especial
O
Bem, o Mal e o Neoliberal
O aparato midiático
neoliberal, submisso à lógica econômica, nos enleva
a uma situação psicológica de guerra econômica,
nos fazendo crer que, em nome do (todo poderoso) capital, estariam em jogo,
com a mesma gravidade de uma guerra, a sobrevivência da nação
e a garantia da liberdade. Este artigo recorre a um ponto que parece
estar sendo marginalizado nesse discurso: os mecanismos sociológicos
e psicológicos que vêm tornando a prática da injustiça
social, a prática da violência corporativa e social, uma constante
banalizada dentro do fenômeno de massificação da cultura
e do comportamento
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Por
Renato Kress, editor Consciência.Net, fevereiro de 2006
• Segunda
Parte: Nem Eros nem Thanatos, trabalho
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“A injustiça
social é uma evidência tão familiar, ela é de
uma constituição tão robusta, que parece facilmente
natural àqueles mesmos que são suas vítimas” – Marcel
Aymé (1902-1967)
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“Encontra-se
largamente difundida a idéia de que paira sobre nosso país
uma ameaça de derrocada econômica. Até mesmo cientistas
e pensadores admitem que, sendo a situação excepcionalmente
grave, é preciso aceitar recorrer a meios drásticos, sob
risco de fazer algumas vítimas.”
Essa
citação acima poderia estar escrita em qualquer coluna de
jornal ou artigo em revista nacional recente, mas, como o que temos enfrentado
em matéria econômica, como já defendi em artigo anterior,
é mais um processo do que qualquer espécie de “crise”, essas
sentenças inauguram o primeiro parágrafo da obra A Banalização
da Injustiça Social de Christophe Dejours(1),
do ano de 1999, e demonstram a forma como o aparato midiático neoliberal,
submisso à lógica econômica, nos enleva a uma situação
psicológica de guerra econômica, nos fazendo crer que, em
nome do (todo poderoso) capital, estariam em jogo, com a mesma gravidade
de uma guerra, a sobrevivência da nação e a
garantia
da liberdade. Conhecemos bem esse discurso, seus fomentadores e seus
interesses. Meu desejo neste artigo é recorrer a outro ponto que
parece estar sendo marginalizado nesse discurso: os mecanismos sociológicos
e psicológicos que vêm tornando a prática da injustiça
social, a prática da violência corporativa e social, uma constante
banalizada dentro do fenômeno de massificação da cultura
e do comportamento.
Em nome
da “justa causa” econômica utilizamos métodos cruéis
contra nossos próprios cidadãos, excluímos nossos
idosos, que já perderam a agilidade, os jovens mal preparados, os
vacilantes, enfim qualquer um que seja incapaz de responder às trombetas
da lógica de mercado, não se mostre apto a combater essa
“guerra” é demitido ou não aceito, ignorado, dispensado,
deletado, socialmente considerado infame, torpe, vil, indecoroso, vergonhoso.
Ao passo que dos outros, dos que são considerados aptos para o combate,
exigem-se desempenhos sempre superiores em termos de produtividade, de
disponibilidade, de disciplina e abnegação. A fórmula
única e absoluta da sobrevivência, segundo os magos do discurso
neoliberal, é a superação constante e ininterrupta
dos “concorrentes”. Estes “concorrentes”, como trataremos a seguir, são
todos os “outros”, estejam eles dentro ou fora dos ambientes de trabalho.
Essa guerra implica, como bem pudemos e podemos perceber nos Estados Unidos
e nos contínuos discursos dos nossos “especialistas” econômicos
e políticos dentro da grande mídia, em sacrifícios
individuais consentidos pelas pessoas e sacrifícios coletivos, decididos
em altas instâncias, tudo em nome da ratio oeconomicus.
Assim
na terra como na Empresa, o microcosmo pessoal e o macrocosmo empresarial
Estamos
sendo bombardeados midiaticamente pela vida leve a saudável, pelo
corte de calorias, pelo corte de açúcares, pelo corte de
despesas desnecessárias e, paralelamente, vamos nos sensibilizando,
nos identificando, com os “organismos” empresariais e a sua guerra sã,
uma guerra pela saúde (das empresas): “enxugar os quadros”, “tirar
o excesso de gordura”, “arrumar a casa”, “passar o aspirador”, “fazer uma
faxina”, “desoxidar”, “tirar o tártaro”, “combater a esclerose ou
a ancilose”, simultaneamente somos quase propelidos a fazermos exercícios
físicos que demandam mais e mais os temas do sacrifício e
do esforço, e seguimos nos sensibilizando e identificando com os
esforços e sacrifícios que somos obrigados a fazer em nome
da empresa, em nome do emprego, com o fantasma da incerteza a nos desejar
bons sonhos todas as noites em anúncios de telejornais como o que
disse no dia de ontem (segunda feira, 23 de janeiro de 2006) que a Ford
pretende demitir entre 14 a 30 mil empregados e a fechar 14 fábricas,
incluindo fábricas no Canadá e no México porque esses
países, apesar de parceiros do Nafta, estavam lutando pela defesa
dos seus direitos trabalhistas, uma luta política que vai contra
o receituário neoliberal.
É
sabido que tratamentos higiênico-dietéticos são dolorosos.
Por este mesmo motivo as metáforas médico-cirúrgicas
são particularmente apropriadas para justificar as decisões
de remanejamento, rebaixamento, marginalização, ostracismo
ou dispensa, que causam às pessoas sofrimentos, aflições
e crises de que são testemunhas compulsórias os psiquiatras
e assistentes sociais. Nos encontramos submersos num oceano infindável
de resignação, sempre aceitando os inconvenientes que as
circunstâncias nos impõem. Me pergunto até que ponto
a “natureza” pacífica do brasileiro não é algo criado.
A Alta
Roda empresarial e a sobrevivência do socialismo utópico
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“Ninguém
pratica o mal só pelo mal: até o Diabo tem suas razões,
e cada qual julga as suas mais fortes...” – Imre Madách (1823-1864),
A Tragédia do Homem. Palavras de Lúcifer
Ao
contrário do que se possa pensar ainda que retomando uma certa ingenuidade
da opinião pública, os grandes dirigentes de empresas não
estão completamente alheios a esse processo, esperando serem “iluminados”
por um Michael Moore da vida. A experiência de Dejours junto aos
dirigentes de empresas lhe diz que eles estão completamente cientes
dos riscos que correm, mas que, em sua maioria, não querem mudar
de rumo. Por que? Porque acreditam que, nessa guerra, seus adversários
serão os primeiros a se esgotar, e então eles reinarão
na paz estabelecida. Afinal, devemos reconhecer que os partidários
da guerra sã estão vencendo nos últimos 20 anos, mesmo
que na batalha haja mais vencidos que vencedores. O fato é que há
vencedores e a guerra prossegue, o que nos prova que a máquina de
guerra econômica, sociológica e psicológica acionada
funciona. E funciona admiravelmente bem considerando-se a fluidez com que
os modismos econômicos e políticos – primordialmente as fórmulas
geradas dentro dos consensos dos grandes organismos internacionais, como
o FMI, o Banco Mundial ou a ONU – se efetivam e subitamente são
transcendidos na pós-modernidade.
Nossos
Gurus intelectuais da mídia e a lógica sacrifical unânime
Mas porque
a máquina de guerra funciona tão bem assim? Há duas
respostas possíveis, mas só a primeira é levada seriamente
em consideração por nossos “especialistas” televisionados
e midiotizados:
1.
A guerra começou e se prolongou porque era inevitável. Ela
é um efeito da lógica interna do que se compreende por sistema:
o sistema econômico mundial, o mercado. Essa guerra seria, de algum
modo, natural, inerente às leis inevitáveis, as quais
a ciência econômica elucida. A ciência econômica
teria, nessa possibilidade, o status de lei natural e, portanto
infalível
e universal, inscrita na origem do universo, para além das
vontades dos homens e das mulheres, ou mesmo leis pertencentes ao “celestial”,
no sentido aristotélico do termo.
2. A outra
resposta, raramente formulada, consiste numa heresia sem tamanho para os
nossos “especialistas” midiotizados, teríamos que admitir as leis
econômicas como leis instituídas, isto é, construídas
por homens, ou ainda como leis do “sublunar”, também no sentido
aristotélico do termo. Sublunar: o mundo situado abaixo da lua,
isto é, o mundo habitado pelos humanos, onde a evolução
das conjunturas é sensível às decisões e ações
humanas (à diferença do mundo dos astros e da matéria,
regidos pelas leis eternas da física e da natureza).
Compreendendo
o excesso de análises resignadas que nossos “especialistas” produzem
a partir da primeira hipótese, preferiremos aqui lidar com a segunda.
Que a guerra econômica seja desejada por certos dirigentes nada tem
de enigmático e muito provavelmente isso resulta mais de um cálculo,
de uma estratégia, que propriamente de uma “cegueira”. Mas, para
que a máquina de guerra econômica venha vindo funcionando
a plenos pulmões é necessário que todos os outros,
os não “decisores”, contribuam para o seu funcionamento. Nessa anuência,
no consentimento, é que se verifica o padrão de banalização
social da perversidade gerada pela “lógica” do mercado.
Não
se trata aqui de procurar compreender a lógica econômica –
isto os nossos economistas já não sabem fazer muito bem –
mas de concentrar o esforço de análise nas condutas humanas
que produzem esta máquina de guerra, bem como nas que levam a consentir
nela e mesmo submeter-se a ela. Tomemos então a proposição
de que a maquinaria econômica não é um Deus ex machina,
mas que ela funcione porque homens e mulheres consentem em dela participar
maciçamente. Procuramos compreender as motivações
subjetivas da dominação, ou mais especificamente, por que
uns consentem em padecer sofrimento, enquanto outros consentem em infligir
tal sofrimento aos primeiros?
Por
que consentimos no padecer e no infligir?
Se esta
máquina continua a mostrar seu poderio – e de forma a cada dia mais
e mais cruel e intensa – é porque consentimos em fazê-la funcionar,
mesmo quando isso nos repugna. As motivações subjetivas para
tal consentimento, que se coloca além do sentimento de repugnância
para com os efeitos da guerra econômica, tem aqui um papel determinante.
Pesquisas francesas acerca do sofrimento no trabalho na área de
psicologia do trabalho revelam que a partir desse sofrimento se forma o
consentimento para participar do sistema, dentro de um complexo sistema
de humilhação, insegurança, ameaças, lógica
beligerante e promessas de estabilidade. Quando funciona, o sistema gera
um sofrimento crescente entre os que trabalham. O sofrimento aumenta porque
os que trabalham vão perdendo gradualmente a esperança de
que a condição que hoje lhes é dada possa amanhã
melhorar. Seus sacrifícios pela empresa, sua boa vontade, são
tomados como obrigação e, quanto mais dão de si, mais
são “produtivos”, pior procedem com relação a seus
colegas de trabalho, em razão mesmo de seus esforços e do
seu sucesso. Assim, a relação para com o trabalho vai se
dissociando paulatinamente da promessa de felicidade e segurança
compartilhadas: para si mesmo, primeiramente, mas também para os
colegas, os amigos e os próprios filhos.
Esse sofrimento
aumenta com o absurdo de um esforço no trabalho que em troca não
permitirá satisfazer as expectativas criadas nos planos material,
afetivo, social e político. Ao contrário do que se poderia
constar pela lógica cartesiana, o sofrimento não desativa
a maquinaria de guerra econômica, pelo contrário, alimenta-a
numa sinistra inversão que tentaremos explicitar. Na realidade criamos
defesas contra o sofrimento no trabalho, pequenas “estratégias de
defesa”, sutis, cheias de engenhosidade, diversidade e inventividade, mas
que também encerram uma armadilha que pode se fechar sobre os que,
graças a elas, conseguem suportar o sofrimento sem se abater.
Pequenas
defesas, tolerando o intolerável
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“Uma
injustiça é esquecida muito mais depressa que um insulto”
– Chesterfield (1694 – 1773)
Para
compreender como chegamos a tolerar e a produzir a sorte reservada aos
desempregados e aos novos pobres numa sociedade que não pára
de enriquecer devemos tomar consciência do sofrimento no trabalho.
Temos também que assumir o caráter preocupante de certas
defesas que criamos para fechar os olhos àquilo que não somente
intuímos como sabemos. É importante ter em mente que, no
sofrimento como nas defesas, mesmo no consentimento para padecer ou infligir
sofrimento, não há leis naturais, e sim regras de conduta
construídas por homens e mulheres.
Empregando
a identidade
Indubitavelmente,
quem perdeu o emprego, quem não consegue empregar-se (desempregado
primário) ou reempregar-se (desempregado crônico) e passa
pelo processo de dessocialização progressivo, sofre. É
sabido que esse processo leva à doença mental ou física,
pois ataca os alicerces do que se convencionou identidade no mundo pós-moderno.
Há uma ligação direta entre quem somos e a atividade
que executamos para viver, como se a segunda fosse a pedra de fundação
da primeira. Na pós-modernidade nós não somos em-si,
nós somos em relação ao que fazemos, explicitamente
ao que produzimos. Isso leva a uma crescente desvalorização
de boa parte do que chamamos de ciências humanas, mas isso é
um outro ponto.
Todos
partilham de um sentimento de medo – por si, pelos próximos, pelos
amigos ou pelos filhos – diante da ameaça de exclusão. Sabemos
que a cada dia aumentam nos países periféricos, como nos
centrais, o número de excluídos e os riscos de exclusão.
Não há como, em sã consciência, esconder-se
atrás do véu demasiado transparente da ignorância que
serve de desculpa.
Um
mundo justo ou um mundo ajustado?
Por outro
lado, nem todos partilham hoje do ponto de vista segundo o qual essas vítimas
do desemprego, da pobreza e da exclusão social seriam também
vítimas de uma injustiça. Somos educados a fazer uma clivagem
entre o que se compreenda como sofrimento social, principalmente o economicamente
gerado, e o conceito de injustiça. Essa separação
é grave, pois para os que nela incorrem, o sofrimento é uma
adversidade, mas essa adversidade não reclama necessariamente uma
reação política. Pode justificar compaixão,
piedade ou caridade, mas não provoca necessariamente indignação,
cólera ou apelo à ação coletiva.
O sofrimento
só gera solidariedade e protesto quando se estabelece uma associação
entre a percepção do sofrimento alheio e a convicção
de que esse sofrimento resulta de uma injustiça. Evidentemente quando
não se percebe o sofrimento alheio não se levanta a questão
da mobilização numa ação política, tampouco
a questão de justiça e injustiça.
Para compreendermos
melhor essa questão devemos analisar os vínculos que se estabelecem
entre sofrimento alheio e injustiça (ou justiça). Pessoas
que dissociam o sofrimento alheio da percepção de uma injustiça
adotam freqüentemente uma postura de resignação. Resignação
diante de um “fenômeno”: a crise do emprego, considerada uma fatalidade,
comparável a uma epidemia, à peste negra, à cólera
e até à Aids. Segundo essa concepção, não
haveria injustiça, mas apenas um fenômeno “sistêmico”,
econômico, sobre o qual não se poderia exercer nenhuma influência.
Sabemos hoje em dia que, mesmo ainda não podendo curar a Aids, por
exemplo, já somos capazes de evitá-la e mesmo de controlá-la,
o que faz dos noticiários econômicos e das suas “inevitáveis”
“crises” ainda mais teatralmente apocalípticos.
O destino
econômico, espécie de zodíaco do FMI ou as runas da
OMC
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“Há
mil maneiras de praticar injustiças sem quebrar uma única
lei” — Jehoshua
Steinberg
Não
creio que a atribuição da adversidade do desemprego e da
exclusão à causalidade do destino, à causalidade econômica
ou à causalidade sistêmica advenha de uma inferência
intelectual individual. Ninguém deduz, por si só, que o desemprego
e a exclusão social mundial são gerados por si mesmos, nem
está instalado no hardware do ser humano a tese da causalidade do
destino, não é resultado de uma invenção pessoal,
de uma especulação intelectual ou uma investigação
científica individual. Ela é dada ao sujeito, exteriormente.
Qual o
motivo que leva o discurso economicista, que atribui o infortúnio
social, econômico e político a uma mera causalidade do destino,
a implicar a adesão maciça de nossos cidadãos à
resignação ou à falta de indignação
e de mobilização coletiva? Precisamos unir conceitos da psicologia
e da sociologia na tentativa de compreender esse fenômeno. As ferramentas
para essa análise, vindas dos estojos de trabalho dessas duas disciplinas,
formam o campo da psicodinâmica do trabalho(2).
Essa campo de estudo sugere que a adesão ao discurso neoliberal
seria uma manifestação do processo de “banalização
do mal”.
Governo
“democrático”, sociedade nazista
A exclusão
e a adversidade infligidas a outrem em nossas sociedades, sem mobilização
política contra a injustiça, derivam de uma dissociação
estabelecida entre adversidade e injustiça. Como já disse,
uma dissociação que é dada ao sujeito, exteriormente.
Sob o efeito da banalização do mal, da banalização
da violência que há na própria existência do
menor abandonado, do desempregado, do sem-terra, no exercício de
atos civis comuns por parte dos que não são vítimas
da exclusão (ou não o são ainda) e que contribuem
para excluir parcelas cada vez maiores da população, agravando-lhes
a adversidade, faz com que nos aproximemos, sob o fantasma de expressões
como “esforço de guerra” – considerando a tal “guerra econômica”
-, de uma sociedade nos moldes da que baseou o sistema nazista. Basta verificarmos
o estudo de Hannah Arendt sobre o caso Eichman e veremos sobre seu fantasma
a máscara, ou como Jung denominaria, a persona, do homem
pós-moderno.
Heil
Mercado!
A adesão
à causa economicista, que separa a adversidade da injustiça
funcionaria como defesa contra a consciência dolorosa da própria
cumplicidade, da própria colaboração e da própria
responsabilidade no agravamento da adversidade social. Teríamos
que ter um dia de Cosme e Damião por semana para expurgar a culpa
psico-social que introjetamos e tendemos a negar, ou viver uma semana como
São Francisco de Assis ou Gandhi por mês.
Não
estamos falando de nada excepcional, de nada extraordinário, estamos
falando do banal, do corriqueiro, do fútil, do trivial, do vulgar,
literalmente daquilo que desconsideramos por subtrair-lhe qualquer importância.
Não se trata apenas da banalidade do mal, mas da banalidade de um
processo que é pré-requisito para o funcionamento do sistema
econômico neoliberal.
Para que
o liberalismo pós-moderno funcione de maneira eficaz é indispensável
fazer crer que o exercício do mal praticado por uns contra outros
seja compreendido lógica e naturalmente como uma simples adversidade
casual, como fato do destino inexorável.
Nem
tudo em vão...
Mesmo
que haja líderes cujo comportamento, por seus requintes na banalização
da prática do mal, mereça uma análise específica
como George Bush ou Ariel Sharon, nem por isso a identificação
dos mesmos confere ao leitor ou ao autor o benefício da inocência.
Da mesma forma não temos como solucionar a curto prazo a adversidade
social gerada pelo liberalismo econômico atualmente.
Mas nem
por isso este artigo será escrito em vão. Hoje se inicia
o quinto Fórum Social Mundial em Caracas, na Venezuela, e, a partir
deste texto, baseado na obra de Christophe Dejours, podemos começar
a debater e difundir os estudos sobre a banalização que vem
causando passividade e inércia em grande parte da população
mundial.
Neoliberanazismo
Se a banalização
das práticas de perversidade de uma minoria incluída contra
uma maioria excluída nada tem de excepcional, por ser subjacente
ao próprio sistema liberal, ela também está presente
nas vertentes totalitárias, como no nazismo. Quais seriam, afinal,
as diferenças entre os totalitarismos e o neoliberalismo? Muitos
trabalhos já têm enveredado por essa questão e nenhum
deles parece encontrar mais diferenças que semelhanças.
Antes
mesmo do Big Bang?
A banalização
do mal passa por várias fases intermediárias, cada uma das
quais depende de uma construção humana. Não se trata,
porém, de uma lógica incoercível escrita sobre as
nebulosas antes mesmo do possível Big Bang ou que tenha passado
pela mente de um grande Criador no momento, ou antes do momento do Gênesis,
trata-se de um processo bem humano e, como tal, implica em responsabilidades.
Como um
processo e, principalmente como um processo humano, ele pode ser interrompido,
controlado, contrabalançado ou dominado por decisões humanas
que, evidentemente, também implicariam responsabilidades.
Talvez
nosso poder de controle sobre o processo possa ser aumentado pelo conhecimento
de seu funcionamento, talvez por isso esteja escrevendo esse artigo. Na
impossibilidade de contribuir imediatamente para a ação,
podemos ao menos recorrer à compreensão.
Futurologia
política
Existem
analistas econômicos e sociais, muitos deles “futurólogos”
que arriscam números sobre a tolerância social à injustiça.
Em 1980, antes da “crise do emprego”, analistas franceses previam que não
se poderia ter mais de 4% de desempregados na população ativa
sem que surgisse uma grande crise política. Hoje a França
tem mais de 13% de desempregados e é capaz de tolerar muito mais.
Não necessariamente os futurólogos estavam errados. Provavelmente
a sociedade francesa de 1980 não poderia tolerar 4% de desempregados,
mas se contarmos o fator educacional efetuado pela mídia neoliberal
podemos compreender até que ponto a banalização do
desemprego, vendido televisivamente, midiaticamente, como “fato do destino
inexorável”, cria essa mesma resignação, essa permissividade.
Afinal, não podemos crer que o crescimento do desemprego, por si
só, venha a criar essa inesperada tolerância social.
ONG´s
e Estados paralelos
Toda a
sociedade mudou qualitativamente nesse intervalo de tempo e, se escrevo
sobre dados franceses é porque tenho dados franceses sobre um fenômeno
que pode ser percebido claramente como mundial. Vemos nesse processo, aqui
no Brasil, a evolução das reações sociais ao
sofrimento, à adversidade e à injustiça. Evolução
que se caracteriza pela atenuação das reações
de indignação, de cólera e de mobilização
coletiva para a ação em prol da solidariedade e da justiça.
Um processo que vem se agravando com a criação de ONG´s
que irresponsavelmente se vendem como estados paralelos dentro do Estado
que, mui habilmente, se aproveita dessas oportunidades para furtar-se às
obrigações legítimas e legais para com a população
e a coisa pública.
Desenvolve-se,
nesse vácuo, reações de reserva, hesitação
e perplexidade, inclusive de indiferença, bem como de tolerância
coletiva à inação e de resignação à
injustiça e ao sofrimento alheio. Segundo a interpretação
mais corrente, essa insólita passividade coletiva estaria ligada
à uma crônica falta de perspectivas (econômica,
social e política) alternativas.
O Hommo
ociosus
Muito
mais do que na crença numa utopia, numa terra, num Estado ou num
não-Estado prometidos, por mais estruturadas que essas alternativas
possam parecer, creio que a cólera contra o sofrimento e a injustiça
considerados intoleráveis são o melhor combustível
a qualquer mobilização. Em outras palavras a ação
coletiva tende a se caracterizar muito mais por uma reação
do que por uma ação. Mais reação contra
o intolerável que ação voltada primariamente
para a felicidade.
Com relação
mesmo à tão criticada falta de alternativa ideológica,
creio que até mesmo ela seja secundária em relação
à falta de mobilização coletiva contra a adversidade
e a injustiça infligidas a outrem.
Mais
falta de combustível que de destino...
Não
devemos tentar explicar pela falta de utopia social alternativa a imobilidade
e a indiferença social para com a crueldade e a injustiça
social. O problema, mais grave porque mais radical, mais enraizado e por
isso mesmo mais tendente à inércia e à imobilidade,
passa a ser o desenvolvimento da tolerância à injustiça.
A falta de reações coletivas de mobilização
possibilita o aumento progressivo do desemprego e dos seus estragos psicológicos
e sociais, fomentados pelo aparato “mideológico” neoliberal.
Filosofias
empresariais
Os últimos
vinte anos se caracterizaram, no universo do trabalho, por novos métodos
de gestão e de direção de empresas, que vêm
se traduzindo no questionamento avassaladoramente progressivo do direito
do trabalho (ou dos direitos do trabalhador) e das conquistas sociais.
São métodos que reúnem as crescentes demissões
às também crescentes brutalidades nas relações
trabalhistas, mascaradas num pacote florescente com belas palavras como
“livre negociação” entre patrões e empregados, sem
a mediação de sindicatos, por exemplo.
A denúncia
como morfina
Decerto
muita brutalidade é denunciada. Temos aí o Ministério
Público, os Tribunais de Contas, de pequenas causas, etc. Mas mesmo
aí as questões se complexificam a níveis colossais,
principalmente em se tratando do neoliberalismo videotizado brasileiro,
pois aqui, com o sistema Globo e suas operações “abafa” as
denúncias permanecem absolutamente sem conseqüência política,
já que não geram uma mobilização política
concomitante. Parece que estamos sendo educados a deixar, por exemplo,
que as organizações Globo dêem aulas de teatro a seus
âncoras para que pareçam extremamente preocupados com a injustiça
social e com ela franzam suas pintadas, cortadas e penteadas sobrancelhas
para depois rirem-se a valer do gol do time que tenha jogado no fim de
semana ou da piadinha inócua do Jabor.
A denúncia,
na maneira como é efetuada no Brasil, parece perfeitamente compatível
com uma crescente tolerância à injustiça. Existem ainda
questões que serão melhor abordadas no artigo próximo:
devemos ver nessa questão acima a fragilidade dos discursos de denúncia
no plano político ou o indício cruel de uma duplicidade que,
por trás da denúncia esconde uma tolerância crescente?
Funcionará a denúncia de uma maneira inusitada e, ao invés
de catalisar a ação política ela sirva para familiarizar
a sociedade civil com a adversidade, para domesticar as reações
de indignação e favorecer a resignação, constituindo
uma preparação sócio-psicológica para a adversidade
e a injustiça crescentes?
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O Bem,
o Mal e o Neoliberal
— 2a
parte
A
tendência da defesa contínua, como a defesa necessária
dentro de um ambiente de trabalho, é a de se cristalizar, gerando
a banalização da injustiça, da humilhação,
da violência cotidianas. Caso contrário os trabalhadores enlouqueceriam
diante das pressões criadas pelo sistema neoliberal de organização,
ou de desorganização premeditada e lucrativa, do trabalho.
Nem
Eros nem Thanatos, trabalho.
Em sua
última teoria das pulsões Freud designa Eros como a totalidade
das pulsões de vida em oposição a Thanatos, as pulsões
de morte. Superficialmente comentando, esses impulsos delimitariam as razões
por trás das ações humanas. E é desses impulsos
ou desse impulso único, situado no limbo entre o sofrimento e o
prazer, que leva o homem a executar trabalho, que esta segunda e modesta
parte do artigo intitulado “O Bem, o Mal e o Neoliberal” trata.
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“Quando
se pede a Deus o sofrimento, tem-se sempre a certeza de ser bem atendido”
— Leon Bloy
Como
primeiro plano deveríamos definir o que entendemos por sofrimento.
Para além do sofrimento dicionarizado, do “padecimento, infortúnio,
desdita, desgraça, flagelo, infelicidade”. Mencionamos anteriormente
as relações entre sofrimento e emprego, referindo-nos ao
sofrimento dos que não estão inseridos no mercado de trabalho.
Cumpre mencionarmos as relações entre o sofrimento e o trabalho,
ao sofrimento dos que estão inseridos nesse universo do labor. Afinal,
sabemos que não é a entrada no cada dia mais seleto grupo
dos empregados que vai garantir a satisfação de todas as
nossas necessidades como cidadãos e seres humanos. A transformação
da injustiça social numa banalidade reside sobre um processo de
reforço recíproco de uma parte pela outra, da fuga do sofrimento
– pulsão de vida ou “rejeição” da pulsão de
morte – que repousa em uma condição, para a entrada no sofrimento
que repousa na outra.
O sofrimento
como expiação, como remissão dos “pecados” contra
os “deuses” não é nenhuma originalidade católica que
Nietzsche criticaria como a religião do “gado humano”, mas a tradição
católica de uso da resignação e da resiliência
– qualidades importantes do espírito humano – para a manutenção
de poder pura e estritamente temporal ajuda muito na condição
da formação da indiferença aviltante e vergonhosa
da sociedade brasileira. Resistir, arriscar ser humano e não tornar-se
indiferente, opaco, oco, servil, é ser chamado de fundamentalista
irracional, é ser demonizado pela religião neoliberal midiotizada
do bispo Bush e dos Papas Cheney e demais magnatas do petróleo.
Trabalho
telecinético
A impressão
veiculada pela mídia da conseqüência da mecanização
do trabalho ainda reescreve o discurso do meio do século XIX, onde
se acreditava que o sofrimento no trabalho fosse completamente eliminado
pela mecanização e robotização, que de alguma
maneira tão tecnológica que nos soa quase mágica,
se teriam abolido as obrigações mecânicas, as tarefas
de manutenção e a relação direta com a matéria.
Sobrariam nossos cada vez mais inutilizáveis “tempos livres” para
consumirmos, sendo essa a soberana vocação do hommo neoliberalis.
Turismo
no inferno
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“O inferno
deve ser algo assim como a América Latina, mas a sério”
— Sofocleto, Sinlogismos
Lembra-se,
o leitor, das imagens de uma reportagem de televisão ou retém
ainda a lembrança de uma visita guiada a uma fábrica de aspecto
asseado, totalmente clean? Infelizmente tudo isso não passa
de clichê, o que as empresas mostram são suas fachadas e vitrines,
previamente decoradas e oferecidas de bom grado aos olhares de curiosos
ou visitantes. O que se efetua aí é a velhíssima piada
do turista no inferno: visitar é ótimo, quero ver é
morar lá.
Por trás
da vitrine televisionada há o sofrimento, bem real, dos que trabalham.
Dos que pretensamente nem sequer existem, da legião fantasma que
assume as tarefas comprovadamente arriscadas à saúde sem
qualquer sombra de direito trabalhista. Para que o texto não fique
tão abstrato seguem exemplos bem físicos de onde se pode
encontrar tais quadros: firmas de serviços de manutenção
nuclear, firmas de limpeza (seja em indústrias ou escritórios,
hospitais, trens, aviões etc.), montadoras de automóveis,
matadouros industriais, empresas avícolas etc. Depois os âncoras
dos telejornais quase que apocalípticos e místicos nos vêm
com as “inexplicáveis” “gripe do frango”, “febre aftosa” e outras
“maravilhas” (do controle populacional neomaltusiano e neoliberal) geradas
por animais encaixotados do nascer ao morrer, sem nunca terem visto a luz
do sol, alimentados com ração transgênica, tomando
vacinas e vitaminas sintéticas goela abaixo para conseguirem (sobre)viver
até o abate. Mas isso é fichinha perto das radiações
ionizantes, vírus, fungos, amianto, dos que se submetem a horários
alternados, a lista é quase interminável. Tais malefícios
são relativamente recentes e vêm se agravando e multiplicando
na lógica do todo poderoso capital.
Psicossomático
ou psicoporrada?
Ali, atrás
das vitrines fabris televisionadas, há o sofrimento dos que temem
não satisfazer, não estar à altura das imposições
da organização do trabalho: horário, ritmo, formação,
informação, aprendizagem, nível de instrução,
diploma, plano de carreira, experiência, rapidez de aquisição
de conhecimentos teóricos e práticos, adaptação
à ideologia, “cultura” ou “família” da empresa, exigências,
fricotes e frescuras do mercado, relação com os clientes,
particulares, público etc.
O papel(-)higiênico
da imprensa.
Há
mais de três décadas os jornalistas midiotizados deixaram
de fazer sondagens sociais ou reportagens no mundo do trabalho comum para
se dedicarem a “matérias” sobre as luzes das vitrines do progresso.
Pouco ou nenhum interesse pelo sofrimento que deseja cada vez mais ver
como “o outro”, o “corpo estranho”. Somente o martírio das vítimas
da violência e das atrocidades bélicas, à distância,
como a situação da Palestina, a neurose cobiçosa e
avarenta da Casa Branca por petróleo a qualquer custo no Irã,
no Iraque, na Venezuela onde quer que haja uma gota preta e seborrenta
de ouro negro, se oferece à curiosidade dos nossos “telespectadores”.
O sofrimento próximo é banalizado e substituído pelo
sofrimento teleguiado (ou vídeoguiado), projetado em uma sensibilização
cinematográfica com as questões palestina, iraquiana. É
a mídia amparada nos capitais vultosos e no discurso único
do neoliberalismo docilizando a reação do público
(porque é muito difícil encontrar povo, com sentimento de
nação e de pertencimento, com ethos, hoje em dia).
Do mundo
do trabalho real, cotidiano, não banal, mas banalizado, não
se ouvem senão ecos amortecidos na imprensa e no espaço público,
ecos amortecidos por sindicatos completamente entregues aos interesses
dos grandes capitais, o que nos leva a crer que as parcas notícias
que surgem sobre escravidão, sub-empregos e violências no
trabalho não passam de excepcionalidades, não tendo significado
nenhum no que concerne à situação geral do mundo do
trabalho hoje em dia. Chega a ser imoral a indignação afetada
dos “âncoras” dos telejornais com essas matérias e a forma
como eles repentinamente se riem do resultado de um campeonato de futebol
recente.
O fantasma
da incompetência.
O que
é o “real” do trabalho? Calma, não vamos oferecer pílulas
azuis ou vermelhas. A definição de “real” no estudo do trabalho
está mais avançado que o mero conceito da resistência
ao conhecimento. Percebe-se o “real” do trabalho muito mais como a defasagem
irredutível entre a organização prescrita do trabalho
e a organização real do trabalho. Explico.
Quaisquer
que sejam as qualidades da organização do trabalho é
impossível, no cotidiano, cumprir os objetivos da tarefa respeitando
ponto-a-ponto as prescrições, as instruções
e o procedimento. Basicamente veremos que, dentro da lógica neoliberal
de trabalho, é mais rentável termos um manual de instruções
de setecentas páginas explicando como bater um martelo sobre uma
parede e colocar um prego do que executar a ação em si. Caso
caiamos na tentação de agir “segundo as regras”, nos veremos
na conhecida situação de “operação padrão”,
também conhecida como “operação tartaruga”. É
de se crer que muitas desses modus operandis das empresas tenham
sido criados com o único propósito de humilhar e desencorajar
funcionários que, ignorando essas culturas da incompetência
empresarial ou laborial, conseguem realizar seus trabalhos com eficácia
e zelo mas, por não seguirem o “padrão” da empresa na execução
de suas tarefas (até porque ele é criado para ser impossível
de ser executado), não conseguem um aumento ou benefício
quando o requisitam.
Trabalhe
mal, trabalhe muito mal
Até
mesmo quando o trabalhador sabe o que deve fazer e não parece, a
princípio, nada impossível, como o caso anterior, ele muitas
vezes não consegue fazê-lo graças às pressões
sociais do trabalho. Colegas criam obstáculos, o ambiente social
é péssimo, cada qual trabalha por si, todos sonegam informações,
isso sem citar o caso específico (e muito comum no Brasil) de uma
funcionária ser humilhada diariamente com “cantadas”, “gracejos”
e outras pérolas da sociedade machista e porco-chauvinista brasileira.
Nas tarefas ditas de execução abundam esse tipo de contradições
que impedem o trabalhador (e a trabalhadora) de realizar corretamente o
seu trabalho.
Muitas
mudanças estruturais e o processo de “enxugamento” (tratado no artigo
anterior) dos quadros deixam todos tão sobrecarregados de trabalho
pelo acúmulo de funções (que não inclui o acúmulo
de salários, pelo contrário) que eles simplesmente “ignoram”
parte do trabalho a ser realizado. É claro que, para o fantasioso
sistema neoliberal de trabalho, não há qualquer chance de
se admitir tal situação oficialmente e então o trabalhador
mais antigo se recusa, por exemplo, a implementar a investigação
proposta pelo novo colega sobre a incompetência generalizada e regulamentada
que encontrou no seu novo local de trabalho, porque a investigação
seria difícil e demandaria muito tempo (e trabalho).
Carne
(e neurônios) tratada como massa
Não
estou anulando totalmente o discurso de satanização que o
neoliberalismo costuma fazer sobre as empresas e os serviços públicos.
Obviamente há os funcionários indolentes e os desonestos
(no âmbito público como no privado também), mas, em
sua maioria, os que trabalham se esforçam por fazer o melhor, pondo
nisso muita energia, paixão e investimento pessoal. É justo
que essa contribuição seja reconhecida. Quando ela não
é, quando passa despercebida em meio à indiferença
geral ou é negada pelos outros, isso acarreta um sofrimento que
é muito perigoso para a saúde mental.
O reconhecimento
não é uma reivindicação secundária dos
que trabalham ou uma expectativa pueril ou egocêntrica. Muito pelo
contrário, mostra-se decisivo na dinâmica da mobilização
subjetiva da inteligência e da personalidade no trabalho. Cortando
em miúdos: obviamente quem é reconhecido trabalha melhor
e o inverso também se aplica.
É
necessário que haja reciprocidade nas relações do
trabalho – assim como seria desejável em todas as demais. Reciprocidade
é uma condição de troca em interação
social, sem a qual as pessoas tendem a perder o interesse e se retrair,
acumulando diversas questões, sentimentos, dúvidas, inquietações
que assumirão o grau de psicopatologias crônicas.
O trabalho
na (de)formação do ego
Inversamente,
quando a qualidade do meu trabalho é reconhecida, também
meus esforços, minhas angústias, minhas dúvidas, minhas
decepções, meus desânimos adquirem sentido. Todo aquele
sofrimento, portanto, não teria sido em vão, teria feito
de mim um sujeito diferente daquele que eu era antes de ser reconhecido.
O trabalho
se inscreve então na dinâmica de realização
do ego (como dito no artigo anterior). A identidade constitui a armadura
da saúde mental. Dizem os psicólogos: “não há
crise psicopatológica que não esteja centrada numa crise
de identidade”. Aí coloca-se a dramaticidade da questão do
trabalho e do sofrimento no trabalho. Não podendo gozar os benefícios
do reconhecimento de seu trabalho, nem alcançar assim o sentido
de sua relação para com o mesmo, o sujeito se vê reconduzido
ao seu sofrimento e somente a ele. Diante da pressão midiática
para a aquisição de novos e já obsoletos produtos,
diante da constante exigência familiar ou do seu círculo social,
o sujeito reconhece-se como o retrato do sofrimento numa sala de espelhos.
Defesa,
cristalização... banalização ou quebra
Se o sofrimento
não se faz acompanhar de descompensação psicopatológica
(ruptura do equilíbrio psíquico que se manifesta pela eclosão
de uma doença mental), é porque contra ele o sujeito emprega
defesas que lhe permitem controlá-lo. À par dos mecanismos
de defesa classicamente descritos pela psicanálise ou pela psicologia
analítica, existem defesas construídas e empregadas pelos
trabalhadores coletivamente, sociologicamente.
A grande
questão se insere quando, do resultado de pesquisas acerca das doenças
mentais do trabalho, sobra a inequívoca e inquietante noção
de que, em sua maioria, os trabalhadores permanecem dentro de um espectro
de ações, comportamentos e reações psíquicas
que poderiam ser considerados “normais”. Dessa maneira a própria
noção de “normalidade” passa a ser enigmática.
A tendência
da defesa contínua, como a defesa necessária dentro de um
ambiente de trabalho, é a de se cristalizar, gerando a banalização
da injustiça, da humilhação, da violência cotidianas.
Caso contrário os trabalhadores enlouqueceriam diante das pressões
criadas pelo sistema neoliberal de organização, ou de desorganização
premeditada e lucrativa, do trabalho.
Perfeitamente
nOrMaL
A normalidade
é interpretada como o resultado de uma composição
- quase como um mosaico psíquico de partes psicológicas,
religiosas, culturais, familiares e educacionais completamente desconexas
e intrincadas – entre o sofrimento e a luta (individual e coletiva) contra
o sofrimento no trabalho. A normalidade não implica a ausência
de sofrimento, a tentativa de ignorar o sofrimento ou viver sem ele introjeta
um niilismo de uma vacuidade tão grande que tende a levar ao suicídio.
O que
se pode propor é uma “normalidade sofrente”, sendo o estado de “normalidade”
não o efeito passivo de um condicionamento social, de algum conformismo
ou de uma normalidade pejorativa e desprezível, obtida pela interiorização
da dominação social, mas o resultado da árdua contenda
cotidiana contra a desestruturação psíquica provocada
pelas pressões do trabalho.
Banalização?
Do quê mesmo?
Essas
estratégias de defesa social contra o inaceitável, o inescrupuloso,
vergonhoso e doente da injustiça social tendem a tornar aceitável
porque comum, o inaceitável, o vergonhoso e o revoltante. Assim
essas estratégias de defesa, interessadas na manutenção
do ego, estruturam a indiferença social. Funcionam como uma armadilha
que insensibiliza contra aquilo que faz sofrer, permitem, muitas vezes,
puxar para dentro do campo sempre e sempre alargado do “tolerável”
o sofrimento ético, e não mais apenas o psíquico,
entendendo-se por tal não o sofrimento que resulta de um mal padecido
pelo sujeito, e sim o que ele pode experimentar ao cometer, por causa de
seu trabalho ou dentro do ambiente de trabalho, atos que condena moralmente.
Questões
para o futuro...
Teria
o sofrimento no trabalho e a conseqüente luta contra esse mesmo sofrimento
alguma influência sobre as posturas morais particulares e sobre as
condutas coletivas no campo político? Estaríamos diante da
construção, orquestrada pela sinfonia da filarmônica
neoliberal e o seu pensamento único, do “público” perfeito,
do público expectador, passivo, massificado, imbecilizado, indiferente,
inconsciente, lesivo a si mesmo, em uma palavra: vazio?
Notas:
(1) Christophe
Dejours. Psiquiatra, psicanalista, professor do Conservatório Nacional
de Artes e Ofícios, e diretor do Laboratório de Psicologia
do Trabalho da França.
(2) Essa disciplina
– inicialmente denominada psicopatologia do trabalho – tem por objetivo
o estudo clínico e teórico da patologia mental decorrente
do trabalho. Fundada ao final da Segunda Guerra por um grupo de médicos-pesquisadores
liderados por L. Lê Guillant, ela ganhou, há uns 15 anos um
novo impulso que a levou recentemente a adotar a denominação
de “análise psicodinâmica das situações de trabalho”,
ou simplesmente “psicodinâmica do trabalho”. Nessa evolução
da disciplina, a questão do sofrimento passou a ocupar uma posição
central. Otrabalho tem efeitos poderosos sobre o sofrimento psíquico.
Ou bem contribui para agravá-lo, levando progressivamente o indivíduo
à loucura, ou bem contribui para transformá-lo, ou mesmo
subvertê-lo em prazer a tal ponto que, em certas situações,
o indivíduo que trabalha preserva melhor a sua saúde do que
aquele que não trabalha. Por que o trabalho ora é patogênico,
ora é estruturante? O resultado jamais é dado de antemão.
Depende de uma dinâmica complexa cujas principais etapas são
identificadas e analisadas pela psicodinâmica do trabalho.
leia
também
Crises
ou Processo?
Novembro
de 2004
Renato
César da Costa Kress está desempregado. É brasileiro,
poeta, escritor e nasceu no Rio de Janeiro no ano 82. Concluiu seus estudos
secundários no Colégio Cruzeiro - Deutsche Schule. Lançou
em 2000, aos 18 anos, o livro Consciência,
sobre impactos do neoliberalismo nos países de terceiro mundo, livro
este que começara a escrever dois anos antes. É co-fundador
e co-editor da revista eletrônica www.consciencia.net, e membro do
I-Latina.org (www.i-latina.org). Atualmente cursa a faculdade de Ciências
Sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Contato por e-mail, clique
aqui. Para outros textos do autor, clique
aqui.
Artigo
finalizado pelo autor em 26/1/2006, publicado em 10/2/2006 e atualizado
em 14/3/2006 na Revista Consciência.Net.
(*)
O título deste artigo é uma referência ao filme “O
Bom, o Mau e o Feio”, dirigido pelo italiano Sérgio Leone.
Renato
Kress | Cidadania
| Busca no site | Principal.—.Consciência.Net
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