas da ação humana incompatíveis e irreconciliáveis? Haveria duas éticas, uma válida para o homem político e outra para a ação humana externa à política? O texto bíblico expressa uma ética absoluta, uma ética do “tudo ou nada”, um “mandamento incondicional e unívoco” (Weber, 1993, p.111). A questão central está em como compatibilizar meios e fins. A política sempre recorre a meios violentos, mesmo em períodos pacíficos (o poder político é definido pela legitimidade e exclusividade no uso de meios coativos). A espada do Estado paira sobre as nossas cabeças em cada momento das nossas vidas, mesmo quando estamos reclusos ao lar e nos limites da individualidade, as teias do Estado nos alcançam. Porém, a ética do Sermão da Montanha declara:

“Ouviste o que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra. E, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a tua túnica, larga-lhe também a capa. E, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas” (Mateus 5, 38-41).

São imperativos de uma ação política fundada na paz, na recusa de meios violentos. Deve-se buscar a conciliação e amar o inimigo:

“Ouviste o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizeis os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem…” (Mateus 5, 43-44).

São belas palavras, mas a história demonstra que as ações humanas na esfera política – e mesmo religiosa – não se pautam por elas. Já o florentino, no século XVI, observou a impossibilidade de agir politicamente segundo esses preceitos. Nem mesmo os papas! Do tempo de Maquiavel aos dias atuais persiste o dilema da ação política confrontada com as exigências da ética. Como escreve Max Weber: “Pode-se realmente acreditar que as exigências éticas permaneçam indiferentes ao fato de que toda política utiliza como instrumento específico a força, por trás da qual se perfilha a violência?” (p.111).

A ética do evangelho é para candidatos a santos e a política é feita por homens e mulheres de carne e osso, capazes de atos grandiosos, mas também de crueldades indescritíveis. Ensina o florentino que o “homem que desejar fazer a profissão de bondade, mui natural é que se arruíne entre tantos que são perversos”.[3] Os profetas desarmados foram derrotados.


* Aos meus alunos do curso de Direito (UEM), que me fazem refletir sobre o passado, presente e futuro.

[1] Ver WEBER, M. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1993.

[2] As citações são do Novo Testamento, editado por “Os Gideões Internacionais”, 1995, confrontadas com a Bíblia Sagrada, traduzida e editada pela CNBB, Brasília, 2002.

[3] MAQUIAVEL, N. O Príncipe. São Paulo, Hemus: 1977, p.87.

Antiamericanismo e maniqueísmo

Nota: Este texto foi publicado na REA, nº 06, em novembro de 2001. Desde o ato terrorista que abalou o mundo, passaram-se oito anos. Com a ressalva de que estamos diante de outra conjuntura política, parece-me que as idéias expostas aqui permanecem atuais e a reflexão ainda se faz necessária.

Os atentados terroristas nos Estados Unidos e o ataque que este país lidera contra o Afeganistão alçaram o sentimento antiamericano pari passu ao pensamento maniqueísta. Somos constrangidos a nos posicionarmos entre o bem e o mal. Mas quem representa o bem e o mal nesta história? Acaso os Estados Unidos estão livres das acusações que imputam a Osama bin Laden e os que lhe apóiam? Os Estados Unidos não padecem do mesmo pecado que atribuem aos seus inimigos? Acaso o terrorismo de Estado não é uma prática comum dos americanos, observável em vários momentos da história? Qual o direito dos Estados Unidos invadirem um país – e não é a primeira vez – a não ser o direito ilegítimo fundado na força militar? Façamos um exercício insano: imaginemos que algum terrorista brasileiro ataca a pátria americana e o governo local não o entregue às autoridades americanas. Teria os Estados Unidos o direito de invadir o nosso país?

Coincidentemente, o 11 de setembro foi também o dia em que o governo Salvador Allende foi deposto por um golpe de militar, com o apoio direto dos Estados Unidos. Era o ano de 1973. Aliás, esta nação, cuja arrogância é própria dos impérios de todos os tempos, procurou de todas as formas evitar a posse do presidente Salvador Allende, eleito democraticamente dentro das regras da tão apregoada democracia representativa. Há 31 anos o comandante do exército chileno, René Schneider, foi assassinado em Santiago, com um tiro de revólver. O episódio teve a participação dos americanos, inclusive com o envio de metralhadoras, com numerações raspadas, entregues aos oficiais chilenos por funcionários do governo dos Estados Unidos.

Ora, temos motivos suficientes para não aceitar que os Estados Unidos expressem o bem contra o mal. A não ser que abdiquemos da capacidade de pensar de forma crítica. Em política, todo maniqueísmo é um atentado ao bom senso e à dialética. Mesmo o inferno dantesco não se enquadra em categorias fixas e estáticas: quem lê a obra de Dante observa que o inferno tem várias escalas, obedecendo a uma certa hierarquia quanto ao pecado praticado.

Na época da guerra fria também predominava o maniqueísmo. Os bons, a depender da ótica ideológica, estavam de um lado; os maus do outro. Ambos os lados oprimiam o pensar crítico. Assim a esquerda era satanizada e a direita canonizada – a depender da posição política dos contendores. Chegou-se ao absurdo da não admissão da crítica interna, sob o argumento de que isto fortalecia o inimigo. Constrangiam-nos a aceitar, de forma acrítica, regimes políticos ditatoriais, pelo simples e obtuso argumento de que expressavam o socialismo. Quem escapava a essa dualidade cega corria o risco de tornar-se maldito e ser definido como alguém que fazia o jogo do imperialismo e da direita – o oposto também é verdadeiro, basta lembrarmos da caça às bruxas que, à maneira da inquisição, caracterizava os críticos como objetivamente alinhados aos comunistas.

O passado parece oprimir nossos cérebros. Se, de um lado, os americanos exigem alinhamento incondicional, de outro, Osama bin Laden expressa a mesma exigência ao tentar caracterizar os EUA como a besta a ser combatida pelos mulçumanos. Parece claro que a maioria dos espíritos sensatos não caem nessa armadilha e não aceitam o enquadramento incondicional. Pesquisas publicadas nos jornais apontam que os Estados Unidos não tem o apoio da população brasileira, a despeito da retórica do governo FHC. Por sua vez, o Talibã e Osama bin Laden também não conseguem a unanimidade no mundo oriental: basta ver os conflitos internos nos países de maioria mulçumana.

Contudo, um fator chama a atenção: o antiamericanismo exacerbado induziu muitos a desenvolver um sentimento de alegria, implícita ou explícita, diante dos atentados terroristas em solo americano. Houve quem expressasse na grande imprensa tal contentamento. Outros, mais reservados, expõem-no nas pequenas rodas de amigos. Outros agem de forma hipócrita e mal conseguem disfarçar o que sentem. Vítimas, culpados ou inocentes? Discussões filosóficas são feitas para definir a natureza dos mortos.

Acima das retóricas entre o bem e o mal, não podemos concordar que o sentimento anti-Estados Unidos, com toda a carga crítica que lhe é adjacente, legitime a ação do terrorismo e alimente a alegria diante da tragédia que, gostemos ou não dos americanos, ceifa vidas humanas. A racionalidade exige que nos portemos com espírito crítico, sem aceitar os fundamentalismos dos espíritos transtornados – ainda que sejam de esquerda.

A guerra americana no Afeganistão é a face inversa do terrorismo praticado na América do Norte: é terrorismo de Estado. Ambos os terrorismos são execráveis. Por que se alegrar diante da demonstração desmedida e pungente da violência? Acaso a vida é menos importante que as nossas idéias e posições políticas-ideológicas?

O culto ao líder

“Duvide. Nenhuma fé até hoje foi tolerante. A dúvida é a tolerância. A fé levantou fogueiras, a dúvida não as levantará jamais. Toda fé é uma tirania e todo crente é um escravo. Não acredite”

(Vargas Vila)*

O culto à personalidade é uma espécie de patologia que acomete as diversas gerações que se fanatizam em torno dos “ismos” que gravitam da extrema-esquerda à extrema-direita. A esquerda tem os seus heróis; a direita também. Os seguidores dos profetas, armados ou desarmados, veneram seus ícones à maneira religiosa e maniqueísta. E, assim, os “pequenos profetas”, discípulos e apóstolos da razão, digladiam-se em nome do “bem” e do “mal”, da “linha justa”, valores que dependem da ideologia de cada um.

Os grandes dilemas históricos da humanidade parecem se encarnarem no papel desempenhado por determinados indivíduos. É interessante que a crítica à concepção da história fundamentada na ação de indivíduos heróicos, seja acrítica quando se trata daqueles que venera. Mudam os nomes e os que eles representam, mas parece que todos, à direita e à esquerda, precisam de heróis.

As ações, opções e idéias dos indivíduos, especialmente quando ocupam posições influentes no aparato do Estado e/ou na sociedade, tem importância e devem ser consideradas. Mas eles agem e reagem sob condições históricas específicas. Não é possível compreendê-los plenamente sem levar em conta este fator. Restringir-se ao âmbito individual é desconsiderar a interação dialética entre estes e os contextos históricos das sociedades nas quais atuam; é desconsiderar as contradições e interesses dos grupos e classes sociais na relação com o líder.

Porém, os líderes falham e perecem – embora alguns se tornem imortais nos corações e mentes das gerações vindouras. Todo líder que se preza, mesmo o que expressa o “mal”, sempre a depender da identificação ideológica, tem o seu séqüito. Mesmo os “pequenos líderes”, aqueles cujo raio de ação se restringe a espaços exíguos como a sala de aula, geram os seus seguidores.

De onde vem essa necessidade de seguir o líder? Uma explicação plausível reside no fato dos líderes sintetizarem as ideologias e de, geralmente, terem o controle dos meios econômicos, políticos e simbólicos para que os “ismos” se materializem. Mas há líderes que nada tem a oferecer, a não ser a vaga promessa da utopia e, mesmo assim, arrebanham discípulos. Será que isto se explica apenas pelo carisma? O líder carismático produz “milagres profanos” como convencer os incautos a segui-lo, mesmo que em direção ao abismo, e a compactuar com meios que negam os fins redencionistas.

Os discípulos tendem a reverenciar o líder, de forma acítica e submissa. O que explica a a necessidade de obedecer? Talvez a obediência seja uma maneira de eliminar a angústia da dúvida e se sentir seguro. Quem obedece cegamente perde o senso crítico, não ousa pensar com a própria cabeça e desafiar a verdade transformada em dogma.

Compreendo a necessidade humana de agir como ovelhas e passar a vida a obedecer o “pastor” e a repetir suas verdades. Talvez a “servidão voluntária” proteja do desespero. Quem sabe, o culto ao líder conforte! Sempre há a esperança da recompensa, de alcançar o “paraíso”. No fundo, quem se submete é tão inseguro quanto a personalidade autoritária que cultua. Em seu âmago, teme a liberdade e execra a dúvida. Por isso, se recusa a pensar criticamente, basta-lhe repetir os slogans do líder e segui-lo.

O culto ao líder cega em todos os sentidos. Mesmo assim, se revigora. Contraditoriamente, alimenta-se na fonte da tradição e manifesta-se na adesão a novos líderes. Há sempre indivíduos ávidos de seguirem os novos profetas com suas promessas de redenção da humanidade.


* In: BAZZO, Ezio Flavio. Assim falou Vargas Vila. Brasília, Companhia das Tetas Publicadora, 2005.  Sobre este livro sugiro a leitura do texto “Assim falou Vargas Vila” – Anátemas sobre livros, amizade, política, religião etc.”, publicado na Revista Espaço Acadêmico, nº 61, junho de 2006.

A tentação totalitária da Ciência

Algumas verdades parecem inquestionáveis. Elas pairam sobre nós como certezas naturalizadas. Aceitamos como o ar que respiramos. E, quando estas verdades assumem ares de “ciência”, então, nada nos demoverá da sua validade intrínseca.

Faz-se mister refletir sobre as verdades absolutas que, à maneira religiosa, recebem o manto da “ciência”; que, sob os auspícios da razão moderna, se impõem enquanto padrão que reina absoluto e, em geral, desqualifica qualquer saber que não tenha a sua sanção. Desde a aurora da modernidade, e caminhando pari passu com o poder político e econômico ocidental colonialista, legitimando e legitimado por este, a predominância deste padrão significou a negação de qualquer racionalidade a outros saberes fora do “campo científico”. Mesmo a crítica a determinados aspectos da razão moderna ocidental transita em referência ao mesmo padrão. Entre outros efeitos negativos, impôs-se o silêncio ao “outro”, o colonizado.

A ciência substituiu a religião e assumiu para si o status de dogma. É vero que a ciência não consegue descartar a heresia e se alimenta dela. Mas ortodoxia e heterodoxia são partícipes do mesmo padrão e campo, faces da mesma dominação eurocêntrica e colonialista. O poder colonial político e econômico tem neste padrão o seu substrato teológico. A ciência não se restringe a meros conceitos universalmente aceitos como indiscutíveis. É poder.

A ciência tem aspectos positivos, mas também a tendência a impor-se como uma epistemologia incontestável que coloniza nossas mentes. Este saber colonialista têm raízes históricas e espaciais bem definidas e traduz os deslocamentos da hegemonia política e econômica na Europa. O que é particular se universaliza e se transforma em um paradigma que nega outras narrativas. Se impõe como legitimação da supremacia ocidental e desqualifica outras culturas e saberes, desde então tidas como inferiores e exóticas. O conhecimento das civilizações árabe-islâmica, chinesa e ameríndia é secundarizado e submetido à racionalidade ocidental, a qual é vista como expressão da ciência.

Esta opressão epistêmica, sob a capa da cientificidade, é definida por Mignolo como colonialidade. Ele questiona a pretensão totalitária da ciência ocidental e aponta para a construção de outro paradigma numa perspectiva libertadora. Trata-se de superar a face despótica do cânone eurocêntrico, branco, racista e colonialista; e de despir os profetas da modernidade da pretensão à universalidade e domínio epistemológico. Reconhece-se a face positiva da modernidade, mas busca-se fortalecer outras epistemologias que coloquem em cena aqueles historicamente oprimidos pela colonialidade, como as mulheres e os negros.

Não se trata de estabelecer um novo paradigma à maneira totalitária, mas de reconhecer as limitações do paradigma eurocêntrico e a necessidade de outras epistemologias, como a feminista e a racial. Em lugar da uni-versalidade que nega o “outro” em suas particularidades de gênero, étnica, culturas etc., e se considera arrogantemente como o único saber válido, urge instituir a pluri-versalidade. Mignolo proporciona a reflexão nesta direção, sem verdades dogmática e religiosamente aceitas, ainda que sob o verniz cientificista, e com o respeito e valorização de outros saberes historicamente silenciados.


* Reflexões a partir da leitura do texto “Os esplendores e as misérias da “ciência”: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica”, de Walter D. Mignolo. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004, pp. 667-709.

Aos jovens petistas!

Outro dia fui convidado para participar de um evento organizado pela Juventude Petista. De certa forma foi um retorno aos meus tempos de jovem, quando era militante do PT e acreditava piamente que este partido mudaria o Brasil e, quiçá, o mundo. Enquanto ouvia aqueles jovens petistas expressarem esperanças e sonhos, tentava compreendê-los.

Para mim parece lógico a opção dos da minha geração que assumiram a luta política, estimulados pela ascensão dos movimentos sociais e influenciados pela Teologia da Libertação. O PT era, então, não apenas uma promessa e esperança, mas também o espaço “natural” aos que, como dizíamos na época, superavam a alienação política e assumiam a luta pela democratização e contra as injustiças sociais. Não tínhamos outra experiência de participação política anterior ao PT. Portanto, simplesmente, oPTávamos.

O tempo não pára! Envelhecemos, nós e o PT. Muitos se adaPTaram muito bem à metamorfose do partido. Alguns se tornaram parlamentares ou ocupam posições importantes no aparato estatal. Muitos se desiludiram e até abandonaram as esperanças de outrora e passaram a defender o status quo.

O PT não apenas envelheceu, mas negou-se a si mesmo e rompeu definitivamente com as suas origens. Lógico, continua existindo a legenda que se chama Partido dos Trabalhadores, mas tornou-se um partido como outro qualquer. Pragmaticamente, aceitou jogar o jogo e tornou-se exímio na arte de praticar a política que combatia. Consolidou-se com o abandono de qualquer veleidade que faça lembrar seus primeiros anos. Os que não se adaPTaram nem venderam seus sonhos, é impossível se reconhecer no PT do presente.

Não obstante, aqueles jovens petistas ainda acreditam. O que os movem? Quais seus interesses? O que querem ao aderir à militância partidária? Qual a ideologia deles? Sim, é outro tempo, outras condições históricas. Eles não viveram a experiência que a minha geração viveu. Conhecem-na pelos livros, teses, artigos e pela convivência com os mais velhos, os que permaneceram no partido e tentam, de todas as formas, justificar o que antes era injustificável. A cultura política desses jovens é outra; eles foram forjados noutra prática e contexto político. O que os seus líderes fazem em Brasília e por este país afora talvez até pareça “natural”, uma necessidade da política. Se são críticos, rendem-se à realidade e ao discurso dos líderes. Estes enfatizam as “realizações” para justificarem a práxis política.

Contudo, que direito tenho de questionar a opção deles? Nem mesmo sou militante da política partidária. E, apesar de tudo, parece-me melhor que vivam a experiência da política do que resignarem-se ao medíocre cotidiano dos que passam pela vida. Eu tive este direito, foi uma escolha, uma decisão. Que também façam suas escolhas; eles têm o direito de errar.

Contudo, silenciar a crítica não seria ético da minha parte. Até porque minhas posições políticas são públicas e não fui convidado por engano. Pareceu-me, portanto, que o respeito àqueles jovens exigia também que a minha reflexão crítica sobre o PT fosse pronunciada claramente. Embora tente compreendê-los, não posso concordar com a prática política do partido que eles defendem. Alguns setores deste partido podem até manter a retórica crítica ao capitalismo ou mesmo socialista, mas a práxis mostra o quanto este discurso é vazio. Aliás, não entendo porque os que ainda se consideram marxistas, os que insistem na falação do “PT das origens”, permanecem no partido. Compreendo-os menos ainda depois do que vi e ouvi nestes dias. Que espetáculo triste o PT nos ofereceu! Fez-me pensar naqueles jovens petistas. Será que eles também se envergonharam?

Gripe A e mudança de hábitos

A pandemia do vírus A (H1N1) tem mudado hábitos e estimulado situações no mínimo curiosas. O meu amigo Walterego, por exemplo, costuma cumprimentar seus alunos com um aperto de mão. Ele admite, porém, que mudará de atitude e manterá a distância adequada. Alega que não se trata apenas de proteger-se, mas também aos estudantes. Argumenta que o vírus pode estar incubado sem que saibamos, isto é, sem que a gripe tenha se manifestado. Até entendo seu gesto, mas sua justificativa pareceu-me exagero. De qualquer forma, as circunstâncias exigem cuidados extras e parece que é razoável evitar o tradicional aperto de mão e, mais ainda, a troca de beijos nas faces.

Por falar em beijos, como evitá-los quando a fé é mais forte que razão. Imagine os fiéis em fila para beijar a imagem da Santa. O que fazer? Proibir? A autoridade eclesial encontrou uma solução simples: alguém foi responsabilizado a, com um pano embebido em álcool, limpar a Santa a cada beijo dado. Por que os fiéis não se abstêm do beijo? Será que a Santa ficará triste? Brava?! Não seria mais sensato evitar o gesto. Penso que a Santa compreenderia.

O medo do contágio pelo vírus Influenza A (H1N1) influência até mesmo o espaço e os ritos sacros. Bispos católicos reconhecem que é preciso adotar medidas preventivas e recomendam aos párocos e seu rebanho que, durante as missas, evitem os abraços da saudação da paz e também o dar-se as mãos para a oração do Pai Nosso. Por outro lado, como alguns fiéis gostam de receber a hóstia diretamente em suas bocas, os que servem o “Corpo do Cristo” foram aconselhados a agirem de outra maneira. A hóstia deve ser entregue nas mãos dos católicos. As orientações dividem as opiniões: uns consideram necessário, outros acham que é exagero. Não obstante, todas as denominações religiosas se vêem diante de uma situação que não podem desconsiderar. O simples fato dos cultos propiciarem a aglomeração de pessoas exige precauções contra o vírus.

Não é muito diferente nos espaços profanos. Até mesmo em nossas residências nos pegamos em vacilações quando cumprimentamos as visitas. Evitar o aperto de mão, o beijo na face, pode se tornar constrangedor; praticá-los, também. É um dilema! Se o bom senso pressupõe proteger-se e ao outro, nem todos encaram dessa forma e podem ficar melindrados. Outro dia escutei alguém reclamar do médico que o atendeu mantendo certa distância. A pessoa se sentiu discriminada. Pode ser que o respeitável doutor tenha exagerado, mas, por outro lado, nem sempre temos a consciência de que é necessário proteger o outro. Aliás, isso deveria ser uma atitude permanente e não apenas devido ao medo da nova gripe. Imagine alguém com uma gripe comum que age como se estivesse bem. Se evitarmos abraçá-lo e/ou beijar sua face, ficará magoado.

A distância entre o razoável e o alarmismo é tênue. Em situações como estas, o medo induz a exageros irracionais. A paranóia generalizada é a anteporta para o pânico. As precauções necessárias podem dar lugar a atitudes descaradamente discriminatórias e comprometer as relações e o convívio social. Então, estaremos diante do risco de combater o doente e não a doença. Atitudes paranóicas não contribuem. É preciso cuidar-se, mas não precisamos ressuscitar o deus .

É necessário, sobretudo, responsabilidade do poder público e da sociedade. Mas também é mister a informação e conscientização dos indivíduos. Se estou gripado, ainda que pareça uma gripe comum, os cuidados para proteger os demais deve partir de mim e, claro, devo procurar o médico. Sob tais condições é aconselhável não ir à missa, nem beijar a imagem da Santa. O crente pode até querer ir para o paraíso, mas não tem o direito de levar o outro..